A heráldica é uma arte, mas é preciso clareza para discernir o que tem base histórica e o que é mero exercício artístico.
Acabei a postagem anterior dizendo que os artistas que desenhavam as armas nacionais durante o Império não só reproduziam fielmente o ordenamento oficial — que não é uma imagem, mas um texto —, mas também tomavam por vezes algumas liberdades, acrescentando ao brasão certos ornamentos, em consonância com a moda do momento. Uma dessas reproduções mais livres timbra o diploma mais célebre da nossa história: a Lei Áurea.
Armas Nacionais no timbre da Lei Áurea (imagem disponível no Arquivo Nacional). |
Neste caso, o artista fez dois acrescentamentos: atou os ramos de cafeeiro e tabaco com a insígnia da Imperial Ordem do Cruzeiro e sobrepôs o brasão a um pavilhão. Esse ornamento, que se vê também nalguns objetos e no frontispício do Palácio Imperial de Petrópolis (hoje Museu Imperial), consiste num dossel rematado pela coroa e coberto por um manto, geralmente de cor carmesim e forro de arminho, aberto e amarrado como uma cortina de um lado e do outro. Tanto se difundiu que até hoje a maioria das monarquias europeias distingue duas ou três versões das suas armas, a que traz as insígnias das ordens e o pavilhão designada genericamente grandes armas: Bélgica (armoiries de la Maison Royale/wapen van het Koninklijk Huis 'armas da Casa Real'), Dinamarca (kongelige våben 'armas reais'), Liechtenstein (grosse Staatswappen 'grandes armas estatais'), Luxemburgo (grandes armoiries 'grandes armas'), Noruega (kongevåpen 'armas reais'), Países Baixos (koninklijk wapen 'armas reais'), Suécia (stora riksvapen 'grandes armas estatais') e até mesmo uma república, a Sérvia (велики грб/veliki grb 'grandes armas'), além de Mônaco e da Ordem de Malta.
Não obstante, as armas imperiais do Brasil sempre tiveram uma única versão oficial: a ordenada pelo Decreto de 18 de setembro de 1822, apenas retocada pelo Decreto de 1.º de dezembro do mesmo ano, que trocou a coroa real pela imperial. Mesmo o acréscimo da vigésima estrela após 1853, alusiva à província do Paraná, deu-se de modo eventual e oficioso. De fato, versões oficiosas é como se podem considerar essas reproduções mais ornamentadas do que o constante do ordenamento legal, e não como alegorias, seja lá o que se entenda por tal.
Armas do Império do Brasil no frontispício do Palácio Imperial de Petrópolis (hoje Museu Imperial). Note-se, além do pavilhão, que o escudo com os ramos se sobrepõe a uma mão de justiça e ao cetro imperial decussados (imagem disponível no site do projeto A Casa Senhorial). |
Daí se segue que quem admira a pompa de certas monarquias europeias fica francamente frustrado com os modestos usos heráldicos da brasileira, a começar pelo fato de que o imperador não tinha propriamente armas pessoais. Na verdade, é um exemplo ilustrativo de armas de dignidade, pois o decreto de Dom Pedro I é claro: as armas foram dadas à nação, de modo que o monarca as trazia em função de ser o chefe supremo dela. Isso é reforçado pelo fato bem conhecido de que a Família Imperial era adepta da moda do monograma, como se vê nas portas do Paço de São Cristóvão (hoje Museu Nacional) ou no frontispício da Casa da Princesa Isabel em Petrópolis. Além disso, a relativa brevidade do regime e a alta mortalidade dos varões na linha sucessória podem ter contribuído com a falta de desenvolvimento de brasões para os títulos da Casa Imperial. De resto, as monarquias ibéricas sempre foram mais sóbrias.
Assim, qualquer escudo com lambel desse ou daquele esmalte, carregado dessa ou daquela figura e timbrado com essa ou aquela coroa, como se vê na Wikipédia, carece de fundamento histórico e não passa, portanto, de mero exercício artístico. Trocando em miúdos, durante o Império o príncipe imperial, o príncipe do Grão-Pará e os príncipes do Brasil nunca tiveram armas próprias. Mesmo assim, se os monarquistas querem atribuir brasões aos pretendentes hodiernos, deveriam obedecer às convenções portuguesas, afinal estas regeram a armaria gentilícia nacional até a instauração da República.
Em tempo, note-se que o artista iluminou o forro da coroa e o manto de vermelho na Lei Áurea, em plena consonância com o princípio de que na heráldica não há que se reproduzir objetos reais, mas se desenha uma estilização de tal objeto. Isso contrasta com o que parece dominar no meio monarquista, onde se vê tudo iluminado de verde, como que reproduzindo as insígnias concretas que os monarcas ostentaram. De fato, é um problema habitual do proselitismo: na ânsia de mostrar uma fidelidade exagerada aos ideais, acabam, como diz a frase feita, sendo mais papistas que o papa.
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