Brasonar não é criptografar um brasão da forma mais barroca possível, mas usar de uma linguagem técnica, como a de qualquer arte ou ciência.
Quando comecei este blog, há pouco mais de seis meses, já tinha acumulado leituras e notas sobre heráldica. 2020 foi, sem dúvida, o ano mais difícil do século para grande parte da humanidade. A minha última jornada normal de trabalho foi a manhã de 17 de março de 2020: o calendário acadêmico foi suspenso desde a tarde daquele dia e retomado em outubro, na modalidade remota, em que permanece até a data de hoje. Confinado em casa com as tarefas administrativas da minha função, encontrei na heráldica um passatempo instrutivo e deleitoso. No entanto, todo o sofrimento do distanciamento, adoecimento e falecimento de tanta gente — parentes, amigos, conhecidos — acabou maior do que podia suportar as frágeis táticas que adotamos para preservar a sanidade mental. Daí que eu tenha decidido dar o passo seguinte: escrever.
Com efeito, poderia ter enchido caderninhos, como fiz a vida toda, enquanto alguém devotado ao saber. Nunca tinha passado pela experiência de blogueiro. Mas o espírito docente se inquietava: "Poxa, só pude aprender tanto sobre esse assunto porque sei várias línguas". Daí o que justifiquei na primeira postagem: um blog para compartilhar apontamentos com quem, como eu um dia, pesquisou sobre a heráldica e não achou muito em português. No fim das contas, ser lido e contribuir com o conhecimento alheio é muito aprazível do ponto de vista pedagógico.
Por tudo isto, tudo que tenho publicado, inclusive as postagens propositivas, nunca teve nenhuma pretensão para além da lecionação. Se algum dos destinatários das proposições se interessasse, eu responderia que poderia gratuitamente assumir a que lhe fiz, mas também que buscasse um designer para reproduzi-la, pois os meus desenhos mesmos são meramente ilustrativos, em parte elaborados por mim e em parte compostos com elementos que colho na Wikimedia Commons.
Portanto, quando teço críticas sobre brasões e outros emblemas, presentes ou passados, não o faço para desmerecer o trabalho alheio, seja de quem for, ou porque eu detenha a verdade. Com efeito, é algo que repilo na comunidade heráldica: não são raros os membros que alcançam certo nível de conhecimento e depois passam a vida menosprezando quem sabe menos, de forma pedante ou debochada. Agora, às vezes sobre algo que não é bom só resta dizer que é ruim, honestamente.
Na postagem anterior, referi-me negativamente ao brasão novo da Paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari porque, à luz da heráldica como ars, 'arte' no sentido pré-romântico, isto é, uma 'técnica', um escudo com uma asna e três figuras, tal como no brasão antigo, é melhor que um partido não para compor armas novas, juntando dois emblemas já existentes, mas simplesmente para pôr uma figura de um lado e outra, do outro. É um juízo bastante objetivo, na verdade. E é neste sentido que darei continuidade a essa crítica, concentrando-me no que os autores chamaram de "descrição heráldica":
Escudo saxônico partido. Em honra de chefe, campo argênteo horizontado por estrela de seis raios cosida de jalde que encima cadeia de montanhas em sinopla. Em campanha, ondeado de argento e blau, onde a última faixa após a onda é de sinopla.
Do flanco direito ao cantão da ponta, sobre blau, monograma mariano em jalde coroado por diadema régio. Abaixo uma crescente argêntea.
Do flanco esquerdo ao cantão da ponta, sobre goles, cristograma em jalde, monograma constantiniano.
O escudo repousa sobre as claves petrinas cruzadas e atadas por cordel de goles. Em seu alto fulgura o umbrelino basilical.
Ao cabo, listel argento em reverso, com a inscrição "DEVOTIO MARIAE ACARYENSIS GLORIA" (1) em maiúsculas latinas de sable.
Em primeiro lugar, para haver uma "descrição heráldica", seria preciso que houvesse uma "descrição não heráldica", o que não se verifica. O que se pode fazer e hoje em dia se costuma é acompanhar a descrição do brasão — que, por óbvio, há de ser heráldica — de um comentário simbológico. Mas esse comentário não é outra descrição, daí que a única receba um nome técnico: brasonamento (blasonnement em francês, blasonatura em italiano, blasón em espanhol e blazon em inglês).
Depois, sem a menor intenção de desapreço, é forçoso declarar que o autor dessa tentativa de brasonamento nada sabe de linguagem heráldica. Eu poderia desdenhosamente retorquir qual é o certo, mas prefiro explicar por quê, inclusive reiterando algumas lições que já dei mais de uma vez neste blog.
A primeira é que não se brasona a forma do escudo, pois é uma escolha artística. Se daqui a algum tempo a titular das armas quiser usar de outro desenho, com um escudo de outra forma, poderá fazê-lo, sem que por isso se vá entender que o brasão terá mudado. Além disso, é temerário qualificar um escudo por certo adjetivo pátrio. Por exemplo, em Portugal do século XVIII até o fim da monarquia e no Brasil durante o Império o escudo mais habitual foi o dito "francês moderno", não o dito "português". É mais prudente modalizar essa vinculação por circunlóquios, como o dito escudo francês antigo, o chamado escudo inglês etc., ou referir diretamente à forma: escudo de ponta arredondada, escudo de ponta ogival etc.
A segunda é que na armaria há dois metais, cinco cores e duas peles, que em francês, a língua em que esse sistema semiótico foi desenvolvido, se denominam or, argent, gueules, azur, sable, sinople, pourpre, hermine e vair. Na língua que aprendemos enquanto sugamos o leite materno, "a última flor do Lácio, inculta e bela, em que Camões chorou", diz-se ouro, prata, vermelho, azul, negro, verde, púrpura, arminho e veiros. Qualquer outra nomenclatura é espúria, pois diverge das tradições heráldicas lusófonas. Mais que isto: um texto como o que está em análise deixa ver o entendimento de que o brasão deve ser criptografado num código hermético.
Isso nos leva ao terceiro ponto: a linguagem heráldica não é hermética, mas técnica, como o é a de qualquer arte ou ciência. Assim, alguém pode dizer que o som do f é produzido soprando o ar entre os dentes de cima enquanto tocam o beiço de baixo, mas na linguística se diz que [f] é uma consoante fricativa labiodental surda. Isso garante que qualquer um que tenha estudado fonética decodifique a informação sem depender de descrições em linguagem corrente menos ou mais acuradas. Na heráldica, funciona do mesmo jeito: o que o seu vocabulário tem de insólito ou singular não é para parecer esnobe, mas para exprimir com precisão uma qualidade ou situação.
Assim, certos brasões têm uma descrição longa porque provavelmente se compõem de várias armas, como o do marquês de Vila Real, talvez o mais complexo da armaria portuguesa. Contudo, se discriminarmos cada componente, constataremos que é, por si, singelo:
- As armas do Reino diferençadas por um filete de negro em barra (primeiro e quarto quartéis das armas dos Noronhas, por Isabel de Portugal, filha natural de Dom Fernando I);
- de vermelho com um castelo de ouro; mantelado de prata com dois leões batalhantes de púrpura, armados e lampassados de vermelho; bordadura composta de ouro e veiros de dezoito peças (segundo e terceiro quartéis das ditas armas, por Afonso de Castela, filho natural de Henrique II);
- de azul com um estoque de prata, empunhado de ouro (primeiro quartel das armas de Pedro de Meneses, pela capitania de Ceuta);
- de ouro com quatro palas de vermelho (segundo, quarto e sexto quartéis das ditas armas, pelo entroncamento do armígero na estirpe dos Limas);
- de ouro com dois lobos passantes de púrpura, um sobre o outro (terceiro e quinto quartéis das ditas armas, pelo entroncamento do armígero na estirpe dos Vila Lobos);
- de ouro liso (armas dos Meneses).
Ainda assim, em heráldica menos é mais. Composições como essa justificam-se à luz das relações sociais do Antigo Regime. Hoje, uma tal complexidade não tem sentido, de modo que um brasonamento longo, obscuro, críptico denuncia uma criação aperfeiçoável, no mínimo.
Para brasonar, pois, as armas em questão, deve-se começar exprimindo que o escudo é partido, sempre atentando para a norma de que a destra precede a sinistra: partido de azul e vermelho. Como não se trata da junção de dois brasões, a combinação de cor com cor infringe a regra de iluminura: se o primeiro é de azul, o segundo deveria ser ou de metal ou de pele.
Depois, cabe indicar as figuras que carregam cada partição. Na primeira, a figura principal é um crescente de prata, o qual está encimado pelo monograma MA de ouro, este coroado do mesmo metal. Não se pode tomar o monograma por figura principal porque a linguagem heráldica descreve conjuntos de baixo para cima e o que por ventura fica embaixo da figura principal é assinalado como se sustentasse esta, o que não é o caso. Ademais, não há um só monograma mariano: além do MA, que também pode ser lido AM (Ave Maria ou Auspice Maria), há o simples M, como no brasão de São João Paulo II, e MI (I de Iesus ou Jesus), como na Medalha Milagrosa. A figura que carrega a segunda partição também é um monograma, o ΧΡ (qui-rô), iniciais de Χριστός (Khristós), ou seja, 'Cristo' em grego. A rigor, considerando a precedência da destra à sinistra, a ordem dos partidos deveria ser invertida: primeiro Cristo, depois Maria. Seja como for, fica completado o brasonamento: partido, o primeiro de azul com um crescente de prata, encimado do monograma MA de ouro, coroado do mesmo; o segundo de vermelho com o monograma ΧΡ de ouro.
O chefe, tanto o ponto do escudo como a peça, brasona-se sempre por último. No caso que nos ocupa, é a peça, iluminada de prata, e diz-se brocante, porque se acha como que sobreposta ao partido. A figura principal consiste no contorno da serra que se vê ao leste de Acari, o que não é de boa heráldica, pois a regra é a estilização, de modo que para representar acidentes geográficos reais, desenham-se figuras correspondentes ideais, como a própria faixa ondada de prata e azul, referente ao rio Acauã. Por outro lado, a iluminura da estrela que acompanha essa cordilheira deixa ver certa dificuldade em aceitar o caráter normativo e alegórico da armaria: podia perfeitamente ter sido iluminada de azul, mas isso deve ter parecido pouco verossímil aos autores, que preferiram, então, o ouro, em detrimento da regra, por sobrepor metal a metal. Eis o brasonamento deste conjunto: brocante sobre o partido, chefe de prata com uma cordilheira de verde, firmada nos flancos e no bordo inferior, carregada de um rio de prata e azul de cinco peças e encimada de uma estrela de seis raios de ouro.
Por último, os ornamentos externos. Na minha opinião, quando se trata de elementos convencionais, é desnecessário o detalhamento. As chaves petrinas (na heráldica uma chave é uma chave, não uma clave) são muito bem conhecidas: uma de ouro e a outra de prata, decussadas e atadas por um cordão vermelho. O mesmo quanto à umbela basilical (a palavra umbrelino não está registrada no Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, da Academia Brasileira de Letras): sabe-se que consiste num grande guarda-sol que alterna as cores antigas da Santa Sé: amarelo e vermelho. Já a divisa, tanto o listel como a legenda podem ser iluminados de diferentes esmaltes, daí que convenha, sim, informá-los.
Enfim, o brasonamento completo fica assim: partido, o primeiro de azul com um crescente de prata, encimado do monograma MA de ouro, coroado do mesmo; o segundo de vermelho com o monograma ΧΡ de ouro; brocante sobre o partido, chefe de prata com uma cordilheira de verde, firmada nos flancos e no bordo inferior, carregada de um rio de prata e azul de cinco peças e encimada de uma estrela de seis raios de ouro; sob o escudo, uma umbela basilical e duas chaves passadas em aspa; divisa: Devotio Mariæ Acaryensis gloria, escrita de negro em listel de prata.
(1) Significa "A devoção a Maria é a glória do acariense" e, segundo a postagem citada, é inspirada na homilia que o acariense Eugênio Cardeal de Araújo Sales proferiu no 160.º aniversário da paróquia de Acari, em 1995.
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