30/11/21

A ARTE HERÁLDICA (IX)

Em tese, o brasão em linguagem verbal, ou brasonamento, basta por si, mas não nos esqueçamos de que a heráldica também é visual.

O que há de ter a prioridade: o brasonamento ou uma reprodução? A resposta parece fácil: o brasonamento, já que as reproduções deveriam, teoricamente, partir dele. Mas já em 1696, o padre Claude-François Ménestrier objeta na sua Nouvelle méthode raisonnée du blason: "l'un des meilleurs avis que je vous puisse donner est de ne recevoir jamais d'armoiries d'aucune maison sans en avoir les figures, parce que autrement vous les renverseriez la plupart si vous en jugiez sur ces descriptions mal énoncées" ("um dos melhores conselhos que lhe possa dar é nunca aceitar as armas de nenhuma casa sem ter as suas figuras, porque de outro modo você desarranjaria a maioria se as julgasse a partir dessas descrições mal enunciadas"; tradução minha). Com efeito, eu diria que um brasonamento duvidoso demanda a consulta da reprodução mais autoritativa que se puder achar. O brasão da UFRN demonstra isto.

A Universidade Federal do Rio Grande do Norte foi criada por lei estadual em 25 de julho de 1958 com o nome de Universidade do Rio Grande do Norte e foi federalizada pela Lei n.º 3.849, de 18 de dezembro de 1960. A sua reitoria fica em Natal, onde está o campus central, mais os campi de Caicó, Currais Novos, Santa Cruz e a Escola Agrícola de Jundiaí. Oferece 85 cursos de graduação e 118 de pós-graduação stricto sensu, nos quais estavam matriculados 34.569 alunos em 2019. As suas armas são singelas, belas e representativas, mas o ordenamento deixa várias lacunas. Por sorte, no bojo das comemorações do seu sexagésimo aniversário, a instituição interessou-se em abordar essa parte da sua história, publicando um artigo sobre a assunção dessas armas.

O brasão da UFRN foi criado em julho de 1959 por Gustavo Barroso (1888-1959), que é um exemplo do intelectual da sua geração: bacharel em direito, atuava no serviço público e na política e produzia nas diversas humanidades e letras. Portanto, um homem de muitos livros, lidos e escritos, e entre os lidos, seguramente algum de heráldica. Essa leitura pode ter-lhe dado uma base para propor ideias boas nessa seara, mas suspeito de que não se aprofundava além disso, se não leiamos como descreve as armas que nos ocupam:

Escudo elíptico: verde com uma estrela de cinco pontas lançando cinco raios sobre um livro aberto, tudo de ouro; orla de ouro com legenda em verde UNIVERSIDADE DO RIO GRANDE DO NORTE ao alto e a divisa ACCIPIT UT DET em baixo. Apoios: dois ramos ao natural, um de oliveira à direita e um de louro à esquerda. Timbre: uma águia voante de ouro.

Sei que esse texto está perfeitamente compreensível, mas do ponto de vista heráldico  técnico , é um pequeno quebra-cabeças. Para começar, qual a figura principal? A estrela? O livro? Como se nomeia primeiro aquela, parece ser ela, mas conjuntos de figuras não se brasonam de cima para baixo, mas ao contrário. Assim, há um termo para exprimir que uma figura tem outra em cima (rematado) ou logo acima (encimado), mas não há equivalente para a situação logo abaixo. O que se pode indicar é que uma figura tem outra embaixo, como uma cruz alta firmada numa campanha, um castelo assente num penedo, uma árvore plantada num terrado, uma águia pousada sobre uma torre, um leão sustido por um monte. Assim, ao nível verbal, parece que o livro está encimado da estrela, mas isto o moveria para o centro do campo, o que nem se vê no desenho usado atualmente pela universidade nem no provável original. Para mim, a solução é prescindir de figura principal: as duas estão em pé de igualdade, na situação que se brasona como um sobre o outro.

Armas da UFRN: de verde com uma estrela caudata de cinco raios retilíneos de ouro e um livro aberto do mesmo, uma sobre o outro.
Armas da UFRN: de verde com uma estrela caudata de cinco raios retilíneos de ouro e um livro aberto do mesmo, uma sobre o outro.

Depois, ainda ao nível verbal, "uma estrela lançando raios" dá a entender que se trata de uma estrela radiante, termo que se emprega quando saem raios dentre as pontas da estrela, mas o desenho provavelmente original os mostra saindo diretamente dela, para baixo, o que faz uma estrela caudata e vai ao encontro da explicação do autor: "A estrela luminosa recorda a que guiou os Reis Magos a Belém, exprime a nossa tradição cristã e a cidade de Natal, protegida pela Fortaleza dos Reis Magos, sede da Universidade". Nesta perspectiva, a forma da estrela com os raios no desenho oficial atual está incorreta.

Armas da UFRN com a "orla" da descrição original interpretada como uma bordadura.
Armas da UFRN com a "orla" da descrição original interpretada como uma bordadura.

Tudo isto me leva a reproduzir as armas da UFRN como o prezado leitor terá visto mais acima — de verde com uma estrela caudata de cinco raios retilíneos de ouro e um livro aberto do mesmo, uma sobre o outro —, no que terá percebido a omissão da "orla". É o terceiro problema na descrição de Barroso. Ora, uma orla é uma peça que mede um doze avos da largura do escudo e o contorna a uma distância igual do bordo, diferentemente da bordadura, que tem um sexto da largura do escudo e faz o mesmo contorno firmada no bordo. Portanto, o autor escreveu "orla" e desenhou algo que semelha uma bordadura. Se for mesmo essa segunda peça, a qualidade infelizmente cai, porque já não é de ótima heráldica pôr o nome do armígero em listel, muito menos isto mais a divisa numa bordadura.

Desenho provavelmente original do brasão da UFRN.
Desenho provavelmente original do brasão da UFRN (imagem disponível em artigo publicado pela instituição).

Antes de conhecer o texto do autor, eu já intuía que esse elemento não fizesse parte do escudo, mas depois de ler aí que a forma oval visa a "servir de selo e sinete" e que "[se lançou] mão do menor número possível de símbolos e dispondo-os adequadamente, de acordo com o postulado que diz que quanto mais atributos enchem um brasão menos nobre o tornam", convenci-me mais ainda de que consiste de um ornamento externo análogo a um listel, exatamente como no brasão do Conselho de Estado da Espanha.

Desenho do brasão da UFRN usado pela instituição.
Desenho do brasão da UFRN usado pela instituição.

Além de ter alterado a estrela de caudata para radiante, na sua identidade visual vigente a universidade emprega nada menos que catorze matizes de cores. É até compreensível que haja diversos matizes de verde porque os ramos estão brasonados ao natural, mas o que justifica cinco matizes de amarelo, a ponto de o livro semelhar iluminado de sua cor? Como não se trata de dar um efeito de brilho, forçoso é julgar que faltou perícia heráldica aos autores do manual de identidade visual, pois, como sabemos, o artista pode escolher a palheta dos esmaltes, mas deve aplicá-la coerentemente.

Em suma, o brasão da UFRN encerra uma pequena aula de heráldica: patenteia o quanto brasonamento e reprodução dependem um do outro ou, noutras palavras, como a natureza da heráldica é multimodal, verbal e visual.

28/11/21

A ARTE HERÁLDICA (VIII)

O trabalho heráldico não é só técnico, mas também estético, o que sempre o sujeitará ao gosto.

O bispado de Natal foi criado em 1909 pela bula Apostolicam in singulis, do papa São Pio X. A diocese foi desmembrada daquela da Paraíba e abrangia o estado do Rio Grande do Norte. Em 1934, o papa Pio XI, por meio da bula Pro ecclesiarum omnium, desmembrou-lhe a região oeste do estado, compreendida no vale do Açu e na bacia do rio Apodi, para criar a diocese de Mossoró, e em 1939 o papa Pio XII, por meio da bula E diœcesibus, desmembrou-lhe a região do Seridó para criar a diocese de Caicó. Em 1952, foi elevada a arquidiocese pela bula Arduum onus, do mesmo pontífice, abrangendo essas duas dioceses. A sua sé está na Catedral de Nossa Senhora da Apresentação, em Natal, e o seu arcebispo é Dom Jaime Vieira da Rocha.

Armas da arquidiocese de Natal: talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata, brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe.
Armas da arquidiocese de Natal: talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata, brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe.

O brasão da arquidiocese de Natal é mais um caso sobre o qual não se acham informações. É mesmo muito ingrato o trabalho dos bons heraldistas: a obra fica, mas a autoria é esquecida. De todo modo, tenho-as brasonado assim neste blog: talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata, brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe. Digo "bons heraldistas", porque suponho que tenha sido criado por Víctor Hugo Carneiro Lopes, passavante do Ir. Paulo Lachenmayer. Pessoalmente, não me agradam: não gosto da partição combinando cor com cor; não acho a flor de lis cruzada uma figura bonita; parece-me lamentável que a estrela não seja aquela que é o símbolo da cidade: a caudata. Apesar dessas ponderações, é um brasão perfeitamente aceitável.

Desenho do brasão da arquidiocese de Natal usado pela instituição (imagem disponível no seu perfil no Facebook).
Desenho do brasão da arquidiocese de Natal usado pela instituição (imagem disponível no seu perfil no Facebook).

Com efeito, a combinação de azul e vermelho tem-se repetido à exaustão na heráldica eclesiástica recente. O azul é a cor mariana por excelência e o vermelho é a litúrgica da Paixão e do martírio. No entanto, o clero precisa aprender esta regra fundamental da armaria: o azul, o vermelho ou qualquer outra das cores combina-se com o ouro ou a prata (metais) ou com o arminho ou os veiros (peles).

Quanto à flor de lis, trata-se de uma figura heráldica de origem incerta. De certo, somente que lis ou lys em francês significa 'lírio'; isso indica o entendimento tradicional de que consiste numa estilização dessa flor. Ao fim e ao cabo, são figuras diferentes, o que em português é reforçado pela palavra açucena, preferível na linguagem do brasão para designar a flor. Em todo o caso, foi essa analogia que tornou a flor de lis um símbolo mariano, pois metáforas florais desde a Antiguidade tardia são evocadas pelos Padres da Igreja para abordar diversas questões mariológicas, como o fez São Pedro Damião (1007-1072) no seu terceiro sermão sobre a Natividade de Nossa Senhora:

Hodie impleta est prophetia illa, quam eximius Prophetarum Isaias, quasi præco factus ad adventum reginæ mundi, magna voce clamabat dicens: "Egredietur virga de radice Jesse, et flos de radice ejus ascendet". Et bene hæc incomparabilis Virgo virga dicitur, quæ per intensionem desiderii ad superna emicuit, non per siccitatem boni operis distortæ nodositatis vitium incurrit. De qua virga redemptor noster, quasi flos ascendit, qui martyribus et confessoribus suis totius orbis campos, velut rosis et liliis decoravit. Singularis namque flos sanctæ Ecclesiæ ipse est, sicut de semetipso in Cantico canticorum loquitur, dicens: "Ego flos campi et lilium convallium". Hoc lilium non in montibus, sed in convallibus nascitur, quia superbis Deus resistens, in humilium cordibus invenitur. Lilium vocatur Christus, lilium dicitur et Mater Christi, sicut in eodem Cantico subinfertur: "Sicut lilium inter spinas, sic amica mea inter filias". Sicut lilium inter spinas, sic beatissima Virgo Maria enituit inter filias, quæ de spinosa propagine Judæorum nata, candescebat munditia virgineæ castitatis in corpore, flammescebat autem ardore geminæ caritatis in mente, fragrabat passim odore boni operis, tendebat ad sublimia intentione continua cordis.

 Em vernáculo:

Hoje se cumpriu aquela profecia, que Isaías, o mais assinalado dos profetas, de certo modo feito arauto para o advento da rainha do mundo, em alta voz clamava, dizendo: "Um broto vai surgir do tronco seco de Jessé; das velhas raízes um ramo brotará". É justo que essa incomparável Virgem seja chamada de talo, que pela intensidade do anseio se elevou ao mais alto, e não por sequidão de boas obras se abateu o vício de distorcida nodosidade. Desse talo surgiu o nosso redentor como se fosse uma flor, que com os mártires e confessores ornou os campos do mundo todo como com rosas e lírios. De fato, ele é a flor singular da santa Igreja, tal como fala de si mesmo no Cântico dos Cânticos, dizendo: "Eu sou a flor do campo e o lírio dos vales". Esse lírio não nasce nos montes, mas nos vales, porque Deus, que se opõe aos soberbos, se acha nos corações dos humildes. Cristo é chamado de lírio, também a Mãe de Cristo, como se acrescenta no mesmo Cântico: "Como o lírio entre espinhos, assim é minha amada, entre as moças". Assim como o lírio entre os espinhos, a bem-aventurada Virgem Maria brilhou entre as moças, a qual, nascida do espinhoso rebento dos judeus, alvejava pela pureza da virgínea castidade no corpo, flamejava pelo ardor de parelha caridade na mente, cheirava por toda a parte a boas obras, visava ao alto com contínuo esforço de coração. (tradução minha)

Efetivamente, a flor de lis como símbolo mariano antecede o brasão mais famoso que a carrega: de 1146 conserva-se um selo do cabido da catedral de Paris que traz Nossa Senhora sentada, segurando uma flor de lis com a mão direita e tendo outra sob os pés, ao passo que o testemunho remanescente mais antigo das armas do rei francês (de azul, semeado de flores de lis de ouro) remonta a 1211, ainda que como motivo ornamental ligado à realeza viesse de longa data.

Em particular, a flor de lis cruzada ou crucífera parece uma inovação de Víctor Hugo Carneiro Lopes, pois, ao que me consta, ocorre apenas na armaria eclesiástica brasileira e das outras quatro ocorrências em brasões diocesanos, de uma encontrei a sua autoria declarada: o brasão da diocese de Oliveira. Os demais são da arquidiocese de Belém do Pará e das dioceses de Miracema e de Sobral. Esse indício é reforçado pela semelhança do estilo, salvo o de Sobral. O significado da figura é de fácil inteligência, mas, como já disse, não acho que seja bonita. Em tempo, o desenho usado pela arquidiocese natalense mostra uma cruz acabada em fusos curvilíneos. Em francês, esse predicativo denomina-se retranché, mas como sequer tem denominação consagrada em português, parece excessivo brasoná-lo.

A essa crítica muito subjetiva adito que a flor de lis cruzada pouco ou nada diz sobre a advocação mariana que tutela a arquidiocese: Nossa Senhora da Apresentação. Na verdade, a imagem que se venera na catedral tem os atributos de Nossa Senhora do Rosário. Conta-se que foi encontrada dentro dum caixote, encalhado junto a uma pedra à margem do rio Potenji, onde hoje se ergue o monumento denominado Pedra do Rosário. Tal prodígio terá acontecido na manhã de 21 de novembro de 1753, que o calendário litúrgico dedica à memória da Apresentação de Nossa Senhora. Seja como for, consta que a igreja matriz da cidade, que retrocede aos primeiros anos do século XVII, sempre esteve dedicada sob o título de Nossa Senhora da Apresentação. Como a comunidade era pequenina e muito pobre, talvez carecesse de um ícone que atraísse a devoção popular, até que o achamento providencial do vulto de Nossa Senhora do Rosário preencheu esse vazio:  acompanhava-o a mensagem "onde esta imagem aportar, nenhuma desgraça acontecerá".

Até a Idade Moderna, a Apresentação de Nossa Senhora era uma festa própria da liturgia bizantina: só em 1585 o papa Sixto V incluiu-a definitivamente no calendário romano. A sua origem remonta à dedicação da Basílica de Santa Maria Nova em 21 de novembro de 543. Construída pelo imperador Justiniano o Grande em Jerusalém, foi devastada pelos persas quando conquistaram a cidade em 634 e destruída por um terremoto em 746. Segundo a fonte mais fidedigna, o chamado Protoevangelho de Tiago, a Menina Maria entrou no templo aos três anos de idade:

Et facta est triennis puella. Et dixit Joachim: "Vocate puellas Hebræorum immaculatas et accipiant singillatim lampades et sint accensæ, ne convertatur puella in posteriora et abducatur mens ejus ex templo Dei. Et fecerunt sic donec ingressæ sunt templum. Et recepit eam princeps sacerdotum et osculatus est eam et dixit: "Mariam, magnificavit Dominus nomen tuum in cunctis generationibus et in ultimis diebus manifestabit Dominus in te pretium redemptionis suæ filiis Israel". Et constituit illam super tertium gradum altaris et immisit Dominus Deus gratiam super ipsam, exsultabatque resiliendo pedibus suis, et dilexit eam tota domus Israel.

Em vernáculo: 

E a menina fez três anos. Joaquim disse: "Chamai as moças imaculadas dos hebreus e que uma a uma recebam lâmpadas e sejam acesas, para que a menina não se vire para trás e a sua mente se afaste do templo de Deus". Fizeram assim até que entraram no templo. O sumo sacerdote recebeu-a, beijou-a e disse: "Maria, o Senhor engrandeceu o teu nome em todas as gerações e nos últimos dias o Senhor manifestará em ti o preço da sua redenção para os filhos de Israel". Colocou-a sobre o terceiro degrau do altar e o Senhor Deus infundiu a sua graça sobre ela, e ela exultava saltitando com os seus pés, e amou-a toda a casa de Israel. (tradução minha)

Esse relato foi atribuído ao apóstolo Tiago o Menor, mas foi escrito provavelmente por um gentio converso em meados do século II. Sempre foi lido nas igrejas orientais, mas só foi difundido no Ocidente após a tradução de Guillaume Postel e edição de Theodor Bibliander em 1552, da qual tirei a citação acima. Apesar de apócrifo, a sua importância para o culto mariano foi reconhecida implicitamente por São Paulo VI (exortação apóstola Marialis cultus, 1974) e explicitamente por São João Paulo II (catequese de 15 de outubro de 1997).

Enfim, a estrela. Como a flor de lis cruzada já representa a padroeira, penso que essa estrela não seja um segundo símbolo mariano, mas que aluda ao nome da cidade e aos seus copadroeiros: os Santos Reis. Com efeito, é a figura das armas municipais de Natal. Como expus na postagem anterior, fortaleza e povoação faziam parte do mesmo plano para assegurar o domínio português sobre a Paraíba e o Rio Grande, que os franceses ameaçavam. A construção da fortaleza começou em 6 de janeiro de 1598 e a povoação foi fundada em 25 de dezembro de 1599, daí os seus nomes: Forte dos Reis Magos e cidade do Natal.

26/11/21

A ARTE HERÁLDICA (VII)

O brasonamento não só evita que se dependa de um desenho, mas também deixa ver que a heráldica não é tão inflexível quanto parece.

Na postagem de 20/11, rejeitei a ideia de uma heráldica americana solta das regras "europeias". No entanto, é forçoso reconhecer que certos padrões praticados no Velho Mundo causam estranheza onde não há uma tradição longa que os lastreie. Assim, quem tem visto a vida toda nos presépios e na decoração natalina a Estrela de Belém como um cometa com uma cauda de raios retos ou curvos em leque, estranha muito que por defeito o cometa heráldico ou estrela caudata se distinga por um raio mais longo de forma ondeada.

Esse ponto de vista é o que me leva a supor que, tendo acatado a proposta de Tristão de Alencar Araripe, o poder público natalense preferiu uma forma de estrela caudata mais familiar para os seus cidadãos ao assumir um brasão para si. O que, na verdade, não é pecado algum: é tão rara a lei heráldica que não se possa flexibilizar de algum modo ou mesmo não tenha uma exceção justificável que nem sei dar um exemplo agora. Via de regra, há bastante margem para se trabalhar. O limite extremo é constituído pela possibilidade de se brasonar.

Com efeito, o brasonamento é o que complica a vida de quem pretende estudar a armaria municipal brasileira, inclusive a melhor. É tão grave que em 1933, depois de uma cuidadosa pesquisa, Clóvis Ribeiro publicou Brasões e bandeiras do Brasil afirmando que Natal não tinha brasão, quando tanto a prefeitura como a câmara municipal declaram que foi assumido em 1909, mais precisamente por uma resolução aos 23 de agosto. Como é provável que o texto dessa resolução nunca tenha sido recolhido num livro, ninguém sabe o que diz. E frise-se que procurar não é tarefa fácil, já que em geral o serviço público brasileiro não arquiva a sua memória, mas empilha a sua papelada onde vai cabendo.

Armas de Natal: de azul com uma estrela de ouro, caudata de três raios retilíneos de prata, posta em barra, a estrela para o baixo e a cauda para o alto.
Armas de Natal: de azul com uma estrela de ouro, caudata de três raios retilíneos de prata, posta em barra, a estrela para o baixo e a cauda para o alto.

E lá vamos nós: comentar mais um brasão a partir de uma imagem. No desenho usado pelo poder público há muito tempo, pelo que parece, vejo um escudo de azul com uma estrela de ouro, caudata de três raios retilíneos de prata, posta em barra, a estrela para o baixo e a cauda para o alto. De fato, é notável o quão mais longo é esse brasonamento que a proposta de Tristão de Alencar Araripe. Continuam armas singelas — o campo com uma figura —, mas a cada modificação da forma ordinária dessa figura é preciso indicar o modificado: a estrela e a cauda não têm o mesmo esmalte, mas dois, indique-se; a cauda não é feita de um raio ondado, mas de três retilíneos, indique-se; não está posta em pala, mas em barra, indique-se; a estrela não fica para o alto e a cauda para o baixo, mas o inverso, indique-se.

Desenho do brasão de Natal usado pela prefeitura.
Desenho do brasão de Natal usado pela prefeitura.

Enfim, confesso que me surpreende o fato de as alterações se terem cingido à própria figura, sem o acréscimo de mais, já que figuras alongadas deixam espaços vazios e o horror vacui — tão forte na armaria portuguesa — tende a querer preenchê-los.

24/11/21

A ARTE HERÁLDICA (VI)

A heráldica clássica, revalorizada na contemporaneidade, é quase totêmica: uma figura basta. Daí o ditame da simplicidade.

Gostei tanto da série sobre bons brasões criados a partir da proposta de Tristão de Alencar Araripe para Fortaleza que resolvi continuar, pois outra capital, a deste estado vizinho aonde vim morar, também acolheu a ideia do estadista cearense e aqui é igualmente possível achar mais três brasões com o mesmo mote. Falo das armas de Natal, da arquidiocese de Natal, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do 3.º Distrito Naval da Marinha do Brasil.

Começando, pois, pela proposta de Tristão de Alencar Araripe, contida no mesmo artigo que citei no dia 14, é a seguinte: "Em campo azul uma estrela caudada, de prata, com a coroa mural sobreposta. Mote: Gloria in excelsis Deo". Quem se lembrar de que a proposta para Fortaleza também consiste do campo com uma figura e desconfiar que seja um padrão, estará certo. E é um alto padrão, já que procura reproduzir o melhor da armaria municipal mais antiga. Trocando em miúdos, assim como Basileia tem o seu báculo, Berlim o seu urso, Edimburgo o seu castelo, Estocolmo a sua cabeça de rei, Florença a sua flor de lis, Lyon o seu leão ou Varsóvia a sua sereia, o nosso autor dá a São Luís três capulhos de algodão, a Teresina três piaus, a Fortaleza um castelo, a Natal uma estrela caudata, a Recife um recife batido pelo mar, a Maceió três faixas ondadas, a Vitória a imagem de Nossa Senhora das Vitórias, a Niterói (então capital do estado) três cafeeiros, a São Paulo a imagem de São Paulo, a Curitiba um pinheiro etc.

Mas o que é uma estrela caudata ou caudada? Luís Stubbs Saldanha Monteiro Bandeira, no seu Vocabulário heráldico (1985), trata dessa figura em dois verbetes. O primeiro, caudato:

Caudato – Aplica-se este termo ao cometa ou estrela que tem cauda, isto é, que tem cauda ondeada, sempre posta para baixo, para a ponta do escudo, que pode ser de diferente esmalte, circunstância que é preciso notar ao brasonar.

Portanto, além da variação caudado/caudato, a figura pode também denominar-se cometa. Ora, um cometa não tem uma posição natural em relação ao seu eixo, como a maioria dos seres vivos, que normalmente ficam em pé. Dependendo da sua trajetória e da perspectiva de quem o vê da terra, parece subir ou cair ou mesmo viajar rente ao horizonte. Perceba-se, a propósito, que Tristão de Alencar Araripe não indica qual é o sentido em que a estrela caudada se acha. Saber que a cauda fica para baixo não basta, já que elimina apenas a posição em faixa. No entanto, penso que das três restantes, nem em banda nem em barra, mas sim em pala é a posição menos marcada, e assim ordenei.

O segundo verbete é, precisamente, cometa:

Cometa – Astro que se representa diferenciado das estrelas pela cauda que tem e que se alarga para o lado oposto do centro luminoso.
A cauda pode ser de raio endentado ou formado por linhas retas, ao que vulgarmente alguns autores chamam caudato.
Deve ser a cauda desenhada com três comprimentos mais do que os outros raios, que devem ser num total de seis.

A segunda dúvida respeita à forma da cauda, pois Luís Stubbs diz primeiro que é ondeada, depois que pode ser endentada ou retilínea. Acho que a noção de posição e disposição, ou não marcado e marcado, a resolve: por defeito, a cauda há de ser ondeada, mas nada impede que tome outras formas, contanto que se brasone devidamente. Tudo isto me leva a reproduzir a proposta de Tristão de Alencar Araripe assim:

Proposta de brasão para Natal (por Tristão de Alencar Araripe): de azul com uma estrela caudata de prata.
Proposta de brasão para Natal (por Tristão de Alencar Araripe): de azul com uma estrela caudata de prata.

Natal foi fundada em 25 de dezembro de 1599. Como dissertei na postagem de 23/04, juntamente com a de João Pessoa, então Filipeia, essa fundação fazia parte da estratégia portuguesa para assegurar o domínio da região, sob a ameaça do corso francês. As barras dos rios Paraíba e Potenji são os dois maiores estuários desde o porto do Recife até o cabo de São Roque. Em cada uma, os portugueses levantaram primeiro uma fortaleza: respectivamente a de São Filipe (depois outra, a de Nossa Senhora das Neves, e, por fim, a de Santa Catarina) e a dos Reis Magos. Em seguida, assentaram alguns colonos um pouco mais a montante sob o pomposo título de cidade. Portanto, ainda que durante toda a colonização não tenha passado de um lugarejo bem pobre, Natal nunca foi vila: cidade do Natal.

Esses fatos fazem da proposta uma espécie diferente de armas falantes, se é que se podem classificar como tais. É que a definição de armas falantes fundamenta-se na semelhança de certa peça ou figura com o nome do armígero, o que não se constata no caso. No entanto, o efeito é praticamente o mesmo: facilmente se estabelece uma relação semântica da estrela caudata com o nome Natal. Afinal, a chamada Estrela de Belém é um símbolo natalino: "Depois que Jesus nasceu na cidade de Belém da Judeia, na época do rei Herodes, alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo'" (Mateus, 2, 1-2). Evitando a polêmica da historicidade — que não vem ao caso —, desde o afresco de Giotto na Capela dos Scrovegni, pintado entre 1303 e 1305, se tornou muito habitual figurar tal estrela como um cometa na iconografia ocidental, especialmente na heráldica, onde comporta a vantagem de distingui-la claramente de outras estrelas.

22/11/21

A ARTE HERÁLDICA (V)

Como um brasão não é um desenho, uma reprodução criticável não tira o mérito da ideia que se depreende de um bom brasão.

Em geral, a armaria do Exército Brasileiro é muito ruim, o que é uma lástima, pois se há corporações que poderiam instituir órgãos assessores em matéria heráldica para gerir as suas necessidades de brasões e patrocinar membros para estudar a matéria e assumir tais órgãos, são as forças armadas, como acontece em Portugal, onde cada uma Exército, Marinha e Força Aérea  tem o seu gabinete e manual de heráldica, com resultados primorosos, como se pode conferir num dos sites que recomendo na seção de links: Unidades do Exército Português. Contudo, o brasão da 10.ª RM é uma exceção boa.

A 10.ª Região Militar subordina-se ao Comando Militar do Nordeste. Foi organizada em 1942, abrange os estados do Ceará e do Piauí e o seu comando está instalado na Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, em Fortaleza. Respondem-lhe quinze organizações militares, das quais destaco o Colégio Militar e o Hospital Geral de Fortaleza. Infelizmente, não acho nenhuma informação sobre o seu brasão, mas é fácil apreender que consiste num escudo de prata com a planta de uma fortaleza quadrada, realçada de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago.

Sempre que falo das armas municipais de Fortaleza, evoco inevitavelmente a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, porque foi pela povoação no entorno dela que a cidade começou, a vila tomou o seu nome e ambos os fatos ensejaram a escolha de armas falantes, o mote desta série de postagens. Todavia, não foi a primeira fortificação para a conquista da região. Em 1604, quase setenta anos após a criação da capitania do Ceará, nunca assegurada, Pero Coelho de Sousa, ao voltar da serra da Ibiapaba, onde aniquilara o corso francês, ergueu junto à barra do rio Ceará o Fortim de Santiago, porém o flagelo da seca e a hostilidade dos índios levaram ao abandono da posição no ano seguinte. Em 2004, comemorando o quarto centenário dessa empresa, a Xunta de Galicia, o governo autônomo dessa comunidade autônoma espanhola, doou um cruzeiro de pedra a Fortaleza, chantado no lugar que desde então se denomina Praça de Santiago da Barra do Ceará, também conhecida como Marco Zero. Em 1612, Martim Soares Moreno, que tomara parte na primeira e malograda bandeira, voltou aí e levantou o Fortim de São Sebastião. Foi tomado pelos holandeses em 1637, mas em 1644 os índios trucidaram a guarnição e o arruinaram. Deve-se a Matthias Beck, às ordens da Companhia das Índias Ocidentais, a escolha da margem esquerda do riacho Pajeú para firmar uma nova posição  o Forte Schoonenborch  que ele mesmo entregou aos portugueses em 1654, após a capitulação holandesa no Brasil.

Essa síntese histórica explica por que a 10.ª RM traz a cruz de Santiago no seu brasão e recebeu o nome de Martim Soares Moreno em 1993. No entanto, o desenho usado pelo comando denuncia imperícia heráldica. Primeiro, porque tenta reproduzir a planta de Antônio José da Silva Paulet. A propósito, o fato de ter nomeado a vila, depois cidade, dá a ideia de uma edificação imponente. Nunca o foi. A atual, projetada e dirigida por Silva Paulet, começou em 1812 e jamais foi concluída. Na verdade, mais que uma fortaleza, consiste de uma muralha entre dois baluartes, voltados para o mar, e do prédio que abriga o comando da 10.ª RM, este ainda mais tardio: meados do século XIX. Digressão à parte, a segunda falta de perícia está em realçar a figura de ouro sobre campo de prata.

Na postagem anterior, eu disse que qualquer substantivo comum pode entrar na armaria, mas é de má heráldica pôr substantivos próprios. Eis um exemplo ilustrativo: plantas de fortalezas estão presentes nas heráldicas militares portuguesa e espanhola. Trata-se de uma figura perfeitamente brasonável: basta dizer que forma geométrica tem e quem lê há de saber que os ângulos são abaluartados e o interior é vazio, se deixa ver o esmalte do campo, ou cheio, se está iluminado de outro.

Leitura das armas da 10.ª Região Militar do Exército Brasileiro: de prata com uma planta de uma fortaleza quadrada de azul, orlada e cheia de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago.
Leitura das armas da 10.ª Região Militar do Exército Brasileiro: de prata com uma planta de uma fortaleza quadrada de azul, orlada e cheia de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago.

Assim, mais que as armas da 10.ª RM, cuja descrição desconheço, darei a seguir uma leitura delas. Essa leitura pode-se brasonar assim: de prata com uma planta de uma fortaleza quadrada de azul, orlada e cheia de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago. Por orlado digo o que em francês é expresso pelo termo resarcelé: uma peça ou figura que contém um contorno que não toca os seus bordos, à feição da peça denominada orla. Junto com o atributo cheio, conserva o ouro do desenho atual sem infringir a regra de iluminura. Ademais, omiti essa espécie de "chefe do Exército" (cortado de vermelho e azul com a iniciais da organização em ouro, sobrepostas) e o debrum dourado, porque são mais próprios de um distintivo de bolso que de um brasão.

Desenho do brasão da 10.ª RG usado pelo seu comando.
Desenho do brasão da 10.ª RG usado pelo seu comando.

Apesar dos defeitos na execução, a ideia que preside a essas armas mostra como do mesmo mote (uma cidade que se chama Fortaleza porque surgiu do povoado no entorno de uma fortaleza) se fez mais um emblema singelo, belo e representativo, o derradeiro desta série.

20/11/21

A ARTE HERÁLDICA (IV)

O heraldista exímio não se limita ao que se repete por aí, pois sabe manejar tanto os recursos tradicionais como as possibilidades de inovação.

Por mais de uma vez, li defesas de uma suposta heráldica americana, que se definiria pela soltura das rigorosas regras europeias. Em grande medida, as postagens deste blog ficam longas porque sempre procuro contextualizar o objeto sobre o qual discorro. Mal de filólogo. Mas vale a pena pelo bem de prevenir um juízo apressado. Por exemplo, antes de censurar o emblema do Cardeal Ramazzini, coloquei que já na primeira metade do século XVI os monarcas espanhóis concediam armas bastante questionáveis às urbes recém-fundadas no Novo Mundo, afinal, para exemplificá-lo com o exemplo daquelas da Cidade da Guatemala, um escudo partido com a imagem de um santo e uma paisagem num campo de esmalte indefinido, mais uma bordadura, anda longe de ser lo mejor del mundo em matéria heráldica. Em última análise, quero ponderar que certos fatos são compreensíveis nos seus contextos, mas daí a jogar a fôrma pela janela para fazer passar um produto mau por bom não dá.

Esse discurso pretensamente nativista poderia fazer sentido se a heráldica fosse um código fechado, mas é aberto. As regras heráldicas nada têm, por si, de europeias. Resultam da capacidade humana de significar, como tantas outras práticas mundo afora, similares em alguma medida, como aquelas denominadas genericamente totens. Europeias são as figuras mais frequentes de objetos e edificações e a própria ideologia subjacente ao bestiário, porque, claro, é um sistema semiótico ocidental, de origem medieval. Mesmo assim, não repele nada fora do seu âmbito original. Em mais uma analogia com os estudos da linguagem, diria que no brasão podem entrar todos os substantivos comuns, mas os substantivos próprios não costumam ser de boa arte. Trocando em miúdos, os baobás são árvores nativas da África subsaariana, de Madagascar e da Austrália. Um baobá pode figurar num brasão tanto quanto um carvalho, como de fato figura um nas armas nacionais do Senegal. O que não se deve fazer é pôr, por exemplo, o baobá do Passeio Público de Fortaleza.

Armas da Universidade Federal do Ceará (UFC): de azul com uma banda bretessada de ouro, carregada de três folhas de carnaúba de verde, postas no sentido da banda.
Armas da Universidade Federal do Ceará (UFC): de azul com uma banda bretessada de ouro, carregada de três folhas de carnaúba de verde, postas no sentido da banda.

Voltando, precisamente, ao mote desta série de postagens, que é Fortaleza, hoje darei mais uma criação do irmão Paulo Lachenmayer. O improvável leitor já sabe que esse nome é sinônimo de ótima qualidade heráldica. Trata-se do brasão da UFC. Nele, o mestre demonstra como do singelo se pode alcançar o engenhoso. Assim, começa com uma banda, que carrega três figuras repetidas. Isso é do mais corriqueiro, especialmente na armaria lusófona. Mas à banda deu um atributo incomum: o bretessado, que se diz da peça cujos bordos estão guarnecidos de ameias, tanto o superior como o inferior. Além disso, a figura repetida é singular: uma folha de carnaúba. Assim, ordenou um escudo de azul com uma banda bretessada de ouro, carregada de três folhas de carnaúba de verde, postas no sentido da banda, ou, como se lê na ata da 176.ª sessão extraordinária do Conselho Universitário, havida em 26 de março de 1965 e citada no Manual de identidade visual da UFC, "de azul, uma banda com bordos denticulados, de ouro, carregada de três folhas de carnaúba, alinhadas em banda, ao natural", o que, praticamente, vem ser o mesmo.

Desenho do brasão da UFC usado pela instituição.
Desenho do brasão da UFC usado pela instituição.

A Universidade Federal do Ceará foi criada em 1954 pela Lei n.º 2.373, de 16 de novembro. A sua reitoria fica em Fortaleza, onde tem três campi (do Benfica, do Pici e do Porangabuçu), mais os campi nas cidades de Crateús, Itapajé, Quixadá, Russas e Sobral. Oferece 86 cursos de graduação e 120 de pós-graduação stricto sensu, nos quais estavam matriculados 29.620 alunos em 2018. Nas suas armas leio que as ameias da banda referem a Fortaleza, o centro da sua atuação, e as folhas de carnaúba, ao Ceará. Parece confirmar essa leitura a coincidência dos esmaltes do campo e da banda com os do campo e da torre nas armas municipais fortalezenses e a curiosa antecipação em décadas à declaração da carnaúba como árvore-símbolo do estado (2004) e à inclusão dela no emblema estadual (2007). Não obstante, sempre se pode fazer uma interpretação alegórica: pelas ameias a construção do conhecimento e pela carnaúba, de que tudo se aproveita, uma espécie de "árvore da vida".

Seja como for, a lição é: o heraldista que domina o sistema não fica, por exemplo, restrito à representação de uma fortificação sempre pela figura de uma, pois sabe que pode guarnecer uma peça de ameias, seja um bordo, o outro ou ambos. Também não se prende ao repertório das figuras mais repetidas, porque sabe inovar dentro das regras.

18/11/21

A ARTE HERÁLDICA (III)

A maior parte das peças e figuras heráldicas são signos, mas é característico da armaria eclesiástica um uso maior de símbolos.

bispado do Ceará foi criado em 1854 pela bula Animarum salute, do papa Pio IX. A diocese foi desmembrada daquela de Olinda e abrangia a província do Ceará, mas em 1914 o papa Bento XV, por meio da bula Catholicæ Ecclesiæ, desmembrou-lhe o sul do estado para a criação da diocese do Crato. Em 1915, o mesmo pontífice, por meio da bula Catholicæ religionis bonum, elevou-a a arquidiocese de Fortaleza e desmembrou-lhe a região norte para a criação da diocese de Sobral. Atualmente são sufragâneas suas as dioceses de Crateús, Crato, Iguatu, Itapipoca, Limoeiro do Norte, Quixadá, Sobral e Tianguá. A sua sé está na Catedral de São José, em Fortaleza, e o seu arcebispo é Dom José Antônio Aparecido Tosi Marques.

Armas da arquidiocese de Fortaleza: de azul com uma faixeta abaixada de ouro, arqueada e dentelada para o baixo, encimada de dois panos de muralha de prata, cada um flanqueado de duas torres do mesmo, abertas de negro, cada conjunto lavrado do mesmo e firmado num flanco do escudo; brocante sobre a faixeta, uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, carregada de uma flor de lis de pé cortado de azul, batida por um mar agitado de prata e encimada de uma estrela de oito raios de ouro, radiante do mesmo para o baixo.

É uma lástima que não se ache nenhuma informação sobre o brasão dessa arquidiocese, porque, sem padecer de excesso, é intrigante, e isso o dota de excelência. Com efeito, o estilo deixa ver um trabalho ou do irmão Paulo Lachenmayer ou de Víctor Hugo Carneiro Lopes. Ainda que sempre seja temerário brasonar armas dessa qualidade apenas pelas reproduções, como a arquidiocese ainda usa, ao que parece, o desenho original — muito bem executado e bonito (mas pelas publicações mais recentes nas redes sociais parece que resolveu estragá-lo com uma péssima digitalização) — vou-me aventurar: de azul com uma faixeta abaixada de ouro, arqueada e dentelada para o baixo, encimada de dois panos de muralha de prata, cada um flanqueado de duas torres do mesmo, abertas de negro, cada conjunto lavrado do mesmo e firmado num flanco do escudo; brocante sobre a faixeta, uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, carregada de uma flor de lis de pé cortado de azul, batida por um mar agitado de prata e encimada de uma estrela de oito raios de ouro, radiante do mesmo para o baixo.

Desenho do brasão da arquidiocese de Fortaleza usado pela instituição (imagem disponível no seu perfil no Facebook).

A leitura simbológica é bem mais fácil. A faixeta dentelada refere a São José, padroeiro do Ceará, que, segundo o Evangelho (Mateus, 13, 55), era carpinteiro. É o elemento mais dúbio, tanto que talvez também se pudesse brasonar como "uma lâmina de serra de ouro, arqueada para o baixo e firmada nos flancos". A torre sobre o mar constitui as armas municipais de Fortaleza, como vimos na postagem anterior. A flor de lis e a estrela são símbolos marianos: a fortificação que deu nome à vila, depois cidade, foi construída pelos holandeses em 1649, que a chamaram Schoonenborch. Em 1654, quando os holandeses capitularam, os portugueses renomearam-na Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. No entanto, a igreja matriz, hoje catedral metropolitana, sempre esteve dedicada sob o título de São José. Com efeito, o patronato da Virgem Santíssima foi recobrado em data recente: 2003, quando a arquidiocese celebrou a primeira Caminhada com Maria e o município declarou o dia 15 de agosto feriado religioso.

A heráldica eclesiástica fascina-me porque nela é fácil criar coisas medíocres e é difícil criar coisas notáveis. É fácil porque basta pôr a figura devocional da preferência ou conveniência do armígero. Como eu já disse algumas vezes, nesta subárea da heráldica a carga simbólica pesa mais que nas outras. E é difícil porque precisamente isto se pode converter numa limitação. Por exemplo, como se simboliza São José? Ou por açucenas, assinalando a presença do Menino Jesus, que a imagem desse santo traz no braço, ou por algum instrumento de carpintaria, como um esquadro ou uma serra, em virtude do seu ofício e dos seus patronatos. Esta é a parte fácil; daí a operar esses símbolos com as ferramentas que a heráldica oferece sem cair no clichê demanda não só o domínio dessas ferramentas, mas também argúcia.

Assim, para a arquidiocese de Fortaleza, um heraldista pouco versado poderia ter partido o campo (quem sabe um terciado em mantel para variar...) e colocado um ramo de açucenas aqui, um monograma mariano ali e, para completar, sol e mar, afinal pelo que a capital cearense é mais conhecida se não pelas suas cálidas praias? O nosso autor, em contrapartida, ateve-se às excelentes armas municipais e, sem dividir o campo, acrescentou elementos devocionais com tanta destreza que todos enxergamos uma serra alusiva ao padroeiro, mas sem saber precisar o que vem ser em termos heráldicos.

16/11/21

A ARTE HERÁLDICA (II)

Quanto mais se conhece a heráldica, mais se fica munido contra a repetição de clichês.

Na postagem anterior, dei um brasão tão singelo quanto possível: o campo com uma figura. Com efeito, quem atribui beleza às armas estatais da Espanha, por exemplo, por causa da esquarteladura, o escudete sobre tudo, as Colunas de Hércules, a coroa real, em suma, pela exuberância, se treinasse o seu olhar para enxergar aí não um todo unitário, mas um conjunto de unidades simples, começaria a perceber que esses casos consistem de armas compostas:

  1. O primeiro, de vermelho com um castelo de ouro, lavrado de negro, aberto e iluminado de azul (o campo com uma figura), que é de Castela, mais...
  2. o segundo, de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho, coroado de ouro (o campo com uma figura), que é de Leão, mais...
  3. o terceiro, de ouro com quatro palas de vermelho (o campo mais uma peça multiplicada), que é de Aragão, mais...
  4. o quarto, de vermelho com uma corrente de ouro, posta em cruz, aspa e orla e carregada de uma esmeralda de sua cor no centro (o campo mais uma figura), que é de Navarra, mais...
  5. um embutido em ponta de prata, carregado de uma romã de sua cor, aberta de vermelho, sustida e folhada de duas peças de verde (o campo mais uma figura), que é de Granada, mais...
  6. um escudete sobre o todo, de azul com três flores de lis de ouro e uma bordadura de vermelho (o campo mais uma figura e uma diferença), que é de Bourbon-Anjou.

Armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar ao natural.
Armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar ao natural.

Se um brasão é complexo sem se compor de vários, então algo não está bem. E na justa medida da complexão, o município de Fortaleza acolheu a ideia de Tristão de Alencar Araripe, mas trocou a cor do campo para eludir a semelhança com as citadas armas castelhanas e assentou o castelo sobre um mar. Na prática, houve mais uma mudança, como adverti na postagem de 15/08, pois embora a Lei n.º 1.316, de 11 de novembro de 1958, tenha copiado o ordenamento que Clóvis Ribeiro cita entre aspas em Brasões e bandeiras do Brasil (1933) e diz "castelo", sempre se desenhou uma torre. Portanto, até hoje as armas municipais de Fortaleza acham-se na estranha situação de terem uma descrição que diz uma coisa e reproduções que têm mostrado outra. Essa descrição é: "Em campo azul, um castelo de ouro, sobre ondas ao natural". O que se tem visto é: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar ao natural.

A vila destinada a ser a cabeça da capitania do Ceará foi fundada em 1699, mas por mais de um decênio em busca de maior segurança os colonos moveram a sua sede do entorno da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção para a barra do rio Ceará e a povoação do Aquiraz, onde ficou de vez desde 1711. Em 1725, criou-se outra vila com sede no povoado junto da Fortaleza, que lhe deu o nome. Foi elevada à condição de cidade em 1823. O seu brasão quase projeta a visão de quem chegava aí para desembarcar pela Ponte Metálica: a muralha e os baluartes da Fortaleza sobre o mar.

Portanto, o brasão de Fortaleza é singelo, belo e representativo. Acrescentaria, ainda, que a opção por armas falantes com a figura de um acidente natural lhe dá quase uma força poética. Apesar disso, há quem fique insatisfeito com a figuração desse acidente ao natural. Como pus na postagem de 24/02, algumas pessoas fazem da água em heráldica um cavalo de batalha. Não é erro iluminar qualquer figura de sua cor, absolutamente. Mas, como em tudo da vida, cabe cultivar o bom senso. Num brasão que tem apenas mais uma figura, uma muito habitual, é perfeitamente aceitável um mar ao natural, sobretudo pelo período histórico em que se criou tal brasão. Mesmo assim, como mero exercício, mostrarei e comentarei as outras opções.

Ordenamento alternativo para as armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar de prata e verde.
Ordenamento alternativo para as armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar de prata e verde.

Em várias ocasiões, argui que se procurarmos situar a heráldica na história da arte ocidental, conseguimos esclarecer várias coisas. Uma delas é que o estilo da nossa época, que chamo de convencional, resulta de um esforço deliberado em recobrar o estilo heráldico clássico, o qual fazia parte do quadro geral da arte românica. No campo específico da iluminura, a escola sucessora, o gótico, não divergia tanto, daí que até o século XVI se tenha tendido a figurar a água por listras ondeadas azuis e brancas, como se aprecia, por exemplo, no códice rico das Cantigas de Santa Maria (1280-84; vide particularmente o fólio 229v).

Ordenamento alternativo para as armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar de verde, aguado de prata.
Ordenamento alternativo para as armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar de verde, aguado de prata.

No entanto, durante a Idade Moderna a iluminura decaiu ante o avanço de outras técnicas, como a estampa ou a gravura, de modo que o gosto por reproduções cada vez mais naturalistas veio pressionando a heráldica até o começo do século passado. Como o brasão de Fortaleza é citado (sem a indicação da fonte) num livro de 1933, quando foi criado esse gosto ainda predominava. A própria armaria municipal portuguesa deve a sua abundância hodierna em pés ondados ao trabalho de Afonso de Dornelas, quem, no estágio inicial desse trabalho, preferia uma opção intermediária: o aguado, que consiste em semear o campo, a peça ou a figura de ondulações de esmalte diferente, à semelhança de marolas.

Um mar ao natural é figurado conforme o estilo do artista, seja mais naturalista seja mais estilizado. Eu  que não sou artista  ponho um pé ondado, semeio-o de linhas também ondadas e ilumino-o de um azul ou verde parecido ao que se tem por cor natural. A propósito, convém lembrar que  é o mesmo que campanha ou contrachefe. Quando o brasonamento diz um mar, entende-se que se trata dessa peça com os atributos especificados. Se se especifica que é ondado de tal metal e tal cor, então é formado por faixas ondadas contíguas, alternando esse metal e essa cor. Pode-se, ainda, especificar o número dessas peças, ou não; se não, fica a critério do artista. Nos casos dos ordenamentos alternativos que dou para as armas de Fortaleza, preferi iluminar o mar de verde porque é uma imagem consolidada na cultura cearense, desde que José de Alencar escreveu:

Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba.
Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros.
Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.
Onde vai a afoita jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela?
Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora.
Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.
A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho das vagas:
— Iracema!

Parágrafos, quase versos, que emocionam os filhos da Terra da Luz desde 1865.

14/11/21

A ARTE HERÁLDICA (I)

Arte, ciência, técnica: esses caracteres da heráldica tornam-na fascinante, mas também desafiadora.

Na primeira vez que mostrei aqui uma montagem de cliparts e fotos, como o emblema do Cardeal Ramazzini, disse que a heráldica é uma ars e uma tékhnē, mas não desenvolvi essa afirmação. Ars é latim e tékhnē (τέχνη) é grego. Ambas as palavras significam 'arte' (1). Arte vem do latim (ars,artis), ao passo que da raiz tékhn- derivam vocábulos como técnico e tecnologia.

Até o romantismo, ou seja, o século XIX, o entendimento do que seja arte era muito próximo do que hoje entendemos por técnica e tecnologia: um saber fazer. Assim, a gramática era a arte de falar (ars loquendi) e a matemática, a arte de contar (ars numerandi). Como fixa o dístico medieval:

Gram. loquitur, Dia. vera docet, Rhet. verba colorat,
Mus. canit, Ar. numerat, Ge. ponderat, Ast. colit astra.

Isto é, "a gram(ática) fala, a dia(lética) ensina a verdade, a ret(órica) colore as palavras, a mús(ica) canta, a ar(itmética) conta, a ge(ometria) pesa, a ast(ronomia) cuida dos astros".

A difusão do conceito de belas-artes na Idade Moderna preparou a mudança. Hoje, sequer é necessário distinguir a pintura ou a escultura como belas-artes, porque as liberais deram lugar às ciências, as mecânicas às tecnologias e com o nome de arte ficaram aquelas que têm fins estéticos.

A heráldica conjuga um pouco de tudo isto. Na verdade, o próprio vocábulo heráldica foi cunhado a partir do modelo ars grammatica, ars arithmetica etc. Ora, como é um sistema semiótico, o seu estudo assume uma forma muito semelhante à de uma gramática, semelhança percebida há muito tempo pelos estudiosos, diga-se de passagem. Quando se avança do estudo para a criação, parece uma técnica, pois ainda que de modo abstrato, ordenar um brasão é como um trabalho têxtil, em que se vão costurando, bordando ou aplicando os componentes do fundo para a superfície. Enfim, quando da abstração se chega à concreção, isto é, do brasonamento em linguagem verbal à reprodução em linguagem visual, torna-se uma arte no sentido contemporâneo do termo.

Sem dúvida, isso é fascinante, mas também é desafiador. Implica que o heraldista completo há de saber fazer tudo: conhecer o sistema, ordenar armas novas e reproduzi-las. Obviamente, tal completude rareia. As próprias autoridades heráldicas têm quadros competentes na criação de bons brasões, mas costumam contar com artistas para executá-los. Daí que hoje se achem tantos designers que dominam a sua arte visual, mas deixam ver um conhecimento do sistema heráldico não mais que básico. Digo isto porque a comunidade se alvoroça quando topa com uma bricolagem como o emblema do Cardeal Ramazzini, mas a cada semana me deparo com escudos terciados em mantel carregados de cálices, monogramas marianos, livros abertos, que podem não ser uma "heráldica de terror", como um comentarista titulou o emblema do cardeal, mas são, é forçoso reconhecê-lo, uma "heráldica de clichê".

A partir desta postagem, trarei uma série de cinco brasões: a proposta de Tristão de Alencar Araripe para o município de Fortaleza, o que esse município assumiu, o da arquidiocese de Fortaleza, o da Universidade Federal do Ceará e o da 10.ª Região Militar do Exército Brasileiro. Com elas quero demonstrar como do mesmo mote — o próprio nome de Fortaleza — se criaram diferentes brasões em áreas diversas da heráldica (municipal, eclesiástica, corporativa e militar) com boa qualidade, porque os seus autores souberam explorar vários recursos que o sistema proporciona. O objetivo final é estimular os heraldistas de hoje a aperfeiçoar a sua competência na matéria. Ressalto: a competência heráldica, não a habilidade de desenhar.

Proposta de brasão para Fortaleza (por Tristão de Alencar Araripe): de vermelho com um castelo de ouro.
Proposta de brasão para Fortaleza (por Tristão de Alencar Araripe): de vermelho com um castelo de ouro.

Começando, pois, pela proposta de Tristão de Alencar Araripe, falei dela na postagem de 15/08. Está contida num artigo que publicou pouco depois da instauração da República no tomo LIV (1891) da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em que propôs brasões para todos os estados e as suas capitais. Eis aquela para Fortaleza: "Em campo de goles, um castelo de ouro, com três torres do mesmo metal, sobranceiras, das quais a do meio é mais alta; com a coroa mural por cima. Mote: Fortitudine". Nunca é excessivo frisar que goles, sable, sinople e os horrorosos jalne e blau são uma nomenclatura espúria na nossa língua. Além disso, na armaria portuguesa o castelo tem por defeito três torreões, o do meio, ou torre de menagem, mais alto, de modo que o estadista cearense propôs simplesmente um castelo de ouro em campo de vermelho ou, de outro modo, de vermelho com um castelo de ouro.

O que dizer? Que é simples demais? Surpreenderá que em heráldica isso não é um pecado, mas uma virtude. O emblema do Ceará, mostrando a enseada do Mucuripe ante o sol nascente, certamente é belo e representativo, mas sofre dessa dificuldade insuperável: como brasoná-lo? E já sabemos: o que não é brasonável brasão não deve de ser. Por outro lado, quem ousará reprochar as armas falantes de Castela por causa da sua simplicidade? Com efeito, a indesejável semelhança com essas armas é o ponto fraco da proposta. Não obstante, repisando que em matéria de brasão menos é mais, começa muito bem a série.

Nota: 
(1) Daí que na academia se nomeie estado da arte a revisão da literatura técnica acerca de certo objeto.