16/12/22

BICENTENÁRIOS: SUMÁRIO

Armas nacionais do Brasil no Armorial universel de Jouffroy d'Eschavannes (v. 1, 1844).

Encerrando os meus apontamentos de heráldica neste ano, sumario as postagens sobre os bicentenários atinentes às armas nacionais do Brasil:

Ao prezado leitor, o meu agradecimento e voto de boas festas.

15/12/22

BICENTENÁRIO DA ORDEM DO CRUZEIRO: O LEGADO

As armas nacionais que a República assumiu foram inspiradas nas insígnias da Ordem do Cruzeiro.

A inspiração das armas nacionais nas insígnias da Imperial Ordem do Cruzeiro.
A inspiração das armas nacionais nas insígnias da Imperial Ordem do Cruzeiro.

O Cruzeiro do Sul é o símbolo nacional do Brasil, entendido como a figura heráldica mais representativa, tal qual as quinas para Portugal, o leão para a Bélgica ou a águia para a Alemanha. Essa constelação está no zênite da esfera celeste da bandeira nacional ("ponteada por vinte e uma estrelas, entre as quais as da constelação do Cruzeiro", na redação do decreto que a criou), é cantada no hino nacional ("A imagem do Cruzeiro resplandece"), deu nome à moeda nacional durante longos períodos no século passado e, é claro, figura nas armas nacionais: de azul com cinco estrelas de prata postas como a constelação do Cruzeiro do Sul e uma bordadura de azul, perfilada de ouro, carregada de vinte e sete estrelas de prata.

Insígnia da Ordem Civil do Cruzeiro. A coroa imperial foi substituída por uma estrela vermelha dentro de uma coroa de cafeeiro e tabaco e a efígie e o nome de Dom Pedro I, pela efígie e pelo nome da República (vide a postagem de 24/09; imagem de exemplar à venda no Mercado Livre).
Insígnia da Ordem Civil do Cruzeiro. A coroa imperial foi substituída por uma estrela vermelha dentro de uma coroa de cafeeiro e tabaco e a efígie e o nome de Dom Pedro I, pela efígie e pelo nome da República (vide a postagem de 24/09imagem de exemplar à venda no Mercado Livre).

Como eu disse na postagem de 18/09, os criadores da bandeira e das armas nacionais que o governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca adotou pelo Decreto n.º 4, de 19 de novembro de 1889, foram muito inteligentes ao trocarem a cruz da Ordem de Cristo pelo Cruzeiro do Sul, ou melhor, a insígnia de uma ordem pela de outra. Aquela contrariava o ideal de separar o estado e a igreja (vide a postagem de 09/09); esta era tão prezada pelos militares que, convertida em Ordem Civil do Cruzeiro, escapou à abolição de "todos os títulos, foros de nobreza e ordens honoríficas estabelecidos pelo antigo regime",  que o mesmo governo operou pelo Decreto n.º 277-F, de 22 de março de 1890, embora não tenha resistido à nova constituição (art. 72, parágrafo 2.º), promulgada em fevereiro do ano seguinte. Com efeito, o Marechal Deodoro era dignitário da Imperial Ordem do Cruzeiro e chegou a despachar que as armas nacionais continuassem, substituindo-se a coroa pelo Cruzeiro (vide a postagem de 24/09)

Cédula de 5.000 mil cruzeiros (1990), em que se veem as armas nacionais, e moeda de 1 real (1998-atual), em que se vê o Cruzeiro do Sul.
Reverso de uma cédula de 5.000 mil cruzeiros (1990), em que se veem as armas nacionais, e moeda de 1 real (1998-atual), em que se vê o Cruzeiro do Sul.

No entanto, a cruz da Ordem do Cruzeiro não era a constelação desse nome, mas se formava das dezenove estrelas que representavam as províncias nas armas nacionais. Bem entendida essa diferença, é surpreendente que na literatura heráldica brasileira não se tenha percebido a semelhança das armas assumidas pela República com a insígnia dessa ordem, a não ser vagamente por Tristão de Alencar Araripe no artigo Brasões do Brasil (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, número 83, 1891): "Este emblema parece antes a forma da venera de uma condecoração do que a de um brasão". Comparemo-las ponto por ponto:

  • Como a medalha, o escudo é redondo e tem uma bordadura, para a qual se moveram as estrelas, enquanto no campo se pôs a constelação que dava nome à ordem;
  • também como a medalha, o escudo está sobre uma estrela;
  • tal como na insígnia, esse conjunto fica sobre uma coroa de cafeeiro e tabaco
  • e como na placa, todo o conjunto repousa sobre um resplendor.

Conclusão: Artur Sauer inspirou-se fortemente nas insígnias da Imperial Ordem do Cruzeiro ao criar as armas que a República assumiu e perduram, tanto que o legislador caiu no exagero ao ordenar na Lei n.º 5.700, de 1.º de setembro de 1971, o campo de azul-celeste, cor que esmaltava a medalha da Ordem do Cruzeiro, porém inexistente na heráldica luso-brasileira. Corrobora-se, pois, a interpretação de que a espada era um afago aos militares, que derrubaram a monarquia e tutelavam o novo regime, e o listel com o topônimo e uma data magna é um elemento de heráldica duvidosa, como comentei na postagem de 24/09.

Insígnias da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. São iguais às da Ordem Civil do Cruzeiro, mas se retirou a estrela vermelha (imagem publicada pela Embaixada da Polônia em Brasília no Twitter).
Insígnias da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. São iguais às da Ordem Civil do Cruzeiro, mas se retirou a estrela vermelha (imagem publicada pela Embaixada da Polônia em Brasília no Twitter).

Em 1932, outro governo provisório, dessa vez sob a chefia de Getúlio Vargas, restabeleceu, pelo Decreto n.º 22.165, de 5 de dezembro, a Ordem do Cruzeiro com o nome de Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, cujo regulamento foi aprovado pelo Decreto n.º 22.610, de 4 de abril de 1933. No entanto, é lamentável que a mais antiga e mais alta das ordens honoríficas do Brasil, que premiou os próceres da Independência aquando da sua criação, tenha sido reduzida a "galardoar os estrangeiros, civis ou militares, que se tenham tornado dignos do reconhecimento da Nação Brasileira". A ordem que inspirou os nossos símbolos nacionais e hoje ostenta a figura principal deles deveria ter permanecido fiel ao seu estatuto, reconhecendo "distinto serviço militar, civil ou científico" do cidadão brasileiro, antes súdito do Império.

Na verdade, parece que o momento das ordens honoríficas passou. Hoje em dia recebem pouca atenção e menor crédito, principalmente em regimes presidencialistas como o nosso, em que o chefe do estado é o mesmo eleito para governar e amiúde honorifica não pelo mérito, mas pela política ordinária.

13/12/22

BICENTENÁRIO DA ORDEM DO CRUZEIRO: AS INSÍGNIAS

A Imperial Ordem do Cruzeiro tornou-se um símbolo nacional.

Placa da Imperial Ordem do Cruzeiro, conservada no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional).
Placa da Imperial Ordem do Cruzeiro, conservada no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional).

Diferentemente das ordens de Cristo, Avis e Santiago, que tinham três graus de distinção — grã-cruz, comendador e cavaleiro —, a do Cruzeiro tinha quatro: grã-cruz, dignitário, oficial e cavaleiro. A insígnia e a placa tinham elementos variáveis e invariáveis e todos são descritos no artigo 8.º do estatuto.

Insígnia da Imperial Ordem do Cruzeiro, conservada no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional).
Insígnia da Imperial Ordem do Cruzeiro, conservada no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional).

[U]ma estrela da forma que mostra o padrão que com este baixa [de cinco raios, cada um de duas pontas maçanetadas], esmaltada de branco, decorada com coroa imperial e assentando sobre uma coroa emblemática das folhas de tabaco e café, esmaltadas de verde. Terá no centro, em campo azul-celeste, uma cruz formada de dezenove estrelas esmaltadas de branco e na circunferência deste campo, em círculo azul-ferrete, a legenda Benemerentium præmium (1) em ouro polido. A medalha no reverso, em lugar da cruz, terá a minha Imperial Efígie em ouro e campo do mesmo metal, com a seguinte legenda no círculo azul-ferrete Petrus I, Brasiliæ Imperator (1).

A placa tinha, em vez da capela de cafeeiro e tabaco, um resplendor em ouro sob a estrela. A forma de trazê-las completava a distinção de cada grau: os cavaleiros traziam apenas a insígnia "enfiada em fita azul-celeste, atada em uma das casas do lado esquerdo do vestido ou farda de que usarem" e os oficiais, apenas a placa. Além desta, os dignitários traziam "a insígnia pendente de fita larga ao pescoço" e os grã-cruzes, "a tiracolo as bandas ou fitas largas de azul-celeste com a medalha da Ordem".

Banda da Imperial Ordem do Cruzeiro, conservada no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional).
Banda da Imperial Ordem do Cruzeiro, conservada no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional).

Em 1847, Dom Pedro II editou um decreto que converteu a figura da Ordem do Cruzeiro no jaque da Armada, provando definitivamente que essa ordem não só era a primeira do Brasil independente, mas também a mais alta e um autêntico símbolo nacional.

DECRETO N.º 544, DE 18 DE DEZEMBRO DE 1847
Determina que os navios de guerra da Armada Nacional usem de uma bandeira particular no gurupés.
Hei por bem ordenar que d'ora em diante os navios de guerra da Armada Nacional usem de uma bandeira particular no gurupés, a exemplo do que se pratica nos navios de guerra de outras nações, a qual será de forma retangular, tendo inscrita uma cruz formada de dezoito estrelas brancas sobre campo azul-celeste, simbolizando as províncias do Império, sob o emblema da sua primitiva denominação.
Cândido Batista de Oliveira, do meu Conselho, Ministro e Secretário d'Estado dos Negócios da Marinha, assim o tenha entendido e faça executar com os despachos necessários.
Palácio do Rio de Janeiro, em 18 de dezembro de 1847, 26.º da Independência e do Império.
Com a rubrica de Sua Majestade, o Imperador.
CÂNDIDO BATISTA DE OLIVEIRA

É curioso que se tenham numerado dezoito estrelas, já que nas armas nacionais nunca se legislou a alteração desse número (leia-se a postagem de 10/09). Com efeito, mediante o Decreto n.º 216-E, de 22 de fevereiro de 1890, o governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca renovou sob a República a vigência desse pavilhão, mas o desenho que se vê no volume 20 da Revista Marítima Brasileira (1891, estampa n.º 8) mostra a cor azul-marinha e vinte estrelas. Atualmente, denomina-se bandeira do Cruzeiro e é regulada pelo Cerimonial da Marinha do Brasil, cuja versão mais recente foi aprovada pelo comando da força em 2016, o qual a descreve como segue.

Bandeira do Cruzeiro (jaque nacional do Brasil).
Bandeira do Cruzeiro (jaque nacional do Brasil).
Art. A-2
Bandeira do Cruzeiro
A Bandeira do Cruzeiro tem cor azul-marinho, forma retangular, metade do número de panos da Bandeira Nacional que for hasteada, dividida em quatro quadriláteros iguais por uma série de estrelas brancas, uma posicionada no centro e as demais igualmente espaçadas entre si, contando-se com a do centro treze no sentido do comprimento e nove no da largura, totalizando vinte e uma estrelas.

Em suma, a do Cruzeiro era a primeira e mais alta das ordens honoríficas brasileiras, foi criada para coerir os protagonistas da Independência no mesmo projeto de nação e, por tudo isso, tornou-se um símbolo nacional.

Nota:
(1) "Prêmio àqueles que bem-merecem" e "Pedro I, Imperador do Brasil".

11/12/22

BICENTENÁRIO DA ORDEM DO CRUZEIRO: O SIGNIFICADO

A criação da Imperial Ordem do Cruzeiro visava a unir a nova nação na forma de uma monarquia constitucional.

Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, na sua História da Independência do Brasil, diz que a criação da Ordem do Cruzeiro deu lugar a "odiosas comparações", causando descontentamento. Como isso pareça inevitável, dado que a vaidade tenta o homem a julgar o prêmio menor que o seu mérito, o próprio autor assente que não havia "nada de mais belo do que a invenção e criação da mencionada Ordem do Cruzeiro em uma recente monarquia no hemisfério austral".

Assim, levando em conta a província que o galardoado representava, à qual se vinculava ou onde servia no momento das nomeações que saíram no 1.º de dezembro de 1822, obtêm-se os resultados seguintes: Ceará, três; Rio Grande do Norte, dois (1); Pernambuco, sete (2); Alagoas, três; Bahia, dezessete; Espírito Santo, dois; Rio de Janeiro, 29; São Paulo, vinte; Santa Catarina, um (3); Rio Grande do Sul, seis; Cisplatina, seis; Minas Gerais, quinze (4); Goiás, dois, e Mato Grosso, três.

É perfeitamente compreensível a ausência de Sergipe, pois embora Dom João VI tivesse separado a capitania desse nome em 1820, até então anexa à Bahia, a sua autonomia ficou suspensa desde março de 1821, quando uma tropa despachada de Salvador depôs o governador, até dezembro de 1822, quando Dom Pedro I reconheceu que constituía uma província do Império. Estranha, isso sim, que não haja nenhum nome da Paraíba, uma das províncias setentrionais que primeiro elegeram os seus deputados à Assembleia Constituinte e a única da região que esteve representada no Conselho dos Procuradores-Gerais.

Dom Pedro II na abertura do parlamento, pintura de Pedro Américo (1872), conservada no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional). A pompa imperial abrange o colar da Ordem da Rosa sobre a murça e a banda da Ordem do Cruzeiro sobre o traje. Essa mesma banda trazem a imperatriz, a princesa imperial, o conde d'Eu e o marquês de Tamandaré, que se veem na tribuna; abaixo, o visconde do Rio Branco e o visconde de Abaeté trazem a fita de dignitário da ordem.
Dom Pedro II na abertura do parlamento, pintura de Pedro Américo (1872), conservada no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional). A pompa imperial abrange o colar da Ordem da Rosa sobre a murça e a banda da Ordem do Cruzeiro sobre o traje. Essa mesma banda trazem a imperatriz, a princesa imperial, o conde d'Eu e o marquês de Tamandaré, que se veem na tribuna; abaixo, o visconde do Rio Branco e o visconde de Abaeté trazem a fita de dignitário da ordem.

Não obstante, que em novembro de 1822 no Rio de Janeiro não se soubesse de ninguém que defendesse a "causa do Brasil" no Piauí, Maranhão e Pará demonstra o quão alheias essas províncias estavam ao movimento da Independência. Com efeito, os seus deputados às Cortes extraordinárias assinaram e/ou juraram a Constituição e logo depois tomaram assento nas Cortes ordinárias. Trocando em miúdos, já corria o ano de 1823 e nos antigos estados do Maranhão e Grão-Pará ainda se sustentava o projeto do Reino Unido. Daí que o Piauí tenha aderido à Independência somente em março, após a Batalha do Jenipapo; o Maranhão e o Pará, em julho e agosto, após emissários imperiais ameaçarem as juntas provinciais de hostilidades por mar e terra. (5)

Dom Pedro II em traje civil, fotografia de Joaquim José Insley Pacheco (1879), conservada no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional). A insígnia da Ordem do Tosão de Ouro estava presa à lapela da casaca e a da Ordem do Cruzeiro pendia da casa do botão.
Dom Pedro II em traje civil, fotografia de Joaquim José Insley Pacheco (1879), conservada no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional). A insígnia da Ordem do Tosão de Ouro estava presa à lapela da casaca e a da Ordem do Cruzeiro pendia logo abaixo.

Apesar destas ponderações, penso que o sentido originário da Ordem do Cruzeiro fosse unir a nova nação na forma de uma monarquia constitucional. Daí a evidente generosidade de galardões para com os chefes políticos e os comandantes militares da Bahia e da Cisplatina, províncias que tinham aderido à Independência, exceto as suas capitais, que estavam ocupadas por forças leais às Cortes. Daí também a condecoração de tantos militares que serviam no Rio e vinham apoiando Dom Pedro desde o começo da sua regência, apoio imprescindível para a sustentação do Império. Até mesmo a preponderância do Rio, de São Paulo e de Minas reflete a concentração dos acontecimentos que levaram à separação do Brasil nessas províncias. Ainda assim, Filipe Néri Ferreira e Antônio Francisco Carneiro Monteiro tinham participado da Revolução Pernambucana e o Padre Manuel Rodrigues da Costa fora inconfidente em Minas, quase um aceno simpático a esses movimentos separatistas, duramente reprimidos sob os reinados do pai e da avó do imperador.

Armas Nacionais no timbre da Lei Áurea. Note-se que os ramos de cafeeiro e tabaco estão atados pela fita da Imperial Ordem do Cruzeiro (imagem disponível no Arquivo Nacional).
Armas nacionais no timbre da Lei Áurea. Os ramos de cafeeiro e tabaco estão atados pela fita da Imperial Ordem do Cruzeiro (imagem disponível no Arquivo Nacional).

Com efeito, mais de um aspecto dão a entender que se criou a Ordem do Cruzeiro para suplantar a Ordem de Cristo como a principal. É verdade que até a cor azul-celeste da insígnia, além da comemoração da coroação, remetem à Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, que Dom João VI criou por ocasião da sua aclamação, em 1818, como coloquei na postagem de 07/12. Mas alguns fatos respaldam aquele entendimento.

Armas do Império do Brasil no frontispício do Palácio Imperial de Petrópolis (hoje Museu Imperial). Note-se que os ramos de cafeeiro e tabaco estão atados pela fita da Imperial Ordem do Cruzeiro (imagem disponível no projeto A Casa Senhorial).
Armas do Império do Brasil no frontispício do Palácio Imperial de Petrópolis (hoje Museu Imperial). Os ramos de cafeeiro e tabaco estão atados pela fita da Imperial Ordem do Cruzeiro (imagem disponível no projeto A Casa Senhorial).

Primeiro, o próprio estatuto estabeleceu que as insígnias da Ordem do Cruzeiro deviam ser usadas como se praticava na Ordem de Cristo (art. 9.º) e equiparou ambas nos privilégios, foros e isenções que não contrariassem a Constituição (art. 11) (6). Depois, no traje majestático de Dom Pedro II, o qual, diferentemente daquele de Dom Pedro I, não cobria tanto o corpo (vide a postagem de 03/12), as insígnias que o monarca trazia eram o colar da Ordem da Rosa e a banda da Ordem do Cruzeiro, mas mesmo quando vestia traje civil, Dom Pedro II ostentava a placa dessa ordem. E o que é muito significativo: quando se tratava de reproduzir a moda de acrescentar insígnias de ordens honoríficas ao brasão, era a fita da Ordem do Cruzeiro que atava os ramos de cafeeiro e tabaco nas armas nacionais.

Enfim, o próprio nome e a própria figura da Ordem do Cruzeiro dizem muito. Ora, o Decreto de 18 de setembro de 1822 declara que a cruz da Ordem de Cristo nas armas do Brasil visava a "rememorar o primeiro nome que lhe fora imposto no seu feliz descobrimento", portanto uma figura falante, assim como as dezenove estrelas, representativas das províncias, as quais, dispostas em cruz latina, formavam a figura da Ordem do Cruzeiro, cujo nome aludia "à posição geográfica desta vasta e rica região da América austral que forma o Império do Brasil, onde se acha a grande constelação do Cruzeiro, e igualmente em memória do nome, que teve sempre este Império desde o seu descobrimento, de Terra de Santa Cruz".

Notas:
(1) Tomás Xavier Garcia de Almeida era do Rio Grande do Norte e em seguida representou a província na Assembleia Constituinte, mas à data da nomeação à ordem era juiz de fora do Recife.
(2) José Gabriel de Morais Mayer era de Pernambuco, mas à data da nomeação à ordem estava na força expedicionária dessa província para libertar a Bahia.
(3) Joaquim Xavier Curado era procurador-geral de Santa Catarina e governador das armas da Corte.
(4) João Evangelista de Faria Lobato era de Minas Gerais e em seguida representou a província na Assembleia Constituinte, mas à data da nomeação à ordem era desembargador da Relação de Pernambuco.
(5) Além disso, a insurreição conhecida como Vilafrancada restaurou o absolutismo em Portugal desde maio, frustrando grandemente os liberais do Maranhão e Pará. De todo modo, nem em São Luís nem em Belém havia tropas que fizessem frente a um ataque das forças armadas do Império.
(6) Como notei na dita postagem de 07/12, a Constituição de 1824 desconhecia privilégios, foros e isenções (art. 179, XV, XVI, XVII).

09/12/22

BICENTENÁRIO DA ORDEM DO CRUZEIRO: AS PRIMEIRAS NOMEAÇÕES

As primeiras nomeações da Ordem do Cruzeiro distinguiram os protagonistas da Independência do Brasil.

O estatuto da Imperial Ordem do Cruzeiro, no artigo 3.º, limitava o número de grã-cruzes a oito efetivos e quatro honorários; o de dignitários, a trinta efetivos e quinze honorários; o de oficiais, a duzentos efetivos e 120 honorários, e não limitava o número de cavaleiros. As primeiras nomeações saíram no suplemento ao n.º 145 da Gazeta do Riodois grã-cruzes, doze dignitários, 34 oficiais e 85 cavaleiros. Transcrevo abaixo as listas desses galardoados, acrescentando o ofício ou cargo de cada um à data e nos meses seguintes, sempre que me foi possível achar tais informações, e o título nobiliário (no maior grau) daqueles que receberam um depois. O objetivo é analisar o sentido da Ordem do Cruzeiro no ato da sua criação.

Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, grã-cruz da Imperial Ordem do Cruzeiro (litografia de Sébastien-Auguste Sisson, 1861; imagem disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin).
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, grã-cruz da Imperial Ordem do Cruzeiro (litografia de Sébastien-Auguste Sisson, 1861; imagem disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin).

GRÃ-CRUZES
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, deputado eleito por São Paulo à Assembleia Constituinte (1) e ex-deputado da mesma província às Cortes de Lisboa;
Joaquim Xavier Curado, governador das armas da Corte, procurador-geral de Santa Catarina (2) e depois conde de São João das Duas Barras.

Capitão-Mor José Joaquim da Rocha, dignitário da Imperial Ordem do Cruzeiro (litografia de Sébastien-Auguste Sisson, 1861; imagem disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin).
Capitão-Mor José Joaquim da Rocha, dignitário da Imperial Ordem do Cruzeiro (litografia de Sébastien-Auguste Sisson, 1861; imagem disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin).

DIGNITÁRIOS
Cipriano José Barata de Almeida, ex-deputado da Bahia às Cortes de Lisboa e logo deputado eleito pela mesma província à Assembleia Constituinte; (3)
José Fernando Carneiro Leão, guarda-roupa do imperador, coronel comandante do 1.º Regimento de Cavalaria de Milícias da Corte e depois conde de Vila Nova de São José;
Francisco Elesbão Pires de Carvalho e Albuquerque, presidente do Conselho Interino de Governo da Bahia e depois barão de Jaguaripe;
Francisco Gomes Brandão Montezuma, secretário do Conselho Interino de Governo da Bahia, logo deputado dessa província à Assembleia Constituinte e depois visconde de Jequitinhonha;
Monsenhor Francisco Moniz Tavares, deputado eleito por Pernambuco à Assembleia Constituinte e ex-deputado da mesma província às Cortes de Lisboa;
João de Deus Mena Barreto, presidente da Junta de Governo Provisório do Rio Grande do Sul e depois visconde de São Gabriel;
José Egídio Gordilho Veloso de Barbuda, camarista do imperador, seu emissário no Exército Pacificador da Bahia e depois visconde de Camamu;
José Joaquim da Rocha, capitão-mor da cidade de Mariana e deputado suplente eleito por Minas Gerais às Cortes de Lisboa;
José Lino dos Santos Coutinho, ex-deputado da Bahia às Cortes de Lisboa;
Manuel Antônio Farinha, chefe de esquadra da Armada e depois conde de Sousel;
Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, deputado eleito por São Paulo à Assembleia Constituinte e ex-deputado da mesma província às Cortes de Lisboa;
Tomás García de Zúñiga, síndico-procurador da Cisplatina e depois barão de Calera.

Visconde de São Leopoldo, oficial da Imperial Ordem do Cruzeiro (litografia de Sébastien-Auguste Sisson, 1861; imagem disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin).
Visconde de São Leopoldo, oficial da Imperial Ordem do Cruzeiro (litografia de Sébastien-Auguste Sisson, 1861; imagem disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin).

OFICIAIS
Afonso de Albuquerque Maranhão, deputado eleito pelo Rio Grande do Norte às Cortes de Lisboa;
Antônio Leite Pereira da Gama Lobo, comandante da Guarda de Honra;
Carlos Frederico Lecor, barão da Laguna e depois visconde, comandante do Exército do Sul na Cisplatina;
Padre Belquior Pinheiro de Oliveira, deputado eleito por Minas Gerais às Cortes de Lisboa e em seguida pela mesma província à Assembleia Constituinte;
Bento Barroso Pereira, coronel comandante do Batalhão de Granadeiros da Corte;
Dom Mateus de Abreu Pereira, bispo de São Paulo e presidente da junta trina interina da província;
Caetano Pinto de Miranda Montenegro, ministro da Justiça e depois marquês de Vila Real da Praia Grande;
Cândido Xavier de Almeida e Sousa, governador das armas de São Paulo, membro da junta trina interina da mesma província e em seguida presidente da Junta de Governo Provisório dela;
Egas Moniz Telo de Sampaio, tenente de cavalaria;
Felisberto Caldeira Brant Pontes, encarregado de negócios em Londres, logo deputado da Bahia à Assembleia Constituinte e depois marquês de Barbacena;
Fernando Teles da Silva, governador das armas do Espírito Santo;
Filipe Néri Ferreira, deputado da Junta de Governo Provisório de Pernambuco;
Francisco da Costa de Sousa de Macedo, mordomo-mor da imperatriz, tenente-coronel comandante do Batalhão de Caçadores da Corte e depois marquês da Cunha;
Francisco Maria Gordilho Veloso de Barbuda, brigadeiro ajudante-general do governo das armas da Corte e depois barão de Pati do Alferes, visconde de Lorena e marquês de Jacarepaguá;
Francisco Antônio da Silva Pacheco, chefe de esquadra da Armada;
Francisco de França e Miranda, desembargador da Relação da Bahia com exercício na Casa da Suplicação e ajudante do intendente-geral de Polícia da Corte;
Hipólito José da Costa Pereira, editor do Correio Brasiliense;
Isidoro de Almada e Castro, coronel comandante da Brigada de Artilharia Montada da Corte;
João Maria da Gama Freitas Berquó, camarista do imperador e capitão comandante da Guarda de Archeiros;
Juan José Durán, governador intendente da Cisplatina;
Joaquim José de Almeida, tenente-coronel comandante do Batalhão de Caçadores da Corte;
Joaquim Inácio de Siqueira Bulcão, capitão-mor da vila de São Francisco, na província da Bahia, e depois barão de São Francisco;
Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, coronel ajudante-general do Exército Pacificador da Bahia e depois visconde de Pirajá;
José Antônio da Silva Castro, comandante do Batalhão dos Voluntários do Príncipe (alcunhados de Periquitos e ele mesmo, de Periquitão), na província da Bahia;
José Garcia Pacheco de Moura Pimentel e Aragão, comandante do Regimento de Cavalaria de Milícias da vila da Cachoeira, na província da Bahia;
José Feliciano Fernandes Pinheiro, deputado eleito pelo Rio Grande do Sul à Assembleia Constituinte, ex-deputado de São Paulo às Cortes de Lisboa e depois visconde de São Leopoldo;
José Joaquim de Lima, coronel comandante do 2.º Batalhão de Fuzileiros da Corte, em seguida comandante do Batalhão do Imperador, logo comandante do Exército Pacificador da Bahia e depois visconde de Magé;
José Arouche de Toledo Rendon, deputado eleito por São Paulo à Assembleia Constituinte;
José Mariano de Azeredo Coutinho, veador da imperatriz e procurador-geral do Rio de Janeiro;
Lucas José Obes, procurador-geral da Cisplatina;
Manuel Inácio Cavalcanti de Lacerda, deputado eleito por Pernambuco à Assembleia Constituinte e depois barão de Pirapama;
Manuel Marques de Sousa, comandante da cavalaria na Cisplatina;
Marcelo Joaquim Mendes, brigadeiro graduado do 2.º Batalhão de Fuzileiros da Corte;
Nicolás Herrera, ouvidor decano da Câmara de Apelações da Cisplatina.

Barão de Paraopeba, cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro (retrato conservado no Museu da Imagem e Memória, Congonhas, MG; imagem disponível na Wikimedia Commons).
Barão de Paraopeba, cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro (retrato conservado no Museu da Imagem e Memória, Congonhas, MG; imagem disponível na Wikimedia Commons).

CAVALEIROS
Antero José Ferreira de Brito, coronel agregado de 2.ª linha, em seguida quartel-mestre-general do Exército Pacificador da Bahia e depois barão de Tramandaí;
Antônio Barroso Pereira, capitão do 5.º Regimento de Cavalaria de Milícias da Corte e depois barão de Entre Rios;
Antônio de Sousa Leme;
Antônio Constantino de Oliveira;
Antônio de Meneses Vasconcelos de Drumond, contador da Chancelaria-Mor;
Antônio José Dias Coelho, governador das armas de Minas Gerais;
Antônio Manuel Correia da Câmara, cônsul em Buenos Aires;
Antônio Gonçalves da Cruz, cônsul em Filadélfia;
Antônio Navarro de Abreu, deputado da Junta de Governo Provisório de Mato Grosso e em seguida deputado eleito pela mesma província à Assembleia Constituinte;
Antônio de Almeida Silva Freire da Fonseca, juiz de fora da vila de Taubaté, na província de São Paulo;
Antônio Manuel da Silveira Sampaio, brigadeiro e em seguida vogal do Conselho Supremo Militar;
Antônio Francisco Carneiro Monteiro, comerciante, alferes de ordenança e homem-bom da vila do Recife, na província de Pernambuco;
Alexandre José de Melo, capitão-mor da vila das Alagoas;
Anastácio de Freitas Trancoso, coronel da Legião de Tropas Ligeiras de São Paulo e em seguida deputado da Junta de Governo Provisório da província;
Bento de Araújo Lopes Vilas Boas, coronel comandante do Regimento de Cavalaria de Milícias da vila de São Francisco, na província da Bahia, e depois barão de Maragogipe;
Bernardo José da Gama, deputado eleito por Pernambuco à Assembleia Constituinte e depois visconde de Goiana;
Dom José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro, capelão-mor e deputado eleito pela província à Assembleia Constituinte;
Bispo de Kerman; (4)
Dom Frei José da Santíssima Trindade, bispo de Mariana;
Caetano Maria Lopes Gama, ouvidor da comarca das Alagoas, deputado eleito pela província à Assembleia Constituinte e depois visconde de Maranguape;
Francisco Pinto Ferraz, capitão do Regimento de Cavalaria de Milícias da cidade de São Paulo;
Francisco das Chagas Santos, marechal de campo do Exército e deputado eleito pelo Rio Grande do Sul à Assembleia Constituinte;
Francisco de Paula Sousa e Melo, deputado eleito por São Paulo à Assembleia Constituinte;
Francisco Afonso de Meneses de Sousa Coutinho (5), capitão de fragata da Armada e depois marquês de Maceió;
Francisco Xavier Torres, governador das armas do Ceará;
Francisco Isidoro Batista da Silva, juiz de fora da vila de São João del-Rei, na província de Minas Gerais;
Francisco Manuel de Paula, provedor-mor da Saúde e depois barão da Saúde;
Francisco Ornelas Barreto;
Francisco de Paula e Vasconcelos, tenente-coronel comandante do Forte do Pico, na vila da Praia Grande, província do Rio de Janeiro;
Félix Merme, deputado da Junta de Governo Provisório de Mato Grosso;
Gaspar Francisco Mena Barreto, comandante do Esquadrão de Dragões da vila de Porto Alegre;
Gomes Freire de Andrade, coronel do Regimento de Cavalaria de Linha de Vila Rica e depois barão de Itabira;
Jaime Jeremias Joaquim Mendes, tenente do 5.º Regimento de Cavalaria de Milícias da Corte;
Jerônimo Cavalcanti de Albuquerque, deputado da Junta de Governo Provisório de Alagoas;
João Luciano de Sousa Guerra Araújo Godinho, coronel comandante do 4.º Regimento de Cavalaria de Milícias de Vila Rica;
João Ferreira Bueno, cônego da Sé de São Paulo;
João Inácio da Cunha, intendente-geral de Polícia da Corte, chanceler da Ordem e depois visconde de Alcântara;
João José de Guimarães Silva, deputado da Junta de Governo Provisório de Mato Grosso;
João Evangelista de Faria Lobato, desembargador da Relação de Pernambuco e em seguida deputado eleito por Minas Gerais à Assembleia Constituinte;
João Carvalho Raposo, criado particular de Dom Pedro I;
Joaquim José de Morais e Abreu, tenente-coronel do 1.º Regimento de Cavalaria de Milícias da cidade de São Paulo;
Joaquim Aranha Barreto de Camargo, governador das armas da vila de Santos, na província de São Paulo;
Joaquim Mariano Gurgel do Amaral, vigário da freguesia de São João del-Rei, na província de Minas Gerais;
Joaquim Alberto da Silveira, major de cavalaria;
José Joaquim César de Cerqueira Leme, coronel comandante do 3.º Regimento de Infantaria de Milícias da cidade de São Paulo;
José da Silva Lisboa, desembargador da Casa da Suplicação, deputado da Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Império e depois visconde de Cairu;
José de Abreu, marechal de campo do Exército, governador das armas do Rio Grande do Sul e depois barão de Cerro Largo;
José Correia Pacheco, membro da junta trina interina de São Paulo e em seguida secretário da Junta de Governo Provisório da mesma província;
José de Medeiros Gomes, ouvidor da comarca de Itu, na província de São Paulo;
José Teodoro, capitão do Regimento de Cavalaria de Linha de Vila Rica;
José Francisco de Andrade de Almeida Monjardim, deputado da Junta de Governo Provisório do Espírito Santo;
José Manuel de Morais, governador das armas da vila dos Campos dos Goitacases, na província do Espírito Santo;
José Raimundo dos Passos Porbém Barbosa, presidente da Junta de Governo Provisório do Ceará;
José Rodrigues Jardim, secretário da Junta de Governo Provisório de Goiás;
José da Silva Brandão, coronel comandante do Regimento de Cavalaria de Linha de Vila Rica;
José da Câmara Coutinho;
José Gabriel de Morais Mayer, segundo-tenente da força expedicionária pernambucana na Bahia;
José Joaquim dos Santos, capitão que evitou o motim da tropa em São Paulo em junho de 1821 (?);
José Leite Pacheco, major comandante do 1.º Batalhão do Exército Pacificador da Bahia;
José Frederico Pascoal Colona, major comandante do 1.º Batalhão Provisório do Exército Pacificador da Bahia;
Inácio José de Sousa Ferreira, cônego da Sé de Mariana;
Lázaro José Gonçalves, comandante da 1.ª Brigada do Exército;
Luís Augusto May, editor d'A Malagueta;
Luís José de Godói Torres, físico-mor de Minas Gerais;
Padre Luís Gonzaga de Camargo Fleury, deputado da Junta de Governo Provisório de Goiás;
Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, professor da Imperial Academia Militar e editor da Gazeta do Rio e d'O Espelho;
Manuel Carneiro da Fontoura, coronel do estado-maior do governo das armas do Rio Grande do Sul;
Manuel de Vasconcelos de Sousa Baiana, capitão do Regimento de Cavalaria de Milícias da vila de São Francisco, na província da Bahia;
Padre Manuel Rodrigues da Costa, fazendeiro de Barbacena e em seguida deputado eleito por Minas Gerais à Assembleia Constituinte;
Manuel Joaquim de Ornelas, vereador da Câmara de São Paulo e em seguida deputado da Junta de Governo Provisório de São Paulo;
Manuel Rodrigues Gameiro Pessoa, encarregado de negócios em Paris e depois visconde de Itabaiana;
Padre Manuel Pinto de Castro, presidente da Junta de Governo Provisório do Rio Grande do Norte;
Manuel José de Melo, capitão-mor da vila de Guaratinguetá, na província de São Paulo (?);
Mariano Antônio de Amorim Carrão, tesoureiro da Ordem;
Miguel Nunes Vidigal, coronel comandante da Guarda de Polícia;
Pedro Gomes Nogueira, coronel comandante do 1.º Regimento de Cavalaria de Milícias da comarca do Rio das Velhas, na província de Minas Gerais;
Pedro José da Costa Barros, deputado eleito pelo Ceará às Cortes de Lisboa e em seguida à Assembleia Constituinte;
Pedro José de Brito Caminha, tenente-coronel comandante do Regimento de Infantaria de Milícias da vila de Itu, na província de São Paulo;
Pedro Dias de Macedo Pais Leme, guarda-roupa do imperador e depois marquês de Quixeramobim;
Rodrigo Antônio Falcão, coronel agregado ao Regimento de Cavalaria de Milícias da vila da Cachoeira, na província da Bahia, e depois barão de Belém;
Romualdo José Monteiro de Barros, deputado da Junta de Governo Provisório de Minas Gerais e depois barão de Paraopeba;
Simão Gomes Ferreira Veloso, deputado da vila de Inhambupe ao Conselho Interino de Governo da Bahia;
Tomás Xavier Garcia de Almeida, juiz de fora da vila do Recife, na província de Pernambuco, e em seguida deputado eleito pelo Rio Grande do Norte à Assembleia Constituinte;
Padre Manuel Gonçalves Pereira, vigário da freguesia da Saubara, na província da Bahia;
Vicente da Costa Taques Góis e Aranha, capitão-mor da vila de Itu, na província de São Paulo.

Portanto, 133 galardoados. De cinco nada pude saber e de dois, apenas que eram militares. Além destes dois, mais 61 também o eram, ou melhor, estavam no exercício de ofícios militares ou milicianos. Treze comandavam unidades que formavam a guarnição da Corte e província do Rio de Janeiro e mais sete serviam aí. Cinco eram governadores das armas das províncias (Ceará, Espírito Santo, São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais) e dois, de vilas (Campos dos Goitacases e Santos). Outros seis comandavam tropas provinciais (três de Minas, dois de São Paulo e um do Rio Grande do Sul) e mais oito serviam nessas tropas (quatro em São Paulo, dois no Rio Grande do Sul e dois em Minas). Havia, ainda, quatro capitães-mores (de Alagoas, de Guaratinguetá, de Itu e de Mariana) e sete cabeças das milícias que lutavam contra a ocupação portuguesa de Salvador, além de quatro oficiais do Exército Libertador da Bahia. Foram também condecorados dois comandantes do Exército do Sul, que assegurava a Cisplatina, e da Armada dois chefes de esquadra e um capitão de fragata.

"Mapa do Brasil". Desenho de Ch. Wagner e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).
"Mapa do Brasil". Desenho de Ch. Wagner e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

Abundavam, igualmente, os governantes e representantes das províncias: 36. Além do procurador-geral de Santa Catarina, que acumulava o governo das armas da Corte, também se distinguiram um procurador-geral do Rio de Janeiro e o da Cisplatina. Nove outros tinham sido eleitos às Cortes de Lisboa (um pelo Ceará, um pelo Rio Grande do Norte, um por Pernambuco, dois pela Bahia e três por São Paulo) e destes sete foram reeleitos à Assembleia Constituinte (aqueles de Pernambuco, da Bahia e de São Paulo, um desta província pelo Rio Grande do Sul). A estes somavam-se mais cinco constituintes eleitos (dois de Pernambuco, um de Alagoas e dois de São Paulo). Nos governos provinciais, doze faziam parte das juntas provisórias (um do Ceará, do Rio Grande do Norte, de Pernambuco, de Alagoas, do Espírito Santo, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais; três de Mato Grosso; dois de Goiás) e três, do Conselho Interino de Governo da Bahia. Condecoraram-se, ademais, a junta trina interina de São Paulo e os chefes políticos da Cisplatina.

Ainda na administração pública, galardoaram-se três juízes de fora (do Recife, de Taubaté e de São João del-Rei), dois desembargadores (da Relação de Pernambuco e da Casa da Suplicação), um vereador de São Paulo, o ouvidor da comarca de Itu, o físico-mor de Minas Gerais, um contador da Chancelaria-Mor, o provedor-mor da Saúde e o ministro da Justiça. Dom Pedro I honrou também o tesoureiro da ordem, um dos seus guarda-roupas e um dos seus criados particulares. Fora do país, distinguiram-se os diplomatas que serviam em Londres, Paris, Filadélfia e Buenos Aires.

Já na administração eclesiástica, além do bispo capelão-mor e o de Mariana, que celebraram a sagração e coroação do imperador, condecoraram-se um cônego desta sé e outro da paulistana, o vigário de São João del-Rei e o de Saubara. Também o Padre Manuel Rodrigues da Costa, que era fazendeiro em Barbacena. Outros galardoados foram os editores do Correio Brasiliense, d'A Malagueta e da Gazeta do Rio e d'O Espelho e um comerciante do Recife.

Portanto, desde o veterano tenente-general Curado, que comandou as forças leais a Dom Pedro no episódio do Fico, até o criado Carvalho Raposo, que assistiu ao Grito do Ipiranga; desde o deputado Andrada Machado, que propugnou os interesses brasileiros em Lisboa, até o capitão-mor José Joaquim da Rocha, que, também eleito, permaneceu no Rio de Janeiro, articulando o boicote da bancada mineira às Cortes e o apoio dela ao príncipe regente; desde o barão da Laguna, que sustentava com grandes dificuldades a adesão da Cisplatina ao Império, até o Periquitão, que ordenou uma milícia para lutar contra o exército português na Bahia, a generalidade das primeiras nomeações da Ordem do Cruzeiro distinguiu os protagonistas da Independência do Brasil.

Notas:
(1) As eleições à Assembleia Constituinte ocorreram em setembro em Alagoas, Rio de Janeiro e Paraíba; em outubro, em Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo; em novembro, em Santa Catarina; em dezembro, em Mato Grosso, Minas Gerais e Ceará; em janeiro de 1823, no Rio Grande do Norte e Goiás; em maio, na Bahia.
(2) O termo procurador referia a um delegado: os procuradores-gerais eram os delegados das províncias brasileiras no conselho que Dom Pedro criou pelo Decreto de 16 de fevereiro de 1821; os procuradores das câmaras municipais eram os delegados que as representavam em missão.
(3) Recusou a condecoração.
(4) Não consta em nenhum lugar o nome desse bispo. Kerman é uma cidade do Irã, o que supõe um título episcopal in partibus, mas nem está na lista das dioceses titulares nem havia nenhum bispo auxiliar no Brasil em 1822. No Coroação de Dom Pedro I, quadro de Jean-Baptiste Debret, veem-se seis prelados de mitra, talvez sete. Licença poética ou terão sido abades mitrados? Ora, é muito duvidoso que no Rio de Janeiro à data estivesse presente mais algum bispo além do celebrante e do assistente conhecido, isto é, o de Mariana, pois se sabe que os demais das dioceses e prelazias brasileiras (Salvador, São Luís, Belém, São Paulo, Goiás e Cuiabá; a sé de Olinda estava vacante) não estavam. Cumpre notar, porém, que o Pontificale Romanum prescreve três bispos para a celebração da sagração e coroação, o que dá lugar a especular se esse bispo de Kerman existiu.
(5) No despacho saiu o nome de seu tio: Francisco Maurício de Meneses de Sousa Coutinho.

07/12/22

BICENTENÁRIO DA ORDEM DO CRUZEIRO: A CRIAÇÃO

A Imperial Ordem do Cruzeiro foi a primeira ordem honorífica do Brasil.

"Ordens brasileiras". Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).
"Ordens brasileiras": 1 – placa da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa; 2 e 3 – insígnia da Imperial Ordem do Cruzeiro; 4 e 5 – insígnias da Imperial Ordem de Pedro I; 6 – placa da Imperial Ordem do Cruzeiro; 7 – placa da Imperial Ordem de Pedro I. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

Há pouco mais de duzentos anos, por ocasião da coroação de Dom Pedro I, criou-se a primeira ordem honorífica do Brasil: a Imperial Ordem do Cruzeiro. Nos livros de história, costuma-se mencionar tal fato como mera curiosidade, mas no campo da emblemática tem uma relevância muito maior do que aparenta. Como é neste campo que estamos, o leitor há de me perdoar a transcrição íntegra do Decreto de 1.º de dezembro de 1822.

DECRETO DO 1.º DE DEZEMBRO DE 1822
Cria a Imperial Ordem do Cruzeiro.
Desejando eu assinalar por um modo solene e memorável a época da minha aclamação, sagração e coroação como Imperador Constitucional do Brasil e seu Perpétuo Defensor, por ser a mais importante para esta Monarquia, acabando de firmar a sua independência, representação política e futura grandeza e prosperidade, manifestando-se assim ao mesmo tempo à face das nações o brio, amor e lealdade do grande povo que me elevou, por unânime espontaneidade, ao grau sublime de seu Imperador Constitucional, e sendo prática constante e justa dos augustos imperantes e particularmente dos senhores reis, meus predecessores, criar novas ordens de cavaleria para melhor perpetuarem as épocas memoráveis de seus governos e com especialidade de meu augusto pai, o Senhor Dom João VI, Rei de Portugal e Algarves, que pela sua feliz chegada às plagas deste Império renovou e ampliou a antiga Ordem da Torre e Espada em 13 de maio de 1808 e, alguns anos depois, criou no dia 6 de fevereiro de 1818, em que fora aclamado na sucessão da Coroa, a Ordem Militar da Conceição, por todos estes ponderosos motivos e por querer, outrossim, aumentar com a minha Imperial Munificência os meios de remunerar os serviços que me têm prestado e houverem de prestar os súditos do Império e os beneméritos estrangeiros, que preferem estas distinções honoríficas a quaisquer outras recompensas, e também para poder dar mais uma prova da minha alta consideração e amizade às personagens da maior jerarquia e merecimentos que folgarem com este meu sinal de estimação, hei por bem — em alusão à posição geográfica desta vasta e rica região da América austral que forma o Império do Brasil, onde se acha a grande constelação do Cruzeiro, e igualmente em memória do nome, que teve sempre este Império desde o seu descobrimento, de Terra de Santa Cruz — criar uma nova ordem honorífica, denominada Imperial Ordem do Cruzeiro, a qual será governada e regulada interinamente pelos artigos seguintes, que servirão de base aos estatutos gerais e permanentes que se hajam de fazer para o futuro.
1.º A mim e aos imperadores que me sucederem no Trono do Brasil pertence o título e autoridade de Grão-Mestre desta Ordem Imperial.
2.º O expediente dos negócios da Ordem é confiado a um chanceler, que despachará imediatamente comigo.
3.º A Ordem constará: primeiro, de cavaleiros, cujo número será ilimitado; segundo, de duzentos oficiais efetivos e cento e vinte honorários; terceiro, de dignitários, dos quais serão trinta efetivos e quinze honorários; quarto, de oito grão-cruzes (1) efetivos e quatro honorários.
4.º As pessoas da minha Imperial Família e os estrangeiros a quem, por sua alta jerarquia e merecimentos, eu houver por bem conferir as condecorações desta Ordem serão reputados supranumerários e não prestarão juramento.
5.º Os membros honorários da Ordem de qualquer dos graus não poderão passar ao grau superior antes de serem efetivos nos antecedentes.
6.º Depois da primeira promoção, cujas nomeações dependem da minha Imperial Escolha e Justiça, ninguém poderá ser admitido a cavaleiro sem provar ao menos vinte anos de distinto serviço militar, civil ou científico, exceto nos casos de serviços extraordinários e relevantíssimos que mereçam da minha Imperial Munificência dispensa neste artigo fundamental.
7.º Estabelecida regularmente a Ordem, nenhum cavaleiro poderá passar a oficial sem contar quatro anos de antiguidade no seu grau; para poder este ser promovido a dignitário, deverá ter três anos de oficial; e para grão-cruz (1), cinco anos de dignitários. Aos militares, porém, estando em campanha, cada ano de guerra lhes será contado por dous de serviço ordinário para este fim.
8.º A insígnia desta Ordem será, para os simples cavaleiros, uma estrela da forma que mostra o padrão que com este baixa, esmaltada de branco, decorada com coroa imperial e assentando sobre uma coroa emblemática das folhas de tabaco e café, esmaltadas de verde. Terá no centro, em campo azul-celeste, uma cruz formada de dezenove estrelas esmaltadas de branco e na circunferência deste campo, em círculo azul-ferrete, a legenda a Benemerentium præmium (2) em ouro polido. A medalha no reverso, em lugar da cruz, terá a minha Imperial Efígie em ouro e campo do mesmo metal, com a seguinte legenda no círculo azul-ferrete Petrus I, Brasiliæ Imperator (2). Os oficiais da Ordem, os dignitários e grãos-cruzes usarão também da chapa que se observará no padrão em n. 1 e da forma abaixo prescrita.
9.º Os cavaleiros usarão da insígnia ou venera enfiada em fita azul-celeste, atada em uma das casas do lado esquerdo do vestido ou farda de que usarem, como se pratica na Ordem de Cristo. Os oficiais usarão, além disto, da chapa ou bordado no lado esquerdo do vestido ou farda. Os dignitários, além da chapa no vestido ou farda, trarão a insígnia pendente de fita larga ao pescoço. Finalmente, os grãos-cruzes, além da chapa, trarão a tiracolo as bandas ou fitas largas de azul-celeste com a medalha da Ordem.
10. Nas funções solenes da Ordem, virão todos os membros dela ornados de manto branco, com cordões e alamares de cor azul-celeste e com a insígnia bordada sobre o ombro esquerdo no manto, conforme as suas graduações.
11. Esta Ordem gozará de todos os privilégios, foros e isenções de que goza a Ordem de Cristo no que não for contrário à Constituição do Império.
12. Aos grãos-cruzes da Ordem competirá o tratamento de Excelência quando já o não tenham pelas graduações em que estiverem, assim como aos dignitários o tratamento de Senhoria.
13. Aos grãos-cruzes que falecerem se farão as honras funerais militares que competem aos tenentes-generais; aos dignitários, as dos brigadeiros; aos oficiais, as dos coronéis; e finalmente aos cavaleiros, as dos capitães. E quando vivos, se lhes farão as continências militares correspondentes às graduações acima mencionadas.
14. No 1.º dia de dezembro, aniversário da minha coroação, haverá na Capela Imperial da Corte a Festa da Ordem e no mesmo dia se publicarão as novas promoções da mesma. A esta festa assistirão todos os membros da Ordem que se acharem dentro de três léguas da Corte.
15. Esta Ordem Imperial, para prêmio dos serviços dos seus membros e para conservação do seu esplendor e dignidade, terá uma dotação proporcionada aos seus nobres e importantes fins, estabelecendo-se um número certo de tenças e comendas de diversas lotações, na forma que deliberar a Assembleia Legislativa do Império do Brasil.
16. Todos os que forem promovidos aos diferentes graus desta Ordem prestarão juramento solene nas mãos do Chanceler da Ordem de serem fiéis ao Imperador e à Pátria, de que se fará assento em um livro destinado para este fim.
17. As nomeações serão feitas por decretos assinados pelo Grão-Mestre e referendados pelo Chanceler da Ordem, que expedirá depois o competente diploma para servir de título ao agraciado, o qual terá prestado previamente o juramento acima mencionado por si ou, no caso de legítimo impedimento, por seu bastante procurador, depois de obtida para isto a licença necessária, do que tudo se fará assento, tanto no livro da matrícula como no reverso do diploma.
18. Na Chancelaria da Ordem não se levarão emolumentos alguns mais do que o feitio e registro dos diplomas. Ficam, porém, obrigados os agraciados a dar uma joia qualquer, a seu arbítrio, para a dotação de uma caixa de piedade, destinada para mantença dos membros pobres da Ordem ou que por casos fortuitos ou desgraças caírem em pobreza.
19. Finalmente, todo e qualquer membro desta Ordem que cometer o que Deus não permita, algum crime contra a honra e contra o juramento prestado será expulso da Ordem, perderá todos os foros, privilégios e isenções e ficará inibido para sempre do uso da insígnia da mesma Ordem, havendo sentença condenatória pelo juiz competente.
O Chanceler da Ordem Imperial do Cruzeiro, os meus Ministros e Secretários de Estado das diferentes repartições e todas as autoridades constituídas, a quem o conhecimento e execução deste meu Imperial Decreto possa pertencer, assim o tenham entendido e façam cumprir e executar.
Palácio do Rio de Janeiro, em o 1.º de dezembro de 1822, 1.º da Independência e do Império.
Com a rubrica de Sua Majestade Imperial.
JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADE E SILVA

Logo no ano seguinte, imprimiu-se um panfleto intitulado Análise ao Decreto do 1 de dezembro de 1822, sobre a criação da nova Ordem do Cruzeiro, cuja autoria tem sido atribuída a Cipriano Barata, ex-deputado da Bahia às Cortes de Lisboa, deputado eleito pela mesma província à Assembleia Constituinte (porém nesta não tomou assento), editor da Sentinela da Liberdade no Recife e um dos nomeados a dignitário, mercê que recusou. Abstraindo os acérrimos ataques ao gabinete de Dom Pedro I, há argumentos ilustrativos das correntes de pensamento que concorriam então:

Por seguirmos o nosso plano de brevidade, ponhamos de parte tudo quanto dizem os outros artigos até o undécimo. Este, pela sua matéria, é certamente um dos que envolvem maiores agravos aos olhos dos brasileiros, o que manifestamente apresenta o mais escarnado arbítrio. Diz o artigo: "gozará de todos os privilégios, foros e isenções de que goza a Ordem de Cristo". Eis aqui uma miscelânea que tira toda a dúvida de pretenderem os ministros do Rio de Janeiro fundar um governo aristocrático, deslumbrando os olhos dos incautos brasileiros com ornatos de fitas e medalhas e os espíritos fracos com promessas de privilégios, foros, isenções etc. Lisonjear o coração humano sempre foi arma dos tiranos e a mais perigosa à pátria, mas felizmente o artifício não tem lugar no dia de hoje, em que o nosso corpo legislativo tudo pode prover, acautelar, pois que só a ele pertence decretar etc. Todavia, eu sempre perguntarei aos ministros, que deram à Sua Majestade Imperial a assinar sub-repticiamente este decreto sem o ler nem refletir, se não é espalhar um terrível fermento de nova revolução tocar em privilégios, foros e isenções neste tempo de luzes, em que se têm diante dos olhos mil sublimes instruções, reformas e leis da Constituição portuguesa, e nesta ocasião, em que se esperam outras semelhantes do nosso Congresso no Rio e em que se não podem sofrer e de fato se hão de extinguir privilégios, foros e isenções. Se todos são iguais perante a lei e deve haver responsabilidade segundo a mesma lei, como é que arrojadamente se fala em privilégios, foros e isenções? Eu não posso duvidar que, havendo padecido a antiga nação portuguesa (e nós com ela) grandes males por estes privilégios, foros e isenções, ninguém dará apoio no Brasil a tão corrupto sistema. Se Sua Majestade Imperial tivesse extinto as três ordens de Cristo, Avis e Santiago como ordens da nação portuguesa, que hoje nos é estranha; se conservasse as da Torre e Espada e Conceição, privativas do Brasil, por serem criadas no Rio de Janeiro, esperando que as nossas Cortes brasileiras instituíssem esta do Cruzeiro para distinção honorífica dos beneméritos da pátria exclusivamente com alguma insígnia que os cobrisse de glória, assim como em tempos antigos se premiavam as melhores ações dos heróis de Roma com uma coroa de loiro; se não se tomassem na boca estas palavras detestáveis — privilégios, foros e isenções — cada uma das quais prova com evidência a restauração do despotismo por meio de nova classe de cidadãos, que só servem para pesar sobre o resto da sociedade, neste caso daríamos talvez alguma desculpa aos ministros e esperaríamos que o semivivo monstro do despotismo não inficionasse com hálito pestilento as bem-aventuradas plagas brasileiras.

Portanto, não se combatia propriamente a criação de uma ordem honorífica nova, mas que o fons honorum fosse a Coroa, e não a nação. Efetivamente, esse pensamento demonstra que certos liberais entendiam a monarquia constitucional como uma espécie de república coroada. Por outro lado, a Constituição de 1824 provaria que todo o acusatório de restauração absolutista não passava de alarde retórico:

Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que têm por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império pela maneira seguinte.
[...]
XIII. A lei será igual para todos, quer proteja quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um.
XIV. Todo o cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos ou militares, sem outra diferença que não seja a dos seus talentos e virtudes.
XV. Ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção dos seus haveres.
XVI. Ficam abolidos todos os privilégios que não forem essencial e inteiramente ligados aos cargos, por utilidade pública.
XVII. À exceção das causas que por sua natureza pertencem a juízos particulares, na conformidade das leis, não haverá foro privilegiado nem comissões especiais nas causas cíveis ou crimes.

Com efeito, Dom Pedro I calcou a criação da Ordem do Cruzeiro na Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, que Dom João VI criara por ocasião da sua aclamação, aos 6 de fevereiro de 1818, e estatuíra pelo Alvará de 10 de setembro de 1819. Todavia, mesmo no ocaso do Antigo Regime, as grã-cruzes honorárias dessa ordem eram conferidas a pessoas que tinham títulos; as comendas, a fidalgos filhados; as mercês de cavaleiro, aos nobres e empregados que faziam serviços ao rei ou mereciam a sua "real contemplação" (art. 5.º) e todos deviam jurar "defender o mistério da Imaculada Conceição da Virgem Maria" (art. 17). Portanto, uma ordem aristocrática e, apesar de o artigo 16 esclarecer que era independente de profissão religiosa, apegava-se à ideia originária das ordens de cavalaria: a defesa da fé.

Dom Pedro I, retrato de Henrique José da Silva (1824), conservado no Museu Imperial (imagem disponível no repositório do museu).
Dom Pedro I, retrato de Henrique José da Silva (1824), conservado no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional). Dentre as insígnias de várias ordens, sobressai a placa da Imperial Ordem do Cruzeiro.

Em contraposição, a Ordem do Cruzeiro comemorava a sagração e coroação de Dom Pedro I por ser o momento em que se firmou a independência do Brasil, remunerava serviços militares, civis ou científicos dos súditos do Império e de beneméritos estrangeiros, disciplinava a promoção de um grau ao mais alto cumprindo-se certo tempo de serviço, reduzido pela metade se em campanha, e impunha aos condecorados juramento de fidelidade ao imperador e à pátria, do que se isentavam a Família Imperial e os estrangeiros, por serem supranumerários. Portanto, o estatuto dessa ordem deixa ver o liberalismo moderado que guiou a construção do nosso estado nacional: era uma ordem explicitamente honorífica, mas a fonte dessa honra era a Coroa.

Notas:
(1) Hoje se diz grã-cruz e o seu plural é grã-cruzes. Grão no masculino e grã no feminino são apócopes de grande.
(2) "Prêmio àqueles que bem-merecem" e "Pedro I, Imperador do Brasil".