A criação heráldica tem caráter circunstancial e, por isso, demanda argúcia, ao contrário da moda, que gera produtos repetitivos e desinteressantes.
Como disse mais de uma vez, os clérigos foram os derradeiros a assumir armas, porque a heráldica primitiva tinha um caráter marcantemente militar, o que contrastava com a vida consagrada. Mas, uma vez que o escudo se tornou o campo por antonomásia das armas e foi tido por objeto mais abstrato que concreto, começou a haver uma armaria eclesiástica sem nenhum estigma de belicosidade.
Não obstante, desde o início houve pontos de contato da clerezia com os senhores laicos cujos vexilos deram origem aos brasões mais antigos: não só a certos bispados estavam vinculados alguns senhorios, mas, de modo geral, o alto clero procedia da nobreza. E assim permaneceu pelo resto da Idade Média e durante a Moderna.
É por isso que quando olhamos o armorial dos papas, em grande medida vemos as armas de várias casas principescas e senhoriais, como os Conti (Inocêncio III, Gregório IX, Alexandre IV e Inocêncio XIII), os Orsini (Celestino III, Nicolau III e Bento XIII) ou os Médici (Leão X, Clemente VII, Pio IV e Leão XI), com as insígnias da Santa Sé: as chaves decussadas e a tiara. Elementos devocionais nos brasões papais não são regulares, mas excepcionais, mesmo em pontificados recentes: no século XX, antes do Concílio Vaticano II, apenas São Pio X não usou de armas gentilícias ou falantes.
Na verdade, uma vez eleito, o pontífice romano limitava-se a depor as insígnias episcopais e cardinalícias e assumir as petrinas, conservando, portanto, as armas que já trazia. No entanto, tal não ocorreu após São Paulo VI: as armas de Albino Luciani, Karol Wojtyła, Joseph Ratzinger e Jorge Mario Bergoglio foram retocadas ou mesmo bastante alteradas quando se tornaram João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco. É improvável que se deva a uma mera coincidência, mas se há uma causa, escapa ao meu discernimento. Fato é que das alterações, as que deram forma ao brasão de Bento XVI são as que mais se destacam.
Joseph Ratzinger nasceu em 1927 em Marktl, Alemanha. Foi ordenado presbítero em 1951. Foi nomeado arcebispo de Munique e Freising e ordenado bispo em 1977. No mesmo ano, São Paulo VI criou-o cardeal-presbítero do título de Santa Maria Consoladora no Tiburtino. Em novembro de 1981, São João Paulo II nomeou-o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em virtude disso, renunciou à sé de Munique e Freising em fevereiro do ano seguinte. Em 2005, quando foi eleito ao sólio pontifício, era, ademais, cardeal-bispo de Velletri-Segni desde 1993 e decano do Colégio Cardinalício desde 2002, acumulando o título de cardeal-bispo de Óstia.
Como é de regra na Igreja Católica, Joseph Ratzinger assumiu um brasão para si quando começou o seu ministério episcopal. E como de costume no seu país, combinou as armas da diocese que governava com as suas pessoais, daí que tenha trazido esquartelado, o primeiro e quarto de ouro com uma cabeça de mouro de sua cor, com coroa e colarinho de vermelho; o segundo de azul com um urso passante de ouro, carregado no lombo de um fardo de prata, atado de negro; o terceiro cortado ondado de azul e prata, com uma concha cortada ondada de ouro e prata, brocante sobre o cortado; insígnias de cardeal arcebispo; divisa: Cooperatores veritatis.
Assim, o primeiro e quarto quartéis são as armas da arquidiocese de Munique e Freising: o mouro de Freising (Freisinger Mohr) remonta ao bispo Emico (1283-1311), mas a notícia da sua origem se perdeu. Como tantos brasões assumidos no período clássico da armaria, talvez não encerre nenhum significado tangível ou transcendental, mas apenas reflita a necessidade de marcar relações feudais. Diferentemente do segundo quartel, que refere com clareza a uma lenda bem conhecida: São Corbiniano era um ermitão franco que, depois de uma romaria, São Gregório II ordenou bispo e, por volta de 714, mandou evangelizar a Baviera. Conta-se que noutra viagem foi atacado por um urso, que matou a sua azêmola, mas o santo domou a fera de tal maneira que esta acabou carregando a sua bagagem até Roma. Fundou o Mosteiro de Santo Estêvão (Kloster Weihenstephan) em Freising, é considerado o seu primeiro bispo e é o padroeiro da arquidiocese de Munique e Freising.
Portanto, de estritamente pessoal no brasão do Cardeal Ratzinger tem-se o terceiro quartel. Segundo a nota oficial sobre o brasão pontifício, a concha apresenta uma significação tripla: refere à lenda segundo a qual Santo Agostinho teria encontrado um rapazinho tentando transpor toda a água do mar para um buraco na areia, o que teria levado o Doutor da Graça a se dar conta da sua vaidade em compreender a infinidade de Deus; é, além disso, o símbolo do Mosteiro de Santiago dos Escotos (Schottenkloster St. Jakob), em Regensburg, ao qual o papa emérito se sente espiritualmente ligado; representa, enfim, a peregrinação de forma geral.
O ponto é: se o Cardeal Ratzinger tivesse sido transferido para outra arquidiocese alemã, o seu brasão teria mudado, pois as armas de Munique e Freising dariam lugar às dessoutra (1). Isso nunca aconteceu porque, após breve pastoreio na terra natal, toda a sua carreira transcorreu na Cúria Romana até a eleição à Sé Apostólica. Por isso, fez certo Andrea Cordero Lanza di Montezemolo, heraldista e então núncio apostólico emérito, ao ordenar um brasão novo para Bento XVI.
Com efeito, frequentemente se critica esse trabalho por causa da troca da tiara pela mitra e do acréscimo do pálio. A inovação da mitra foi mantida no brasão do papa Francisco e não vejo motivo para polêmica. A tiara sempre simbolizou a soberania do papa. Originariamente um barrete de forma cônica e de uso não litúrgico, cada adição de uma das três coroas ao longo dos séculos XIII e XIV visou ao reforço simbólico da autoridade pontifícia. Daí que também se denomine trirregno. Ora, se perto de se encerrar a terceira sessão do Concílio Vaticano II, São Paulo VI depôs a tiara sobre o altar da Basílica de São Pedro e desde então não houve mais coroação papal, é perfeitamente aceitável que no século XXI, querendo o bispo de Roma marcar não a dignidade principesca, mas o ministério apostólico, a tenha igualmente deposto do seu brasão.
No entanto, quero aqui chamar a atenção para a partição do campo. Se o mouro de Freising não era um componente pessoal no brasão do Cardeal Ratzinger, mas da sua primeira e única sé (2), tenho lá as minhas dúvidas se a transposição de tal figura para o brasão de Bento XVI foi de ótima heráldica (3). Seja como for, para acomodar não só essa figura, mas também o urso de São Corbiniano e a concha, o Cardeal Cordero di Montezemolo partiu o escudo em dois, valendo-se de uma opção que separa, na verdade, três áreas: o chapado. Eis o ordenamento: de vermelho com uma concha de ouro; chapado curvado de ouro, à destra com uma cabeça de mouro de sua cor, com coroa e colarinho de vermelho, e à sinistra com um urso passante de sua cor, carregado no lombo de um fardo de vermelho, atado de negro, o todo posto em banda; sob o escudo, duas chaves passadas em aspa e um pálio arquiepiscopal; timbre: mitra.
Brasão do papa Bento XVI: de vermelho com uma concha de ouro; chapado curvado de ouro, à destra com uma cabeça de mouro de sua cor, com coroa e colarinho de vermelho, e à sinistra com um urso passante de sua cor, carregado no lombo de um fardo de vermelho, atado de negro, o todo posto em banda; sob o escudo, duas chaves passadas em aspa e um pálio arquiepiscopal; timbre: mitra (imagem disponível no portal da Santa Sé). |
Com frequência, confundem-se o chapado e o mantelado. Ambos têm nomes derivados de peças têxteis (do francês chapé e mantelé, estes de chape 'capa' e manteau 'manto') e são formados por duas linhas que saem dos ângulos da ponta em direção ao meio do chefe. No caso do chapado, essas linhas encontram-se no meio do bordo superior, ao passo que no caso do mantelado, um pouco abaixo desse ponto. Além disso, as linhas são ordinariamente retas, mas nada impede que fiquem ameadas, caneladas, denteladas etc., como nas armas das antigas freguesias portuguesas de Prazeres de Aljubarrota e São Vicente de Aljubarrota. Com muita frequência, veem-se curvadas, precisamente como no brasão de Bento XVI.
O chapado, o mantelado e o terciado em mantel. |
Independentemente da forma das linhas, tanto o chapado como o mantelado são partições duplas: o campo fica iluminado de dois esmaltes, mas se brasona primeiro o de baixo e depois o de cima, como se o escudo estivesse mesmo coberto por uma capa ou um manto que foi levantado até o meio do chefe. Em espanhol, o nome do chapado é ainda mais eloquente desse simulacro: cortinado. No entanto, quando há três esmaltes, não se tem mais um chapado ou mantelado, mas um terciado em mantel. Nele, não se indica o ponto do encontro das duas linhas, não porque seja indiferente, mas por faltar em português precedente da expressão tiercé en chape ("terciado em capa"). Fica-se, então, dependendo de um desenho original ou oficial.
Essa falta de nomenclatura vernácula indicia algo pouco comum nas nossas armarias. De fato, no armorial gentilício, o mantelado é característico de linhagens que diferençaram o esquartelado de Castela e Leão: os Noronhas e os Henriques. As outras três linhagens que o trazem têm igualmente procedência espanhola: os Aires, os de La Cueva e os Nóvoas (4). O chapado sequer ocorre. Já no armorial autárquico, faz-se mais presente: seis ocorrências de chapados e cinco de mantelados no banco de dados do Heraldry of the World (5).
Estes dados contrastam fortemente com a multiplicação do chapado e do terciado em mantel na heráldica eclesiástica brasileira. Frequentissimamente têm aparecido clérigos ou comunidades assumindo escudos partidos dessa forma, costumeiramente mal brasonados. Na verdade, o mau brasonamento é café pequeno, porque, como tudo que se repete à exaustão por moda, grande parte carece de criatividade, finura e beleza.
Já no comentário às segundas armas de Dom Frei Manoel Delson Pedreira da Cruz, critiquei essa imitação irrefletida das armas de Bento XVI. Reafirmo que nem o chapado nem o terciado em mantel são propriamente fáceis de se manejar. Cumprida a regra de iluminura (escudo de metal com figura de cor ou vice-versa, chapado ou mantelado de cor com figura de metal ou vice-versa, abstraindo-se as peles), põe-se o desafio de carregar figuras em áreas triangulares de contornos retilíneos ou curvilíneos. Percebe-se bem isto no brasão de Bento XVI: tanto a concha como o mouro de Freising combinaram bem com as curvas do escudo e da partição, mas foi preciso pôr o urso de São Corbiniano em banda para assentar bem à sinistra do chapado.
Talvez o chapado e o terciado em mantel façam tanto sucesso precisamente pelo contrário: desconhecidos quaisquer rudimentos da armaria, é cômodo lançar mão de um ou do outro para distribuir um símbolo em cada área. Ao contrário do trabalho do Cardeal Cordero di Montezemolo, que converteu uma esquarteladura de armas de dignidade com armas pessoais em algo novo, essa moda cria uma heráldica pobre, desinteressante, que se automatiza em aglomerar trios de figuras devocionais: Agni Dei, flores de lis, livros da Sagrada Escritura, monogramas marianos, Sagradas Espécies etc. Sem nenhuma nota pessoal ou local, são escudos que qualquer clérigo ou comunidade poderia trazer.
Em suma, não se trata de interditar o uso do chapado ou do terciado em mantel. A criação heráldica apresenta normalmente um caráter circunstancial, daí que as suas próprias regras possam sofrer exceções justificáveis. Por isto mesmo ela demanda argúcia: um brasão deve ser um identificador singelo, belo e representativo.
(1) Convém lembrar que esse costume se observa não só na Alemanha, mas também na Áustria, na Dinamarca, na Islândia, em Liechtenstein, na Noruega, nos Países Baixos, na Suécia, na Suíça, no Reino Unido e de modo geral no mundo anglófono. Também na Finlândia e na Tchéquia, provavelmente pela influência das heráldicas sueca e alemã, respectivamente. A Bélgica, o Canadá e Luxemburgo são exceções notáveis, provavelmente pela influência da heráldica francesa.
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