08/09/22

"ATRAVESSADA POR UMA CRUZ DA ORDEM DE CRISTO" (II)

De ordem de cavalaria a ordem honorífica.

Seis mestres sucederam-se à cabeça da Ordem de Cristo após Gil Martins. Nesse período, enquanto a ordem se estabelecia e a sua administração se aprimorava, serviu à Coroa como uma espécie de reserva estratégica, mais contra eventuais pretensões dos reis castelhanos do que contra ameaças de forças muçulmanas. Morto em 1417 Lopo Dias de Sousa, o sétimo mestre, Dom João I pediu ao papa Martinho V que nomeasse seu filho, o infante Dom Henrique, administrador da ordem, o que foi atendido pela bula In apostolicæ dignitatis specula em 1420.

Sob a administração de Dom Henrique, a cruzada ganhou um sentido novo, que revigorou a Ordem de Cristo: não mais a defesa da cristandade no solo hispano, mas a propagação da fé na expansão ultramarina. Com efeito, o infante tomara parte da conquista de Ceuta em 1415 e em seguida o rei encarregara-o da defesa marítima dos Algarves, no que fora provado, pois vencera uma frota granadina que tinha cercado a recém-conquistada cidade em 1418. Além disso, a seu serviço os navegadores João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira exploraram o arquipélago da Madeira no ano seguinte.

A armada de Pedro Álvares Cabral em 1500 segundo o Livro de Lisuarte de Abreu (1563, conservado em The Morgan Library & Museum; imagem disponível em The Nautical Archaeology Digital Library).
A armada de Pedro Álvares Cabral em 1500 segundo o Livro de Lisuarte de Abreu, 1563.  (conservado em The Morgan Library & Museum; imagem disponível em The Nautical Archaeology Digital Library). Observe-se a bandeira da Ordem de Cristo no alto da nau capitânia.

Assim, ainda no tempo de Dom Henrique firmou-se uma bem-sucedida parceria entre a Ordem de Cristo e a Coroa: os enormes rendimentos da ordem custeavam as navegações e, em troca, Calisto III em 1456 pela bula Inter cetera concedeu-lhe a jurisdição espiritual sobre as ilhas, terras, portos e lugares ao sul do cabo Bojador que "de manibus Sarracenorum manu armata extraxit et Christianæ religioni, ut præfertur, conquisivit" ("tirou das mãos dos sarracenos à mão armada e, como referido, conquistou para a religião cristã"). Apesar do termo espiritual, o retorno do investimento era bem material: a cobrança do dízimo.

Os pontífices romanos seguiram atendendo aos pedidos de nomeação de administradores, feitos pelos reis portugueses: depois de Dom Henrique, o infante Dom Fernando, filho de Dom Duarte; sucessivamente, seus filhos, até que o mais novo deles ascendeu ao trono: Dom Manuel. Sob ele, completou-se a convergência da ordem com a Coroa, o que Júlio II tornou definitivo em 1551 pela bula Præclara carissimi, ao entregar perpetuamente os mestrados das ordens de Cristo, Avis e Santiago a Dom João III e seus sucessores.

Freire da Ordem de Cristo segundo Pierre Hélyot na Histoire des ordres monastiques, religieux et militaires... (tomo VI, 1718).
Freire da Ordem de Cristo segundo Pierre Hélyot na Histoire des ordres monastiques, religieux et militaires... (tomo VI, 1718).

Na Idade Moderna, a Ordem de Cristo operava mais como uma instituição financeira do que como uma ordem de cavalaria. Com efeito, depois de se terem afrouxado o voto de pobreza (1449) e o de castidade (1496) para os cavaleiros, apenas os freires enclausurados no Convento de Cristo em Tomar, no Convento da Luz em Lisboa e no Colégio de Tomar em Coimbra, reformados por Frei Antônio de Lisboa em 1531, lembravam a origem da ordem. Na verdade, até a bula Ad regiæ majestatis, de Pio V em 1570, a administração procurou atrair os cavaleiros para o norte da África com o incentivo das comendas; desde então, os próprios hábitos passaram a ser impostos após certo serviço à Coroa. Inclusive, tentou-se cingir essa prestação a um serviço militar no ultramar, mas pouco a pouco se estendeu a qualquer serviço.

Cavaleiro da Ordem de Cristo segundo Pierre Hélyot na Histoire des ordres monastiques, religieux et militaires... (tomo VI, 1718).
Cavaleiro da Ordem de Cristo segundo Pierre Hélyot na Histoire des ordres monastiques, religieux et militaires... (tomo VI, 1718).

No século XVIII, o hábito e as comendas da Ordem de Cristo tornaram-se meios de nobilitação para quem prestara serviço militar ou certos serviços administrativos. Não se exigia justificação de nobreza, mas sim limpeza de sangue e de ofício; mesmo assim, podia-se obter dispensa régia. Destarte, quando Dona Maria I secularizou pela Lei de 19 de junho de 1789 as ordens de Cristo, Avis e Santiago, reservando o título de comendador-mor ao príncipe e criando o de grã-cruz acima do comendador, acabou por regulamentar a evolução de ordem de cavalaria para ordem honorífica. O ramo conventual foi extinto, juntamente com todas as casas de ordens regulares, por Dom Pedro IV pelo Decreto de 28 de maio de 1834.

Da perspectiva heráldica, pode-se dizer que a insígnia da Ordem de Cristo é a cruz templária diferençada: como esta, é pátea, mas não é curvilínea, e sim retilínea; diferentemente dela, está vazia, isto é, o seu contorno interno deixa ver o campo. Na verdade, o branco do hábito ou da bandeira da ordem aparece, por vezes, incorporado na cruz, como nas próprias armas nacionais brasileiras, de modo que o seu brasonamento exato é: uma cruz pátea retilínea de vermelho, cheia de prata. Sabiamente, o Decreto de 18 de setembro de 1822 simplifica-o: "uma cruz da Ordem de Cristo".

Tal como a esfera armilar era o emblema pessoal de Dom Manuel I, a cruz da Ordem de Cristo assinalava a presença dessa ordem, mas já no tempo desse rei aparece como emblema estatal. É bem compreensível, pois a convergência da ordem com a Coroa dotou Portugal de uma insígnia simples e diferente das armas reais, como a Espanha tinha a cruz de Borgonha, a França a cruz de São Miguel, a Inglaterra a cruz de São Jorge etc. Daí o uso naval.

A cruz da Ordem de Cristo nas signas navais portuguesas.
A cruz da Ordem de Cristo nas signas navais portuguesas.

Assim, a cruz da Ordem de Cristo figurava nas velas das embarcações que essa ordem armava, como se vê no Livro de Lisuarte de Abreu (1556). A bandeira da ordem era arvorada na nau capitânia, mas durante os reinados de Dom João IV e Dom Afonso VI se tornou o pavilhão mercante do Reino, ao passo que nos galeões da Índia a cruz suportava as armas reais. Neste segundo pavilhão, suprimiu-se a coroa em 1670 e dessa forma seguiu em uso até a progressiva simplificação das signas a favor do estandarte real sob Dona Maria I.

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