15/04/21

HERÁLDICA ECLESIÁSTICA PESSOAL: ARMAS DE DEVOÇÃO

Na heráldica eclesiástica contemporânea, as armas de devoção tornaram-se majoritárias, algumas delas excelentes.

Se a história desse aos bispos os cognomes que costuma dar aos príncipes, Dom José Delgado certamente mereceria ser chamado de O Educador, pois dificilmente se encontrará nas biografias de outros antístites brasileiros um trabalho em prol da educação tão longo e esforçado quanto o seu.

Dom José de Medeiros Delgado nasceu em 1905 na fazenda Timbaúba, termo de Pombal, hoje dentro do município de Malta. Foi ordenado presbítero em 1929, depois de se ter formado na própria Paraíba, com uma estadia breve em Roma, interrompida por motivo de saúde. Foi ordenado bispo em 1941. O seu pastoreio transcorreu através de quatro ciclos, cada um de mais ou menos um decênio: pároco de Nossa Senhora da Conceição de Campina Grande entre 1931 e 1941, primeiro bispo diocesano de Caicó entre 1941 e 1951, quarto arcebispo metropolitano de São Luís entre 1951 e 1963 e terceiro arcebispo metropolitano de Fortaleza entre 1963 e 1973. Faleceu em 1988 no Recife, onde se retirara, e está sepultado na Igreja de São José, antes capela do Colégio Diocesano Seridoense, em Caicó.

O universo dos estabelecimentos de ensino que fundou por onde passou é verdadeiramente impressionante:

Na verdade, esse legado faz parte de um labor mais amplo, concebido pela visão de que a igreja tinha uma responsabilidade social que transcende o mero ensino, porque havia de se comprometer com o desenvolvimento humano; noutras palavras, a educação como mudança. Com efeito, Dom José Delgado era um visionário: muito antes de se consagrar a expressão doutrina social da igreja, procurava apascentar com maior cuidado a parcela mais magra do rebanho ou mesmo trazer de volta a ovelha desgarrada. Disso sobressai a famigerada venda do paço episcopal à prefeitura de Fortaleza em 1973, hoje a sede desta, quando o destaque deveria recair sobre as três bases que assentou na sua primeira carta pastoral (1941) — vida cristã, paróquia e ação católica —, sobre as quais permaneceu firme até o seu retiro. Afinal, a atualização do Concílio Vaticano II, a repressão da Ditadura Militar e a transformação social da urbanização progressiva demandavam um pastor de sumas virtudes.

Armas de Dom José de Medeiros Delgado, terceiro arcebispo metropolitano de Fortaleza: de azul com quatro faixas ondadas de prata e um Ψ entrecambado; insígnias de arcebispo metropolitano; divisa: Ita Pater.
Armas de Dom José de Medeiros Delgado, terceiro arcebispo metropolitano de Fortaleza: de azul com quatro faixas ondadas de prata e um Ψ entrecambado; insígnias de arcebispo metropolitano; divisa: Ita Pater.

No campo heráldico, Dom José Delgado trazia armas muito originais: de azul com quatro faixas ondadas de prata e um Ψ entrecambado; insígnias de arcebispo metropolitano; divisa: Ita Pater. De fato, tão originais que à falta de brasonamento e vendo apenas alguns desenhos, custou-me reconhecer o psi. Talvez por isso estejam tão descaracterizadas na marca do Colégio Diocesano Seridoense. Devo o conhecimento certo do caso ao padre Gleiber Dantas, pároco de São Sebastião de Florânia, graças a uma postagem sua no Instagram. Até então vacilei entre uma interpretação ou outra, chegando a cogitar que se tratasse de um I e um U entrelaçados. Eis mais uma prova, dentre tantas que já se acumularam neste curto blog, de que a heráldica é multimodal — verbal e visual — e de que não se pode ficar dependendo do visual. Segundo o próprio armígero na citada primeira carta pastoral:

Nossas armas são de fácil inteligência. Falam-nos na simbólica linguagem heráldica e litúrgica da vida cristã, que se obtém por meio da água e do Espírito Santo no Sacramento do Batismo, conforme o diálogo de Jesus e Nicodemos, o ensino e a prática da Igreja. As linhas azuis onduladas representam água e a letra grega, que, com uns traços mais, se pareceria a uma pomba voando verticalmente para baixo, significa o Divino Espírito Santo. No Sábado de Aleluia, quando se faz a bênção da água batismal, tomam-se três velas em forma de psi, para representar o Espírito Santo e isso demonstra o uso litúrgico da referida letra grega. [...] O lema completa o expressivo simbolismo litúrgico das armas, recordando, de maneira incisiva e prática, que a obediência é problema de máxima importância na vida cristã. ITA, PATER – SIM, PAI.

Essa letra grega é a inicial da palavra ψυχή (psykhē), que significa 'sopro', 'alma', 'ânimo'. Normalmente, na Septuaginta traduz o hebraico נפש (nefeš) e na Vulgata é traduzida como anima, ao passo que o hebraico רוח (rua) é traduzido como πνεῦμα (pneûma) para o grego e spiritus para o latim, isto é, 'espírito', inclusive o Espírito Santo (Πνεῦμα τò Ἅγιον (Pneûma tò Hágion), Spiritus Sanctus). Seja como for, as razões aduzidas parecem-me perfeitamente aceitáveis.

Marca do Colégio Diocesano Seridoense.
Marca do Colégio Diocesano Seridoense.

O brasão de Dom José Delgado exemplifica um momento interessante da armaria eclesiástica. Efetivamente, ele tinha sobrenomes homófonos de linhagens armoriadas: os Medeiros trazem de vermelho com cinco cabeças de águia de ouro e os Delgados, de vermelho com um limoeiro de verde, frutado e arrancado de ouro, acompanhado à sinistra de um lebréu passante de prata, coleirado de azul e acorrentado de ouro ao tronco. Portanto, podia ter feito alguma composição de armas gentilícias com devocionais, como a do Cardeal Arcoverde, de que tratei na postagem anterior. Ao invés disso, preferiu uma criação nova, puramente devocional. Mais que isso: singela, bela e representativa, portanto de altíssima qualidade heráldica.

Juntamente com a queda da monarquia, caducou a legislação heráldica do Antigo Regime, que tomava o brasão por marca de nobreza e honra. Isso o converteu em assunto privado de cada cidadão e parece ter repercutido na armaria eclesiástica, a qual, de resto, é a única pessoal que permaneceu vigorosa até hoje. Cessadas as práticas sociais que dotavam as armas gentilícias de prestígio, as armas de devoção tornaram-se as escolhas mais razoáveis para os clérigos, de tal modo que vieram fazer-se majoritárias.

Não para aí: o predomínio das armas devocionais levou a outra consequência: cada vez que um bispo novo é ordenado, é preciso criar um brasão novo. Isso pode até parecer interessante para a comunidade heráldica, mas será que dispõe de heraldistas competentes suficientes para essa demanda? Além disso, será que está minimamente difundido entre o clero a conveniência de buscar o serviço de um bom heraldista para ordenar um brasão? A armaria eclesiástica pode continuar vigorosa, mas a julgar pela sua qualidade atual, acho que não e não.

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