Bicentenário das armas nacionais: "Será d'ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo...".
Curiosamente, o rei de Portugal que extinguiu as ordens regulares em 1834 fora o imperador do Brasil a quem Leão XII reconhecera o grão-mestrado e a administração das ordens de Cristo, Avis e Santiago em 1827 pela bula Præclara Portugaliæ, a qual recebeu parecer desfavorável da Assembleia Geral sob alegações de inconstitucionalidade.
"Em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo". |
Como a Lei de 20 de outubro de 1823 salvaguardou a legislação vigente no Brasil antes da separação de Portugal e aquela concernente a essas três ordens não foi revogada, seguiu-se que cada uma delas se cindiu em duas, uma portuguesa e a outra brasileira, o que, pela nova visão de mundo, não precisava da confirmação da Santa Sé, para todos os efeitos uma potência estrangeira, já que o imperador agia sob o amparo da sua aclamação. A soberania nacional foi, efetivamente, uma das alegações dos pareceristas contra a bula, a qual abordava a propagação da fé católica de uma perspectiva beligerante, portanto antiquada e contrária à tolerância religiosa que a Constituição garantia (art. 179, § 5.º).
Cavaleiros da Ordem de Cristo com o hábito da ordem. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital). |
Apesar de o caráter honorífico das três ordens estar patente desde a lei de 1789, esse impasse com a Santa Sé levou Dom Pedro II a declarar em 1843 pelo Decreto n.º 321 que tais ordens eram "civis e políticas, destinadas para remunerar serviços feitos ao estado". Legislação posterior, de 1868, reservou a Imperial Ordem de Avis à remuneração de serviços militares, como, de resto, já dispunha a dita lei de 1789.
Não se resolveu, porém, o efeito mais duradouro do poderio que a Ordem de Cristo cumulou outrora: o padroado, isto é, a jurisdição espiritual sobre o ultramar português. Ora, para a Santa Sé parecia muito claro que renunciava a algo que lhe pertencia a favor dessa ordem e esta, em contrapartida, se comprometia com a propagação da fé. Em contraposição, para o estado brasileiro o padroado não vinha da concessão pontifícia à Ordem de Cristo, mas constituía uma prerrogativa do soberano (o padroado régio), transmitida pela continuidade do direito português e legitimada pela Carta Magna (art. 102, § 2.º e § 14). Esse desentendimento fez parte da chamada Questão Religiosa, a qual, entre outras, desgastou a monarquia. Com efeito, a República não esperou sequer a nova constituição para extinguir o padroado: fê-lo pelo Decreto n.º 119-A, de 7 de janeiro de 1890).
Insígnias da Imperial Ordem de Cristo segundo Artidoro Augusto Xavier Pinheiro na Organização das ordens honoríficas do Império do Brasil (1884). |
Chega a ser irônico que o governo negasse o padroado da Ordem de Cristo sendo a insígnia dessa ordem um símbolo nacional. O Decreto de 18 de setembro de 1822 atesta a diligência de adotar uma figura falante: "rememorar o primeiro nome que lhe fora imposto no seu feliz descobrimento". Neste sentido, a cruz da Ordem de Cristo não era apenas o emblema das navegações e conquistas que engendraram o Brasil, mas também aquele de que os brasileiros mais proeminentes se ufanavam. Com efeito, o hábito dessa ordem sempre foi a honraria mais cobiçada na América portuguesa. Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva em artigo de 2008, de 1808 a 1822 concederam-se os impressionantes números de 382 comendas e 1.990 hábitos da Ordem de Cristo.
Além de pender ao pescoço, a cruz da Ordem de Cristo também estava dentro do bolso, já que figurava nas espécies cunhadas pelas casas da moeda brasileiras, mais precisamente naquelas de ouro, portanto de maior valor, desde 1695 até 1727, entre as quais o famoso dobrão. Nas espécies de prata, aparece sobposta à esfera armilar desde o mesmo ano de 1695 até 1818 e sob as armas do Reino Unido entre esse ano e 1822 (veja-se a postagem de 22/02/2021).
Reverso da moeda de 6.400 réis (1823-30). Observe-se a divisa In hoc signo vinces (imagem disponível no catálogo Moedas do Brasil). |
A propósito, ao se reordenarem os cunhos logo após a Independência, as referidas moedas de ouro forneceram a legenda que serviu quase de divisa nacional durante o Império: In hoc signo vinces ('Com este sinal vencerás'). As armas brasileiras ficavam, assim, situadas na longa sucessão de lendas sobre a aparição de uma cruz no céu à véspera de uma batalha decisiva ou durante ela, sucessão que começa da Bíos Megálou Kōnstantínou ('Vida de Constantino o Grande'; 337), de Eusébio de Cesareia, que isso narra a respeito da Batalha da Ponte Mílvia (312), e abrangia, ainda, o Milagre de Ourique, origem mítica das armas reais portuguesas.
Observe-se, enfim, que nas moedas coloniais a esfera armilar aparenta sobrepor-se à cruz da Ordem de Cristo. Se as armilas dos paralelos estão traçadas em linhas retas, pode-se mesmo duvidar de como se situa uma figura em relação à outra. Com suma precisão, o Decreto de 18 de setembro de 1822 brasona que a esfera está "atravessada" pela cruz. Sendo essa esfera um objeto formado por aros, isso quer dizer que a cruz está enganchada nela. Vê-se bem esse arranjo numa joia que o ourives Carlos Marin fabricou em 1841 para Dom Pedro II e a princesa Isabel guardou e legou a Dom Pedro de Alcântara, príncipe do Grão-Pará.
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