A vexilologia tem o defeito de se repetir sem fazer crítica textual.
Na postagem de 01/12, razoei que a relação dos portugueses com o mar fez Portugal passar por toda a evolução da bandeira no Ocidente. Talvez por isso o Exército Brasileiro enumere nada menos que doze bandeiras históricas para o Brasil, dez delas sob o domínio português. Julgo, porém, que a série sobre brasões e bandeiras, que acabei há pouco, demonstra suficientemente que esses sinais têm representado conceitos diferentes ao longo da história. Começo, pois, pela crítica das bandeiras e dos estandartes reais.
Bandeira da Ordem de Cristo. |
O primeiro item da lista, que pode ser qualificada de oficial, é a bandeira da Ordem de Cristo. Dá-se-lhe o período de 1332 a 1651, o que é, de entrada, incompreensível, pois não se dizem quais fatos aconteceram nesses anos. Como expus nas postagens de 07, 08 e 09/09/2022, essa ordem foi instituída em 1319 e o uso da sua bandeira não cessou em 1651, já que serviu de pavilhão mercante ao Reino sob Dom João IV e Dom Afonso VI, isto é, entre 1640 e 1668. Antes disso, era simplesmente a insígnia da ordem.
A armada de Pedro Álvares Cabral em 1500 segundo o Livro de Lisuarte de Abreu, 1563 (conservado em The Morgan Library & Museum; imagem disponível em The Nautical Archaeology Digital Library). Observe-se a bandeira da Ordem de Cristo no alto da nau capitânia. |
De fato, Pedro Álvares Cabral trazia a bandeira da Ordem de Cristo no alto da sua nau quando reclamou a Terra da Vera Cruz para o rei de Portugal em 1500, tal como outros capitães e almirantes de armadas o faziam e fariam durante a expansão além-mar, porque era essa ordem que patrocinava a empresa ultramarina. Portanto, só tem sentido tomá-la por bandeira histórica do Brasil se por tal se entender que foi usada durante a conquista portuguesa do nosso país.
A confusão deve-se à convergência dos mestrados das ordens de cavalaria com a Coroa desde o reinado de Dom Manuel I, o que nos leva ao segundo item: a "Bandeira Real de 1500 a 1521". Outra vez, a datação não faz sentido: esse rei efetivamente morreu no último ano, mas ascendeu ao trono em 1495, a não ser que o ano de 1500 refira ao Descobrimento. Mais que isso: a forma — o escudo real sobre a cruz da Ordem de Cristo — foi, na verdade, arvorado pelos galeões da Índia desde a Restauração (1640) até a progressiva simplificação das signas navais sob Dona Maria I (1777-1815).
A esta altura já se descobre por que se multiplicaram as bandeiras durante o período colonial: está bem atestado que desde Dom Manuel I a bandeira real foi um pano branco com as armas reais, mas estas sofreram algumas mudanças ao longo do tempo. Assim, o número dos castelos ficou fixado em sete desde 1555, a coroa evoluiu da aberta à fechada de quatro diademas sob Dom Sebastião (1557-78) e esta à de oito no século XVII, além da variação dos suportes: as cruzes ou os colares das ordens de cavalaria, anjos, ramos de louro, carvalho ou palma, serpes etc. Enfim, quanto ao escudo, era a moda que ditava a sua forma.
"Pavilhão real de Portugal" em La connaissance des pavillons... (1737). |
Portanto, assim como não se aponta que o Brasil independente teve múltiplas bandeiras a cada alteração da coroa nas armas do Império e do número de estrelas nestas e na esfera celeste sob a República, é correto deduzir que durante o período colonial a bandeira real é a mesma desde Dom Manuel I até Dona Maria I. Com efeito, outro erro do Exército Brasileiro é confundir essa bandeira e a do próprio rei.
Como abordei várias vezes neste blog, especialmente na postagem de 09/01/2021, já Bártolo de Sassoferrato no De insigniis et armis (1358) conceituou que algumas armas são de dignidade, isto é, são trazidas por alguém em função do exercício de certa dignidade, como a régia. Daí que todos os reis da Casa de Avis tenham assumido uma empresa a modo de insígnia pessoal, a mais famosa a esfera armilar de Dom Manuel I.
Primeira página do foral do Porto, outorgado por Dom Manuel I em 1517, conservado no Arquivo Municipal. Veem-se as armas reais acima e as municipais abaixo, aquelas ladeadas pela bandeira da Ordem de Cristo e pelo estandarte pessoal do rei, que carrega a sua empresa, ou seja, a esfera armilar de ouro. |
Nas bandeiras, esse movimento, pelo qual as armas deixaram de pertencer ao rei para representar o reino, ocorreu de duas maneiras. Enquanto vigeu a moda das empresas, cada monarca transladava a sua a um vexilo. Por exemplo, a bandeira de Dom Manuel I era bicolor, branca e vermelha, partida em uma ou ambas diagonais, com a esfera armilar sobreposta. Passada essa moda, na monarquia portuguesa surgiu o estandarte real, que também tinha as armas reais, mas cor distinta.
Portanto, o segundo item da lista e mais o terceiro, quarto e oitavo, a saber, "Bandeira de D. João III (1521-1616)", "Bandeira do Domínio Espanhol (1616-1640)" e "Bandeira Real Século XVII (1600-1700)", reduzem-se a variantes da mesma bandeira real. O quinto e sétimo itens, a saber, a "Bandeira de D. João IV (1640-1683)" e a "Bandeira de D. Pedro II, de Portugal (1683-1706)", não devem ter sido sequer desfraldadas no Brasil, porque, como estandartes reais, assinalavam a presença do rei.
Contudo, esta parte do assunto ainda não está resolvida, pois no aspeado e nas figuras se acha toda espécie de problemas que uma observação séria não pode ignorar, a começar pela cronologia. Ora, Dom João III reinou de 1521 a 1557 e Dom João IV, de 1640 a 1656; a União Ibérica (nunca houve domínio espanhol) durou de 1580 a 1640 e o século XVII correu de 1601 a 1700! Quanto às figuras, todas mostram escudos de ponta arredondada com sete castelos, o que não corresponde à realidade histórica, pelas razões que aduzi mais acima.
Bandeiras atribuídas a Dom João IV e Dom Pedro II em Brasões e bandeiras do Brasil (1933), de Clóvis Ribeiro. |
Ademais, é dubitável a existência das bandeiras atribuídas a Dom João IV e Dom Pedro II. Elas estão, de fato, mencionadas na literatura vexilológica, mas esta tem o grave defeito de se repetir sem nenhuma crítica das fontes. Ora, a referência mais antiga que acho sobre a primeira está num artigo de jornal, publicado no Diário de Notícias aos 13 de outubro de 1907, cujo autor (Teófilo Braga?) sentencia laconicamente: "A bandeira de D. João IV era orlada de azul, com as armas reais e coroa". Sobre a segunda, repete a informação que Manuel Pinheiro Chagas dá no Dicionário popular (1878): "Um manuscrito feito em 1669 e existente na biblioteca do palácio d'Ajuda, manuscrito onde vêm as insígnias dos pendões militares, apresenta o português com a cor verde e no centro as armas de Portugal". José Feliciano leu aquele artigo e o citou em A bandeira nacional (1908) e Clóvis Ribeiro leu Feliciano e o citou em Brasões e bandeiras do Brasil (1933). A vinculação direta ao rei aparece na legenda abaixo do desenho de José Wasth Rodrigues: "12 – D. Pedro II (1669)". E isto é tudo que se sabe!
Pavilhões de Portugal no Flags of maritime nations (1899). |
Seja como for, o erro mais bizarro que o Exército Brasileiro comete nessa lista está no décimo item: "Bandeira do Regime Constitucional (1821-1822)". Primeiro, é questionável qualificar esse período de constitucional, porque a constituição só foi passada aos 23 de setembro de 1822, dezesseis dias após a separação do Brasil, mas o escândalo está em atribuir a tal período a bandeira que a regência de Dona Maria II adotou em 1830, oito anos depois da Independência! Mais que isso: diz-se que tal bandeira foi criada aos 21 de agosto de 1821. O que as Cortes decretaram, não no dia 21, mas no 22 desse mês e ano e o rei converteu em lei ao dia seguinte, foi a criação do laço nacional branco e azul!
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