De ordem de cavalaria a ordem honorífica.
Seis mestres sucederam-se à cabeça da Ordem de Cristo após Gil Martins. Nesse período, enquanto a ordem se estabelecia e a sua administração se aprimorava, serviu à Coroa como uma espécie de reserva estratégica, mais contra eventuais pretensões dos reis castelhanos do que contra ameaças de forças muçulmanas. Morto em 1417 Lopo Dias de Sousa, o sétimo mestre, Dom João I pediu ao papa Martinho V que nomeasse seu filho, o infante Dom Henrique, administrador da ordem, o que foi atendido pela bula In apostolicæ dignitatis specula em 1420.
Sob a administração de Dom Henrique, a cruzada ganhou um sentido novo, que revigorou a Ordem de Cristo: não mais a defesa da cristandade no solo hispano, mas a propagação da fé na expansão ultramarina. Com efeito, o infante tomara parte da conquista de Ceuta em 1415 e em seguida o rei encarregara-o da defesa marítima dos Algarves, no que fora provado, pois vencera uma frota granadina que tinha cercado a recém-conquistada cidade em 1418. Além disso, a seu serviço os navegadores João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira exploraram o arquipélago da Madeira no ano seguinte.
A armada de Pedro Álvares Cabral em 1500 segundo o Livro de Lisuarte de Abreu, 1563. (conservado em The Morgan Library & Museum; imagem disponível em The Nautical Archaeology Digital Library). Observe-se a bandeira da Ordem de Cristo no alto da nau capitânia. |
Assim, ainda no tempo de Dom Henrique firmou-se uma bem-sucedida parceria entre a Ordem de Cristo e a Coroa: os enormes rendimentos da ordem custeavam as navegações e, em troca, Calisto III em 1456 pela bula Inter cetera concedeu-lhe a jurisdição espiritual sobre as ilhas, terras, portos e lugares ao sul do cabo Bojador que "de manibus Sarracenorum manu armata extraxit et Christianæ religioni, ut præfertur, conquisivit" ("tirou das mãos dos sarracenos à mão armada e, como referido, conquistou para a religião cristã"). Apesar do termo espiritual, o retorno do investimento era bem material: a cobrança do dízimo.
Os pontífices romanos seguiram atendendo aos pedidos de nomeação de administradores, feitos pelos reis portugueses: depois de Dom Henrique, o infante Dom Fernando, filho de Dom Duarte; sucessivamente, seus filhos, até que o mais novo deles ascendeu ao trono: Dom Manuel. Sob ele, completou-se a convergência da ordem com a Coroa, o que Júlio II tornou definitivo em 1551 pela bula Præclara carissimi, ao entregar perpetuamente os mestrados das ordens de Cristo, Avis e Santiago a Dom João III e seus sucessores.
Freire da Ordem de Cristo segundo Pierre Hélyot na Histoire des ordres monastiques, religieux et militaires... (tomo VI, 1718). |
Na Idade Moderna, a Ordem de Cristo operava mais como uma instituição financeira do que como uma ordem de cavalaria. Com efeito, depois de se terem afrouxado o voto de pobreza (1449) e o de castidade (1496) para os cavaleiros, apenas os freires enclausurados no Convento de Cristo em Tomar, no Convento da Luz em Lisboa e no Colégio de Tomar em Coimbra, reformados por Frei Antônio de Lisboa em 1531, lembravam a origem da ordem. Na verdade, até a bula Ad regiæ majestatis, de Pio V em 1570, a administração procurou atrair os cavaleiros para o norte da África com o incentivo das comendas; desde então, os próprios hábitos passaram a ser impostos após certo serviço à Coroa. Inclusive, tentou-se cingir essa prestação a um serviço militar no ultramar, mas pouco a pouco se estendeu a qualquer serviço.
Cavaleiro da Ordem de Cristo segundo Pierre Hélyot na Histoire des ordres monastiques, religieux et militaires... (tomo VI, 1718). |
No século XVIII, o hábito e as comendas da Ordem de Cristo tornaram-se meios de nobilitação para quem prestara serviço militar ou certos serviços administrativos. Não se exigia justificação de nobreza, mas sim limpeza de sangue e de ofício; mesmo assim, podia-se obter dispensa régia. Destarte, quando Dona Maria I secularizou pela Lei de 19 de junho de 1789 as ordens de Cristo, Avis e Santiago, reservando o título de comendador-mor ao príncipe e criando o de grã-cruz acima do comendador, acabou por regulamentar a evolução de ordem de cavalaria para ordem honorífica. O ramo conventual foi extinto, juntamente com todas as casas de ordens regulares, por Dom Pedro IV pelo Decreto de 28 de maio de 1834.
Da perspectiva heráldica, pode-se dizer que a insígnia da Ordem de Cristo é a cruz templária diferençada: como esta, é pátea, mas não é curvilínea, e sim retilínea; diferentemente dela, está vazia, isto é, o seu contorno interno deixa ver o campo. Na verdade, o branco do hábito ou da bandeira da ordem aparece, por vezes, incorporado na cruz, como nas próprias armas nacionais brasileiras, de modo que o seu brasonamento exato é: uma cruz pátea retilínea de vermelho, cheia de prata. Sabiamente, o Decreto de 18 de setembro de 1822 simplifica-o: "uma cruz da Ordem de Cristo".
Tal como a esfera armilar era o emblema pessoal de Dom Manuel I, a cruz da Ordem de Cristo assinalava a presença dessa ordem, mas já no tempo desse rei aparece como emblema estatal. É bem compreensível, pois a convergência da ordem com a Coroa dotou Portugal de uma insígnia simples e diferente das armas reais, como a Espanha tinha a cruz de Borgonha, a França a cruz de São Miguel, a Inglaterra a cruz de São Jorge etc. Daí o uso naval.
A cruz da Ordem de Cristo nas signas navais portuguesas. |
Assim, a cruz da Ordem de Cristo figurava nas velas das embarcações que essa ordem armava, como se vê no Livro de Lisuarte de Abreu (1556). A bandeira da ordem era arvorada na nau capitânia, mas durante os reinados de Dom João IV e Dom Afonso VI se tornou o pavilhão mercante do Reino, ao passo que nos galeões da Índia a cruz suportava as armas reais. Neste segundo pavilhão, suprimiu-se a coroa em 1670 e dessa forma seguiu em uso até a progressiva simplificação das signas a favor do estandarte real sob Dona Maria I.
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