08/07/21

PROPOSTAS DE ARMAS ASSUMIDAS

À falta de um soberano a quem suplicar e de um oficial de armas por quem receber a mercê, resta-nos tomar a via da heráldica assumida.

Como afirmei ao longo da série de postagens dedicada à justificação de nobreza, a heráldica gentilícia portuguesa, depois também a brasileira, parecia mecânica, mas dependia de um operador. Vale a pena recapitular como o sistema funcionava por meio da síntese que Luís da Silva Pereira Oliveira fez nos Privilégios da nobreza e fidalguia de Portugal (1806):

Todavia, antes que os descendentes comecem a usar d'armas, devem habilitar-se para isso, fazendo petição a um dos quatro corregedores do Cível da Corte e Casa da Suplicação para que os admitam a justificar a sua filiação e domicílio, bem como o de seus pais e avós, e que todos foram notoriamente nobres e descendentes das ilustres famílias de quem derivam os apelidos, tratando-se sempre com bestas, criados e toda a mais ostentação da nobreza, servindo os lugares mais nobres do governo da República, sem que em tempo algum cometessem crime de lesa-majestade, divina ou humana, e que o mesmo tratamento conserva ele, suplicante. Feita que seja esta prova com testemunhas e roborada com documentos, se lhes passa sentença de justificação de sua nobreza, com a qual requerem ao principal rei d'armas Portugal que lhes mande dar carta de brasão d'armas das respectivas famílias, ao que ele defere, mandando passar a carta em nome de Sua Majestade, subscrita pelo escrivão da Nobreza do Reino e por ele, rei d'armas, assinada, na qual vão brasonadas, divisadas e iluminadas as armas de que devem usar, segundo se acharem registadas no livro. E na mesma carta se lhes faculta entrar com elas em batalhas, campos e escaramuças, e assim mesmo trazê-las em suas casas, capelas e mais edifícios, e que hajam todas as honras, privilégios, liberdades, graças, mercês, isenções e franquezas que hão os fidalgos e nobres de antiga linhagem. Obtidas que sejam estas cartas, podem os impetrantes das mesmas usar de escudo d'armas. Conseguintemente, podem pô-las em suas sepulturas.

Com efeito, quem vê a regularidade com que se passavam escudos partidos ou esquartelados fica com a impressão de que o ofício do rei de armas se resumia a colher no tombo as armas das linhagens correspondentes aos sobrenomes do suplicante e ordená-las segundo a precedência do pai à mãe e do varão à mulher. No entanto, a realidade demonstra que cada caso era um caso: quais e quantas armas formariam a composição nova, isso dependia do quão nobre aparentava cada costado do pretendente. A própria figura que carregava a brica, bem como os esmaltes de uma e da outra, tudo isso era escolhido pelo rei de armas, ainda que houvesse certas regras para assinalar a transmissão da fidalguia pelas avós.

A propósito, não digo "o quão nobre era", mas "aparentava", porque mais que de sangue a nobreza se tratava de riqueza. Ora, de nada valia a um fidalgo pobre provar descender de ilustres progenitores se nem com as custas da concessão de um brasão podia arcar. No sentido contrário, o sistema funcionou bem durante todo o Antigo Regime e até o fim da monarquia porque qualquer José Pereira ou Antônio da Costa cujos pai e avô tivessem prosperado podia passar por fidalgo de linhagem, como se viesse da antiquíssima estirpe dos Pereiras ou da dos Costas, cujas armas remontam a tempos remotos.

Contudo, sabe o improvável leitor que prefiro a crítica construtiva à destrutiva: e se Joaquim António Clementino Maciel, José Inácio de Oliveira Rebelo, Higino Oto de Queirós e Melo e Arnaldo Ribeiro Barbosa fossem contemporâneos nossos? À falta de uma autoridade que opere o sistema antigo, como os oficiais de armas operavam o Cartório da Nobreza, juntamente com o seu escrivão, tanto em Portugal como no Brasil, resta tomar a via da heráldica assumida. Mas a partir de quais pautas?

Como tenho dito desde a postagem de 15/01, não creio que seja herético alguém se inspirar no armorial gentilício português para criar o próprio brasão. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Não existe um brasão "da família Pereira" ou "da família Costa", porque sequer é verossímil que haja uma só família Pereira ou Costa e também porque nunca se permitiu que qualquer um de sobrenome Pereira ou Costa trouxesse as armas direitas dos Pereiras ou dos Costas. Para ficar ainda mais claro: vender chaveiro ou azulejo com essas armas a pessoas desses sobrenomes é aproveitar-se do desconhecimento do consumidor para lhe aplicar um golpe! Por outro lado, tampouco seria razoável defender que a heráldica gentilícia luso-brasileira se apoiava em severos rigores genealógicos, porque seria insustentável: depois da expansão ultramarina, o sistema passou a repelir a mercê nova, a nobilitação, e superestimar a fidalguia de linhagem, de tal modo que, visando a refletir uma estabilidade social, se baseava, sim, na homofonia dos sobrenomes.

É a partir da constatação de que em Portugal e no Brasil funcionava uma heráldica "de sobrenomes" (que gerava brasões pessoais; nunca é excessivo frisar isso) que a heráldica assumida contemporânea pode explorar meios-termos entre esse sistema e o que o precedeu: a heráldica clássica. Assim, nesta postagem farei quatro propostas de armas assumidas, cada uma para um dos cavalheiros cujas justificações de nobreza e cartas de brasão serviram de exemplos na série de postagens recém-acabada. Para tanto, delineei duas pautas: inspiração nas armas gentilícias de maior precedência ou da preferência do armígero; o destaque de alguma nota pessoal.

Para começar, no caso de Joaquim António Clementino Maciel, precedem as armas dos Maciéis, que ocupam o primeiro e quarto quartéis do brasão que lhe foi concedido em 9 de fevereiro de 1815. Estas são partidas, o primeiro de prata com duas flores de lis de azul, uma sobre a outra; o segundo dimidiado de prata com uma águia de vermelho. Além disso, do processo depreende-se que ele prezava a carreira militar. Efetivamente, a carta patente pela qual foi promovido a capitão da Terceira Companhia do Regimento de Milícias da Covilhã foi o único documento que apresentou na sua justificação de nobreza. Se vivesse hoje e considerando essas duas pautas, propor-lhe-ia de prata com uma águia de vermelho, bicada e armada de ouro, segurando duas flores de lis de azul e encimada por uma espada do mesmo, posta em faixa.

Proposta de brasão: de prata com uma águia de vermelho, bicada e armada de ouro, segurando duas flores de lis de azul e encimada de uma espada do mesmo, posta em faixa.
Proposta de brasão: de prata com uma águia de vermelho, bicada e armada de ouro, segurando duas flores de lis de azul e encimada de uma espada do mesmo, posta em faixa.

Nesta proposta, tomei as duas figuras das armas dos Maciéis e dei-lhes ordenamento muito diverso. A espada representa a milícia.

No caso de José Inácio de Oliveira Rebelo, precedem as armas dos Rabelos ou Rebelos, que ocupam o primeiro partido do brasão que lhe foi concedido em 7 de junho de 1843. Estas são de azul com três faixas de ouro, cada uma carregada de uma flor de lis de vermelho, alinhadas em banda. Além disso, para ele era importante administrar a Capela de Nossa Senhora das Mercês, que ficava na sua propriedade e onde mantinha o Santíssimo Sacramento exposto às próprias expensas. Com efeito, da sua justificação de nobreza depreende-se que pretendia pôr nela uma pedra de armas. Se vivesse hoje e considerando essas duas pautas, propor-lhe-ia de azul com três palas de ouro e um chefe do mesmo, carregado de uma cruz mercedária de vermelho entre duas flores de lis do mesmo.

Proposta de brasão: de azul com três faixas de ouro e um chefe do mesmo, carregado de uma cruz mercedária de vermelho entre duas flores de lis do mesmo.
Proposta de brasão: de azul com três faixas de ouro e um chefe do mesmo, carregado de uma cruz mercedária de vermelho entre duas flores de lis do mesmo.

Nesta proposta, procurei assemelhar as armas dos Rabelos às da Ordem das Mercês, que são de ouro com quatro palas de vermelho e um chefe do mesmo, carregado de uma cruz pátea de prata. Transformei, portanto, as faixas em palas, acrescentei um chefe, que carreguei com duas das flores de lis e, no meio delas, pus a cruz distintiva dessa ordem.

No caso de Higino Oto de Queirós e Melo, precedem as armas dos Queirós, que ocupam o primeiro quartel do brasão que lhe foi concedido em 4 de julho de 1859. Não obstante, na sua petição sobressai o valor que dava ao legado do avô materno: não só pretendia usar das armas dele, mas até mesmo os seus sobrenomes. Este recebera um escudo partido das armas dos Sousas Chichorros e dos Vasconcelos. Aquelas são esquarteladas: o primeiro e quarto de prata com as armas de Portugal antigo; o segundo e terceiro também de prata com um leão de púrpura. Estas são de negro com três faixas veiradas de prata e vermelho. Assim, se vivesse hoje e considerando tal pauta, propor-lhe-ia de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho, e uma bordadura composta de negro e veirado de prata e vermelho de dezoito peças.

Proposta de brasão: de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho, e uma bordadura composta de negro e veirado de prata e vermelho de dezoito peças.
Proposta de brasão: de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho, e uma bordadura composta de negro e veirado de prata e vermelho de dezoito peças.

Nesta proposta, não pus nenhuma nota pessoal, porque, como disse, o entroncamento nos Sousas e nos Vasconcelos era o que o armígero mais valorava. Tomei, então, o leão dos Sousas Chichorros, a figura mais distintiva da sua esquarteladura, e transformei as armas dos Vasconcelos numa bordadura composta.

Enfim, o caso de Arnaldo Ribeiro Barbosa: como recebeu as armas dos Barbosas diferençadas unicamente pela brica, não há precedência a se observar. Estas são de prata com uma banda de azul, carregada de três crescentes de ouro, postos no sentido da banda, ladeada de dois leões batalhantes de púrpura. De nota pessoal, percebe-se pela sua justificação que se orgulhava de ser reputado por cidadão exemplar do Porto, tanto que juntou ao processo um atestado de antecedentes, passado pela câmara municipal. Se vivesse hoje e considerando essas duas pautas, propor-lhe-ia de prata com uma faixa de azul, carregada de um crescente de ouro, encimada de uma estrela de oito raios do mesmo, e sustida por dois leões de púrpura, armados e lampassados de vermelho.

Proposta de brasão: de prata com uma pala de azul, carregada de um crescente de ouro, encimado de uma estrela de oito raios do mesmo, e sustida por dois leões de púrpura, armados e lampassados de vermelho.
Proposta de brasão: de prata com uma pala de azul, carregada de um crescente de ouro, encimado de uma estrela de oito raios do mesmo, e sustida por dois leões de púrpura, armados e lampassados de vermelho.

Nesta proposta, aproveitei que o crescente pode ser um símbolo mariano (cf. Apocalipse, 12, 1) para criar um vínculo com o brasão do Porto, que traz a Virgem com o Menino sobre uma muralha, ladeada por duas torres, encimadas por dois escudetes de Portugal antigo. Assim, girei as armas dos Barbosas até a posição vertical e, para perfazer o simbolismo mariano, reduzi o número de crescentes a um, encimando-o com uma estrela.

Todas estas propostas deixam ver certos princípios. Primeiro, não dividir o campo: as partições de um, dois ou mais traços para acomodar figuras diferentes são de péssima heráldica. Esse recurso surgiu e deve ser empregado para criar armas compostas, isto é, um escudo formado por dois, três ou mais armas, exceto quando a figura ou o conjunto de figuras fica brocante sobre a partição, tanto de esmalte diferente como de um para o outro, ou ordenado de um no outro. Segundo, diferençar as armas gentilícias tanto quanto seja necessário para configurar um brasão novo, insuspeito de qualquer espécie de usurpação, mas não ao ponto de a inspiração ficar irreconhecível.

A criação de brasões novos a partir de existentes não é uma inovação. Na verdade, foi um expediente habitual na heráldica clássica. Evidentemente, tanto naquele tempo como hoje, quem quiser assumir armas para si goza de plena liberdade dentro das limitações impostas pelas regras gerais da heráldica. O que proponho aqui não passa, pois, de uma possibilidade.

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