Um brasão não é um desenho, mas um conceito formulado em linguagem verbal e reproduzido em linguagem visual.
Como abordei na postagem de 22/02, o Brasil teve três brasões: as armas reais, dadas por Dom João VI em 1816, normalmente unidas às de Portugal; as imperiais, dadas por Dom Pedro I em 1822, e as republicanas, assumidas pelo governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca em 1889. As primeiras e segundas foram tecnicamente descritas, o que se denomina brasonamento, como expliquei na postagem anterior. Em contrapartida, as terceiras foram apenas desenhadas, ao menos até 1968. Há quem enxergue na falta de um "padrão" das armas nacionais durante o Império um defeito, como Milton Luz em A história dos símbolos nacionais (2005):
No entanto, a aparência formal deste símbolo não foi convenientemente preservada, talvez em razão da prevalência do alegórico sobre o heráldico. Assim, as mais variadas e fantasiosas versões deste brasão se multiplicavam nas fachadas dos edifícios públicos e nas publicações oficiais.
Trata-se, porém, de um juízo anacrônico, pois o que distingue o brasão de outros emblemas é justamente a sua natureza multimodal: verbal e visual. É graças a isso que ele perpassa artes e estilos ao longo de tanto tempo. Tomem-se, por exemplo, as armas de Portugal, que são as mesmas desde 1555: de prata com cinco escudetes de azul postos em cruz, carregados de cinco besantes do campo, e uma bordadura de vermelho, carregada de sete castelos de ouro. Atravessaram, portanto, o Renascimento, o Barroco, o Neoclassicismo, o Romantismo, as vanguardas do fim do século XIX e do começo do seguinte e a arte contemporânea, evidentemente em versões variadas, conforme o gosto de cada momento, o que não as torna fantasiosas. Na armaria, a própria noção de padrão é, afinal, recente.
Com efeito, as armas imperiais brasileiras, ainda que usadas por muito menos tempo, demonstram perfeitamente esse estado de coisas, que, ao contrário do que o autor citado julga, não tem nada de alegórico, mas tem sido próprio da heráldica desde sempre. Duas fontes permitem vislumbrar a diversidade na reprodução desse brasão ao longo do período: o jornal oficial e a moeda, tanto a metálica como a impressa em papel.
No cabeçalho do jornal oficial, as armas nacionais foram introduzidas no n.º 137 da Gazeta do Rio, de 14 de novembro de 1822, e assim permanece até hoje no Diário Oficial da União, salvo de 1841 a 1846 e de 1848 a 1862, períodos durante os quais o estado publicou os seus atos no Diário do Rio de Janeiro, de propriedade privada. Infelizmente, a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Digital dispõe apenas do primeiro número do Diário Oficial, de 1.º de outubro de 1862, mas por esse e outros que se acham pela Internet, pode-se provisoriamente concluir que se seguiu usando o terceiro desenho adotado pela Gazeta Oficial em 1847.
As Armas Nacionais nos jornais oficiais durante o Império (imagens disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Digital do Brasil). |
Desses desenhos, dois chamam a atenção: os adotados pelo Correio Oficial em 1833 e 1834. Todos os demais reproduzem perfeitamente o brasonamento constante do Decreto de 18 de setembro de 1822: "em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real [depois imperial] diamantina sobre o escudo, cujos lados serão abraçados por dous ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor e ligados na parte inferior pelo laço da nação". Tudo o que diverge de uns para outros, até mesmo a forma germânica da coroa no quarto desenho adotado pelo Correio Oficial em 1836, deve-se ao estilo de cada artista, o qual pode ser julgado em termos estéticos, mas não em termos heráldicos.
Com efeito, os ditos desenhos de 1833 e 1834 distinguem-se porque, além dos ramos de cafeeiro e tabaco, o escudo é suportado por diversas insígnias e troféus: bandeiras, âncora, mão de justiça, cornucópia, caduceu, chaves e peça de artilharia. No meio monarquista, costuma-se qualificar esses desenhos de "alegorias", como afirma Milton Luz na citação ("em razão da prevalência do alegórico sobre o heráldico"). Não sei de onde se tirou isto, mas difere de qualquer conceito de alegoria que eu conheça em arte. Talvez se tenha tirado do gosto oitocentista pela alegoria, entendida enquanto representação de um conceito por meio de algo concreto, seja um ser vivo ou uma coisa.
As Armas Nacionais compondo alegorias no papel-moeda durante o Império (imagens disponíveis no Bank Note Museum). |
Esse gosto faz-se bem presente no papel-moeda: desenhos de mulheres que representam a agricultura, o comércio, a fortuna, a justiça, a verdade segurando o escudo com a coroa veem-se com frequência, o que, de resto, se conserva até hoje, já que a figura humana que ilustra todas as cédulas do real em circulação é uma alegoria da república. Nesses casos, não é que as armas se convertam numa alegoria, mas sim que façam parte de uma alegoria.
As Armas Nacionais no papel-moeda durante o Império (imagens disponíveis no Bank Note Museum). |
Ora, o anacronismo da noção de padrão supõe que a heráldica desconheça a influência da moda. Antes o contrário: a heráldica é uma arte e, como tal, fica sujeita a tendências de toda a sorte. Os próprios suportes vegetais, tão pouco tradicionais na armaria portuguesa, são profundamente latino-americanos. Efetivamente, a troféus, como também se vê acima do arco triunfal da Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, no Recife, quase todas as repúblicas do continente sobrepuseram os seus escudos ou emblemas nalgum momento do século XIX, como ainda o faz o Equador, assim como entre as monarquias europeias esteve em voga sobrepô-los a pavilhões, como ainda o faz a Suécia.
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