Um bom brasão de comunidade religiosa deve, a meu ver, referir ao seu orago, à Santíssima Trindade e ao território onde se localiza.
No ensejo da crítica à moda do chapado, mantelado e terciado em mantel, apresentarei mais um lote de propostas de brasões, desta vez para as paróquias de Currais Novos. Uma delas, a mais antiga e aquela de que sou freguês, assumiu armas novas em setembro de 2019, precisamente um escudo terciado.
Como é o caso de toda comunidade sertaneja de origem setecentista, a fundação de Currais Novos confunde-se com a devoção a Sant'Ana, a sua padroeira. Escrevi uma síntese histórica na minha proposta de brasão para o município, em 26 de fevereiro. Recapitulando os pontos comuns com a história eclesiástica: em 1755, Cipriano Lopes Galvão veio de Pernambuco para tomar posse e habitar a data do Totoró. Nesse mesmo ano, precisamente no dia 26 de julho, memória de Sant'Ana e São Joaquim, a água esgotou-se, mas à noite, após promessa do colono, caiu abundante chuva, que encheu os riachos e poços. O Coronel Galvão faleceu em 1764 e coube a seu filho homônimo, capitão-mor, cumprir o voto, doando meia légua de terra e erguendo nela em 1808 uma capela sob o título de Sant'Ana, perto da confluência dos riachos Totoró e São Bento. Nesse mesmo lugar em 1760, seu pai levantara currais novos para tratar e negociar o gado, de modo que logo ficou conhecido como os Currais Novos do Capitão-Mor, denominação transmitida ao povoado que cresceu em torno da capela. Esta foi elevada a igreja matriz em 1884, por meio da Lei Provincial n.º 893, de 20 de fevereiro, desmembrada da freguesia de Nossa Senhora da Guia de Acari.
Igreja Matriz de Sant'Ana, Currais Novos (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook). |
Com uma população de 44.905 habitantes em 2020, segundo a estimativa do IBGE, e uma proporção de 85,93% de católicos no censo de 2010, os bispos de Caicó, zelando pelas necessidades do seu rebanho, criaram mais duas paróquias no território currais-novense: em 8 de dezembro de 1992, Dom Heitor de Araújo Sales erigiu a paróquia da Imaculada Conceição e, já por desmembramento desta, Dom Antônio Carlos Cruz Santos erigiu a paróquia de São Francisco em 24 de janeiro de 2015. Atualmente, os padres Cláudio Dantas de Oliveira, Janilson Alves de Oliveira e Welson Rodrigues do Nascimento são os seus respectivos párocos.
Brasão da Paróquia de Sant'Ana de Currais de Novos: terciado em perle invertido, o primeiro de azul com uma concha aberta de prata, carregada de uma pérola do mesmo; o segundo de verde com uma vagoneta de prata, carregada de minério de ouro; o terceiro de vermelho com um ostensório de ouro, carregado de uma hóstia de prata, sobrecarregada do monograma IHS de negro; sob o escudo, uma cruz processional; listel de prata, forrado de vermelho, carregado da legenda PARÓQUIA DE SANT'ANA e as datas 1808 à destra e 1884 à sinistra, tudo de negro (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook). |
O brasão assumido pela paróquia de Sant'Ana é perfeitamente aceitável: terciado em perle invertido, o primeiro de azul com uma concha aberta de prata, carregada de uma pérola do mesmo; o segundo de verde com uma vagoneta de prata, carregada de minério de ouro; o terceiro de vermelho com um ostensório de ouro, carregado de uma hóstia de prata, sobrecarregada do monograma IHS de negro; sob o escudo, uma cruz processional; listel de prata, forrado de vermelho, carregado da legenda PARÓQUIA DE SANT'ANA e as datas 1808 à destra e 1884 à sinistra, tudo de negro. Passo ao comentário.
Começo destacando as qualidades: a escolha das figuras foi feita segundo o que defendo sejam as pautas para a confecção de brasões de comunidades religiosas: uma referência ao orago, outra a uma das pessoas da Santíssima Trindade e uma terceira à localidade ou território. No caso, a concha com a pérola refere a Sant'Ana, a exposição do Santíssimo Sacramento refere a Jesus Cristo e a vagoneta a Currais Novos.
Não obstante, é inevitável aplicar ao terciado as críticas que teci na postagem anterior: repito que não é de boa heráldica partir o campo para acomodar figuras diferentes, pois o recurso à partição se destina a juntar várias armas num só escudo; repito que o uso inapropriado desse recurso, especialmente do terciado, dificulta uma composição cromática que não seja apenas aceitável; repito que nem toda figura cai bem ao chapado, mantelado, terciado em mantel ou, neste caso, em perle, por causa das áreas triangulares que delimita. As armas em tela confirmam tudo isto: não se adotou um terciado para compor um escudo a partir de três brasões, mas para assentar um símbolo em cada terço, como evidenciei acima; como esses símbolos ficariam estranhos se não iluminados de metal, deram-se três cores ao campo (ainda assim, a vagoneta poderia ter ficado de negro em campo de prata); destes, somente o ostensório com a hóstia assentou bem junto aos traços da partição, tanto que foi preciso desenhar a vagoneta em três dimensões, o que discrepa do estilo heráldico clássico.
Em tempo, o perle é uma peça formada pela metade superior de uma aspa e a inferior de uma pala, o que lhe dá forma de Y. O terciado em perle parte o campo em três seguindo o mesmo traçado, ou seja, saem duas linhas dos ângulos superiores e uma do meio da ponta e encontram-se no centro do escudo. Portanto, o que distingue o terciado em mantel e o terciado em perle invertido é o ponto onde as três linhas convergem: naquele, um pouco abaixo do meio do bordo superior; neste, no centro do escudo.
Enfim, sabe o improvável leitor que desde as primeiras propostas de brasão neste blog me tenho contraposto ao uso de listel para inscrever o nome do titular e datas, porque o brasão é, por si, um identificador e dita a tradição que esse ornamento serve para ostentar o lema do armígero.
Apresentado o símbolo atual, vamos à proposta. Obedecendo à pauta que defendo, por figura principal cumpre pôr uma que seja atributo icônico do orago. Esta é a parte fácil. O desafio é selecionar as demais, uma representativa da religião e a outra, da localidade. Decidi-me por duas figuras que pudessem repetir-se nos brasões das três paróquias, não só porque seria contraproducente pensar em diversas para cada um, mas também por refletir a unidade delas dentro de uma comunidade maior, que é o município de Currais Novos, e projetar edificantemente uma intimidade desejável.
Como expliquei na dita postagem de 26/02, o emblema municipal contém um referente a cada ciclo econômico que impulsou o progresso de Currais Novos: o chapéu de vaqueiro à pecuária, os ramos de algodoeiro à cotonicultura e as barras de minério à mineração, especialmente da scheelita. Qual escolher? O autor do brasão acima preferiu o terceiro ciclo, daí a vagoneta cheia de minério. Eu não escolhi nenhum, pois preferi valer-me de um recurso antiquíssimo na arte heráldica: as armas falantes. Ora, a religiosidade currais-novense continua tão permeada das tradições sertanejas, como as missas do agricultor e do vaqueiro, as cavalgadas e vaquejadas, que uma cerca de ouro firmada em ponta é eloquente não só do nome Currais Novos, mas também representa uma parte muito estimada da cultura local.
Depois, dos símbolos divinos, o mais humano: a cruz, quatro singelas cruzetas de prata. Por que quatro? Porque fica fácil assentar a figura principal entre elas. A teologia é mais rica que a heráldica, então é sensato cuidar primeiro em alcançar o melhor ordenamento para as armas e depois buscar-lhes significação: quatro são os sentidos da Escritura, os Evangelhos, os atributos da Igreja e as virtudes cardeais. Qualquer uma dessas referências dota o conjunto de grande profundidade espiritual.
Justificados os componentes comuns, enuncio a proposta para a paróquia de Sant'Ana: de púrpura com uma concha aberta, carregada de uma pérola, entre quatro cruzetas, tudo de prata e acompanhado de uma cerca de ouro, firmada em ponta; sob o escudo, uma cruz processional; divisa: Offeram munus Domino, escrita de negro em listel de prata.
Como está patente, mantive o atributo icônico da padroeira, já consagrado na armaria eclesiástica brasileira. Como disse na postagem de 23/04, foi probabilissimamente inventado pelo irmão Paulo Lachenmayer e alude à maternidade de Sant'Ana. Segundo a fonte mais fidedigna, o chamado Protoevangelho de Tiago, atribuído ao apóstolo Tiago o Menor, mas escrito provavelmente por um gentio converso em meados do século II, cuja importância para o culto mariano foi reconhecida implicitamente por São Paulo VI (exortação apóstola Marialis cultus, 1974) e explicitamente por São João Paulo II (catequese de 15 de outubro de 1997), Joaquim e Ana eram um casal maduro, desafortunado pela esterilidade. De estirpe sacerdotal, Joaquim decidiu, após um vexame no templo, fazer penitência no deserto, enquanto Ana se entregava à oração, crente de ter enviuvado. Eis que lhe apareceu o Anjo do Senhor, anunciando que a sua prece fora atendida: "concipies et paries et celebrabitur nomen tuum in toto mundo", conforme a tradução latina de Guillaume Postel e edição de Theodor Bibliander, ou seja, "conceberás, darás à luz e o teu nome será celebrado em todo o mundo". Portanto, assim como a ostra gera a pérola após ser ferida por um grão de areia, Sant'Ana concebeu e deu à luz sua especiosíssima Filha em meio ao sofrimento da infertilidade. Inclusive, a divisa tirei da resposta dela ao anúncio: "vivit Dominus meus, quod sive masculum sive feminam genuero, offeram illud munus Domino Deo nostro et in sacris rebus illi ministrabit omnibus diebus vitæ suæ", ou seja, "o meu Senhor vive, pois se eu gerar tanto um macho como uma fêmea, oferecerei essa dádiva a Deus, nosso Senhor, e servir-lhe-á nas coisas sagradas todos os dias da sua vida" (traduções minhas, assim como os grifos).
Imagem de Sant'Ana venerada na Igreja Matriz de Sant'Ana de Currais Novos (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook). |
Quanto ao campo, ilumino-o de púrpura por ser o esmalte mais próximo às cores habituais das vestes de Sant'Ana na sua iconografia, que variam do róseo à própria púrpura. Na imagem venerada na Igreja Matriz de Sant'Ana de Currais Novos, ela traja uma túnica rosada, um manto azul com forro dourado sobre os ombros e um véu azul com forro carmesim sobre a cabeça. Com efeito, a púrpura tem uma longa história nas civilizações às margens do mar Mediterrâneo: passou à história ocidental como representativa das mais altas honras, da realeza e do império. De fato, é a cor que cobriu o Rei dos Reis (cf. Marcos, 15, 17), portanto justíssimo que apareça em ícones de sua avó e no brasão da paróquia currais-novense mais antiga e que preside à forania homônima.
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