25/01/21

DE QUE MODO SE HÃO DE PINTAR OU TRAZER AS ARMAS

É indispensável um campo para um brasão, que pode ser um escudo, o mais convencional, ou outra superfície.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(13) Secundo principaliter est videndum qualiter ista arma sint pingenda et portanda. Ad quod sciendum est quod quandoque portantur in vexillis, quandoque insuper vestibus hominum, quandoque in clypeis, quandoque in cooperturis lectorum, quandoque depinguntur vel aliter figurantur in parietibus vel aliis similibus locis stabilibus. Circa quod licet prædictorum aliqua videamus.

Circa quæ sciendum est, quod ista signa quandoque sumuntur ex aliqua re existente, ut multi assumunt aliquod animal, vel castrum, vel montem, vel florem, vel aliud simile; quandoque ista signa non sumuntur ex aliqua re præexistente, sed sunt signa simplicia, scilicet variationes quorumdam colorum vel per dimidium, vel per quarteria, vel per aliquas listas rectas vel transversales vel pendentes vel similia; quandoque mixtum est ex utroque.

(13) Em segundo lugar, cumpre ver basicamente como se hão de pintar e trazer essas armas. A propósito disso, cumpre saber que às vezes se trazem em bandeiras, às vezes sobre as vestimentas das pessoas, às vezes em escudos, às vezes nos cobertores de camas, às vezes se pintam ou se figuram de outro modo em paredes e noutros locais firmes similares. Acerca do que é permitido, vejamos algo do que já se disse.

Acerca disso, cumpre saber que às vezes se tomam esses sinais de alguma coisa existente, como algum animal, fortaleza, monte, flor ou algo semelhante, que muitos assumem. Às vezes não se tomam esses sinais de alguma coisa preexistente, mas são sinais simples, ou seja, alternâncias de certas cores, de duas ou de quatro, ou de algumas listras verticais, horizontais, diagonais ou semelhantes. Às vezes misturando-se umas e outras.

Comentário:

A partir deste ponto, começa a segunda parte do Tractatus de insigniis et armis. A primeira, tal como o ilustre leitor terá percebido, foca a dimensão jurídica da armaria. Agora passa a alguns aspectos técnicos. Para Cavallar et alii, não foi Bártolo quem escreveu esta segunda parte, mas o editor da obra e seu genro, Nicola Alessandri. O argumento mais forte que apresentam é o fato de a crítica ter reconhecido a autoria deste noutras obras atribuídas em princípio ao doutor de Sassoferrato. Efetivamente, a leitura atenta discerne algumas diferenças de uma parte para a outra: a linguagem fica menos cuidada e o aparato de referências, mais reduzido. Mas isso pode dever-se simplesmente ao fato de o autor não ter acabado o texto, por causa da sua morte súbita, e, portanto, não o ter revisado. Além disso, certamente se sentia menos à vontade ao se afastar da sua especialidade, o direito. Enfim, toda a obra de Bártolo foi submetida ao exame filológico desde muito cedo e a autoria do De insigniis et armis nunca foi posta em causa. Por tudo isto, acho que é mais uma das questões bizantinas desses estudiosos, que mencionei na postagem de 07/01.

Seja como for, o professor de Perúsia continua a tratar a matéria com tal brilhantismo que muito do que disse sobre ela pela primeira vez tem sido repetido desde então na literatura técnica. Na postagem de hoje, contribui grandemente com o estudo da heráldica neste tempo ao demonstrar que escudo não se confunde com campo.

De fato, como expliquei na postagem anterior, um brasão é um conceito, mas atualmente a heráldica precisa lidar com a noção de desenho oficial. Por exemplo, na mesma postagem, mostrei que no Rio Grande do Norte, apesar da mudança de gestor, o governo do estado ostenta as armas estaduais na sua marca. No entanto, omiti que quando a gestão corrente adotou o desenho que lhe foi apresentado pelo Instituto Histórico e Geográfico (IHGRN), noticiou-se amplamente que se estava resgatando o brasão original, como se até aquele momento tivesse sido tratado, como diz Bártolo, de forma vituperiosa. Ora, o que o IHGRN recuperou, na verdade, foi o desenho de Corbiniano Vilaça, o artista que criou o brasão em 1909. Quaisquer outras reproduções que obedeçam à descrição legal e, pela deficiência heráldica desta, ao dito desenho são igualmente corretas (1). A ressalva não está na concreção do conceito, mas sim na aplicação: evidentemente, o governo há de aplicar no que lhe compete o desenho que resolveu adotar, de acordo com o seu manual de identidade visual, se tiver um.

Outro exemplo ilustrativo, mas no sentido contrário, são as armas imperiais brasileiras. O primeiro resultado de uma busca por elas no Google é uma reprodução com o escudo dito "inglês". Não falta quem ache que se o desenho diferir desse, está errado. Nada mais distante das práticas heráldicas do próprio Império: o brasão é o conceito estabelecido pelo Decreto de 18 de setembro de 1822 (2) e a escolha momentânea do escudo é pura arte.

As armas nacionais nas moedas durante o Império

Em outras palavras, não havia desenho oficial nem tal noção, como também não houve desde a origem da heráldica até o nosso tempo. Daí que para Bártolo, em meados do século XIV, o escudo era apenas um dos possíveis campos para ordenar um brasão. Com efeito, foi no fim da Idade Média que se deixou de cobrir toda a superfície do objeto com as armas e se passou a reproduzi-las de modo estável dentro de um escudo. Novamente, Portugal é um exemplo interessante, neste caso porque antes da monarquia constitucional a sua bandeira real só teve duas formas.

Batalha de Aljubarrota (British Library, Royal MS 14 E IV, f. 204r).
Batalha de Aljubarrota (British Library, Royal MS 14 E IV, f. 204r).

A iluminura acima está contida numa cópia do terceiro volume das Chroniques d'Angleterre, de Jean de Wavrin, elaborada durante a sétima década do século XV. A batalha aconteceu em 1385 e foi o episódio final da guerra pela sucessão ao trono português que opôs Dom João I de Portugal e João I de Castela, aquele por ser filho bastardo de Dom Pedro I e este por ser esposo de Dona Beatriz de Portugal, filha de Dom Fernando I. Veem-se as armas de cada um nas gualdrapas dos cavalos e nas bandeiras (a do castelhano deitada no chão). Estas são o que hoje se denomina bandeira heráldica, ou seja, o pano serve de campo para as armas tal como figurariam num escudo.

Vila nova da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção da capitania do Ceará Grande, que Sua Majestade, que Deus guarde, foi servido mandar criar em 1726 (Arquivo Histórico Ultramarino, Coleção Cartográfica e Iconográfica Manuscrita, n.º 848).
Vila nova da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção da capitania do Ceará Grande, que Sua Majestade, que Deus guarde, foi servido mandar criar em 1726 (Arquivo Histórico Ultramarino, Coleção Cartográfica e Iconográfica Manuscrita, n.º 848).

O desenho acima é uma espécie de planta que mapeia a vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção por volta de 1730. Hoje é a capital do estado do Ceará e uma metrópole regional. Sobre a fortaleza que lhe deu nome e nesse momento não passava de uma paliçada, vê-se a forma moderna da bandeira real: um pano branco com as armas do Reino no centro.

Enfim, outra prova da genialidade de Bártolo é que distingue pela primeira vez partições, peças e figuras. Às partições refere como "alternâncias de certas cores"; às peças, como "algumas listras verticais, horizontais, diagonais ou semelhantes" (literalmente "direitas, transversais ou pendentes"); às figuras, como "alguma coisa existente, como algum animal, fortaleza, monte, flor ou algo semelhante". Com efeito, as partições são o campo multiplicado por linhas verticais, horizontais ou diagonais; as peças são figuras geométricas, a maioria delas formada por linhas nos mesmos sentidos das partições; as figuras são desenhos do que há no céu, na terra e nas águas e da obra humana (3). Podemos aprofundar isto nas próximas postagens.

Notas:
(1) O ato de criação é o Decreto n.º 201, de 1.º de julho de 1909, mas pela Internet não o acho em fonte oficial. Vou citá-lo, então, a partir do livro Brasões e bandeiras do Brasil (1933, p. 220-221), de Clóvis Ribeiro: "O brasão d'armas do Rio Grande do Norte é um escudo de campo aberto, dividido a dois terços de altura, tendo no plano inferior o mar, onde navega uma jangada de pescadores, que representam as indústrias do sal e da pesca. No terço superior, em campo de prata, duas flores aos lados e ao centro dois capulhos de algodoeiro. Ladeiam o escudo, em toda a sua altura, um coqueiro à direita e uma carnaúba à esquerda, tendo os troncos ligados por duas canas-de-açúcar, presas por um laço com as cores nacionais. Tanto os móveis do escudo como os emblemas, em cores naturais, representam a flora principal do estado. Cobre o escudo uma estrela branca, simbolizando o Rio Grande do Norte na União brasileira". Isso é exemplo de ótima ideia com péssimo ordenamento e por isso merece uma futura postagem específica.
(2) Não custa repetir (vide a postagem de 09/01): "em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul".
(3) Às vezes não se distinguem peças e figuras e chama-se peça tanto a uma coisa como à outra. Às vezes emprega-se o termo móvel para a figura, mas arrisco afirmar que se trata de um galicismo e é mais vernáculo dizer mesmo figura.

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