18/07/21

O BRASÃO DO SEMINÁRIO SANTO CURA D'ARS

Há uma armaria eclesiástica excelente que deveria servir de exemplo para a atualidade.

Como disse na postagem de 15/04, em meio à enorme obra de Dom José de Medeiros Delgado em prol da educação, está a fundação do Seminário Santo Cura d'Ars em 1946. Paula Sônia de Brito, na sua dissertação de mestrado (2004), cita um artigo do Monsenhor Maurílio César de Lima sobre o brasão dessa instituição, publicado na revista comemorativa 50 anos formando sacerdotes (1996):

Brasão português de ouro, sobreposto por uma cruz grega de goles (vermelho), tendo no centro concha de prata aberta, ostentando pérola ao natural. No primeiro quartel destro, estrela de cinco pontas em blau (azul). Como timbre, mitra episcopal, com suas bandas ladeando laceando. No listel, o mote 'IN SEMINE SPES' em caracteres de sable (negro).
SIMBOLISMO: A forma de escudo alude à colonização portuguesa, que nos legou a fé católica na região do Seridó; o campo de ouro simboliza o sacerdócio que se exerce nos trigais dourados do Senhor da messe; a cruz rubra lembra a redenção; a concha é tirada do Brasão da Diocese, indica Sant'Ana, padroeira da diocese de Caicó, que se abriu para o mundo, dando-nos a Virgem Maria, pérola preciosa de Deus. A estrela solitária azul, representa o idealismo do Santo Cura d'Ars, dedicando-se sozinho ao apostolado. O timbre, com mitra episcopal, enlaça o Seminário, que é diocesano, e a divisa recorda que as esperanças do Povo de Deus estão plantadas no Seminário, que é sementeira do futuro Clero Diocesano.

Brasão do Seminário Santo Cura d'Ars: de ouro com uma cruz de vermelho, carregada de uma concha aberta de prata, sobrecarregada de uma pérola do mesmo, e cantonada de uma estrela de azul no primeiro; timbre: mitra; divisa: In semine spes, escrita de negro em listel de prata.

O brasonamento não é bom, mas o brasão é ótimo. Prefiro brasoná-lo assim: de ouro com uma cruz de vermelho, carregada de uma concha aberta de prata, sobrecarregada de uma pérola do mesmo, e cantonada de uma estrela de azul no primeiro; timbre: mitra; divisa: In semine spes, escrita de negro em listel de prata.

Justifico rapidamente por que julgo ruim o brasonamento. Primeiro, não se brasona a forma do escudo, porque é uma escolha artística, e não há escudo português, francês, inglês etc., mas escudo dito "português", "francês", "inglês" etc., porque mais usado em certo país em dado momento. Por exemplo, em Portugal nos séculos XVIII e XIX o escudo habitual não era o dito "português" (de ponta arredondada), mas o dito "francês moderno" (de ângulos inferiores arredondados e ponta aguçada). Depois, goles, blau, sable são uma nomenclatura espúria em língua portuguesa. Enfim, cumpre empregar a linguagem heráldica para exprimir como os constituintes das armas se ordenam.

Por outro lado, o brasão é muito bom porque, como sempre digo nestes casos, é singelo, belo e representativo. Nada de partido, terciado ou esquartelado: acertadamente, o autor não dividiu o campo, mas o carregou com uma peça de primeira ordem, a cruz, que remete ao estado eclesiástico do armígero. Escolheu uma figura para representar a jurisdição, muito bem escolhida, por ser o próprio atributo icônico da padroeira — Sant'Ana  no brasão da diocese, e outra para referir ao patrono da instituição titular — São João Maria Vianney , ambas assentadas em pontos honrosos do escudo. Tudo em estrita observância da regra de iluminura: campo de metal com peça de cor, carregada de figura de metal e acompanhada de outra de cor. Para rematar, nada de listel com legenda redundante, mas um lema, um ideal conciso e contundente, lavrado em língua latina.

A julgar pelas armas diocesanas e pelas episcopais de então, parece ter sido um tempo em que se praticava uma boa heráldica eclesiástica, pois ao invés de alguns vícios tão habituais hoje em dia, como afetação, pobreza semiótica e ignorância do código heráldico, veem-se simplicidade, inteligência e correção.

Este brasão também é interessante pelo seu timbre. Com efeito, é consabido ou ao menos bastante perceptível o quanto os ornamentos externos da armaria eclesiástica pessoal são minuciosos. Mas, ao contrário do que isso sugere, essas minúcias não estão codificadas, mas consolidadas por tradição, o que fica patente na armaria eclesiástica comunitária. Por exemplo: no Brasil, tornou-se bastante regular sobrepor o escudo da arquidiocese ou diocese a uma cruz arquiepiscopal ou episcopal/processional e um báculo decussados e timbrá-lo com mitra e o escudo da paróquia, a uma cruz episcopal. Não obstante, fora do país não se observa o mesmo: dentre as arquidioceses e dioceses, há umas que trazem apenas a mitra (como a de Lamego), outras o galero (como a do Porto) e umas terceiras a cruz episcopal (como muitas hispânicas). Inclusive, a presença dessa cruz nos brasões paroquiais parece mesmo uma inovação brasileira. Talvez essa regularidade da armaria nacional de comunidades religiosas se deva ao fato de que teve início há algumas décadas por obra de poucos heraldistas, mas bons.

Em tempo, o desenho desses ornamentos — menos ou mais decorados — é um aspecto meramente artístico de cada execução do brasão. Por isto, sequer indico no brasonamento se são de ouro ou prata, com pedraria ou sem nenhuma.

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