Dos templários à Ordem de Cristo.
Sem dúvida, a cruz foi o símbolo mais usado na Europa ocidental antes da heráldica. Por todas as grandes guerras ao longo da alta Idade Média, bastava para distinguir o cristão do pagão ou infiel. Assim, ao leste e ao norte, distinguia-o dos povos que ainda eram adeptos às suas religiões tradicionais e ao sul, dos muçulmanos. Durante a conquista da Terra Santa, essa função ganhou tal dimensão que deu nome à própria expedição: a cruzada. Mais que isso: passou a simbolizar também o código de conduta para o qual a cavalaria evoluiu.
Com efeito, até então havia três estamentos bem definidos: 'os que rezam' (oratores), 'os que guerreiam' (bellatores) e 'os que trabalham' (laboratores). As cruzadas produziram, então, uma nova ordem, a ordem de cavalaria, cujo membro era um miles ('cavaleiro' ou, mais literalmente 'soldado') que professava certos votos religiosos.
Não obstante, as ordens de cavalaria também eram verdadeiros estados. Possuíam fortalezas, mosteiros, povoações e vastas propriedades — as comendas — e nelas dispunham de muitos trabalhadores, além de privilégios fiscais. Na prática, os seus mestrados e priorados eram senhorios eletivos e estavam entre as maiores potências em cada reino, não sujeitas ao rei, mas ao papa.
Cruzes templárias. |
A Ordem Templária foi estatuída pelo Concílio de Troyes em 1129, ao reconhecer uma milícia que tinha sido fundada nove anos antes no reino de Jerusalém por iniciativa de Hugues de Payns e mais oito cavaleiros, aos quais o rei Balduíno II cedeu uma parte do seu palácio, a antiga mesquita levantada, segundo a tradição, sobre o Templo de Salomão (hoje al-Aqṣā), daí o seu nome. Graças ao apoio de São Bernardo de Claraval, que escreveu no mesmo ano o Liber ad milites Templi de laude novæ militiæ ('Livro aos cavaleiros do Templo sobre o elogio da nova milícia'), a ordem cresceu mais rapidamente e recebeu a primeira aprovação pontifícia em 1139 pela bula Omne datum optimum do papa Inocêncio II. A sua missão era assegurar as rotas de peregrinação até a Terra Santa.
A dissolução da Ordem Templária é um assunto muitíssimo controverso que até hoje enseja boas estórias, seja na forma de livros seja na forma de filmes ou séries. Cinjamo-nos a alguns fatos. Fato é que após a queda de Acre, o derradeiro bastião cruzado na Terra Santa, em 1291, os templários ficaram, em grande medida, sem condições de cumprir a sua missão, mas continuaram a ser poderosos senhores de terras e homens, mormente na França, cujo rei, Filipe IV o Belo, procurava converter a monarquia feudal em autoritária, principalmente em matéria fiscal.
A política de Filipe o Belo causou tal conflito com a Santa Sé que em 1302 Bonifácio VIII lançou a bula Unam Sanctam, em que declarou a subordinação do poder temporal ao espiritual e a submissão de todos os seres humanos ao romano pontífice. No ano seguinte, o rei enviou o conselheiro Guillaume de Nogaret notificar o papa de que pediria um concílio para julgá-lo de várias acusações, mas a embaixada se converteu num atentado contra o papa, que embora tenha escapado, faleceu um mês depois. Tendo durado pouco mais de oito meses o pontificado do sucessor, Bento XI, o Colégio Cardinalício preferiu eleger precisamente um francês: Bertrand de Got, então arcebispo de Bordéus, que se impôs o nome de Clemente V.
Clemente V enredou-se de tal modo na querela de Filipe o Belo contra a Ordem do Templo que nunca se mudou do sul da França para o Estado da Igreja, o que deu princípio ao chamado papado de Avinhão. Inicialmente contrário à prisão dos templários, executada por ordem real em 13 de outubro de 1307, teve de se render aos acontecimentos e no mês seguinte lançou a bula Pastoralis præeminentiæ, pela qual mandou a todos os príncipes cristãos prender os templários e sequestrar os seus bens, tentando salvaguardar a jurisdição eclesiástica sobre o caso. A sorte da ordem deveria, então, ser julgada pelo Concílio de Vienne, aberto em outubro de 1311, mas a hesitação dos padres conciliares levou Filipe o Belo a marchar sobre a cidade em março do ano seguinte. Dois dias depois da sua chegada, Clemente V dissolveu a ordem pela bula Vox in excelso.
Cruz antiga da Ordem de Montesa. |
Pouco antes de o concílio se encerrar em maio de 1312, Clemente V doou os bens da Ordem Templária à Ordem Hospitalária pela bula Ad providam, exceto nas Coroas de Aragão, Castela e Portugal, onde ficariam sob o cuidado dos respectivos monarcas até resolução ulterior, afinal na Espanha as ordens de cavalaria ainda pareciam necessárias à defesa da cristandade, seja porque na península ainda havia o reino de Granada, seja porque além-mar podia levantar-se alguma ameaçadora potência. Assim, João XXII, o sucessor do papa Clemente, acordou com Jaime o Justo que na Catalunha e em Aragão esse espólio seria efetivamente doado aos hospitalários, mas em Valência estes cederiam parte dos seus próprios bens e aqueles que haviam de receber a uma nova ordem, fundada em 1317 com o nome de Ordem de Montesa.
Cruz da Ordem de Cristo. |
Semelhante acordo fez também com Dom Dinis: o espólio dos templários em Portugal dotou a Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, instituída em 1319 pela bula Ad ea ex quibus, que lhe deu a regra de Calatrava, nomeou Gil Martins mestre, quem até então o era de Avis, e estabeleceu a sua sede em Castro Marim, no Algarve. Esta foi transferida para a sede da antiga província templária, o castelo de Tomar, em 1356, quando a ordem já possuía 36 comendas.
A insígnia dos templários era uma cruz vermelha. Como essa ordem nasceu e cresceu ao mesmo tempo que a heráldica, seria temerário apontar um padrão para a forma dessa cruz, mas, com base nos testemunhos, como os selos, tinha uma forma pátea. Mesmo assim, esse atributo pode variar grandemente, dependendo da espessura das "patas", isto é, das extremidades da cruz. Não obstante, as insígnias das ordens continuadoras — de Montesa e de Cristo — sugerem que, ao menos no começo do século XIV, a curvatura não partia dos ângulos, mas estava nas pontas.
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