29/04/21

OS NOVE DA FAMA

Os Nove da Fama personificam a cavalaria, cuja dimensão estética era a heráldica, daí que os seus brasões abram o Livro do Armeiro-Mor.

Atenção! As armas de todos os Nove da Fama são imaginárias, já que mesmo os personagens históricos viveram antes do surgimento da heráldica.

Do Livro do Armeiro-Mor (1509):

Fólio 1r: Josué, duque.
Fólio 1r: Josué, duque.

Josué, duque: De ouro com uma serpe de verde, armada e lampassada de vermelho.

Fólio 1v: Rei Davi.
Fólio 1v: Rei Davit.

Rei Davi: De azul com uma harpa de ouro.

Fólio 2r: Judas Macabeu.
Fólio 2r: Judas Macabeu.

Judas Macabeu: De ouro com dois corvos voantes de negro, um sobre o outro.

Fólio 2v: O rei Alexandre.
Fólio 2v: El-rei Alexandre.

O rei Alexandre: De vermelho com um leão de ouro, sentado numa cadeira de sua cor, segurando uma alabarda de prata, hasteada de sua cor.

Fólio 3r: Heitor, duque.
Fólio 3r: Heitor, duque.

Heitor, duque: De ouro com um leão de vermelho, segurando um machado de prata, encabado de sua cor.

Fólio 3v: Júlio César.
Fólio 3v: Július César.

Júlio César: De ouro com uma águia de duas cabeças de negro, bicada e membrada de vermelho. São as armas do imperador do Sacro Império (imperator Romanorum), cuja atestação mais antiga remonta a meados do século XIII. Com a águia de uma só cabeça, são atualmente as armas federais da Alemanha.

Fólio 4r: Rei Artur.
Fólio 4r: Rei Artur.

Rei Artur: De azul com três coroas de ouro, alinhadas em pala.

Fólio 4v: Carlos Magno.
Fólio 4v: Carlo Magno.

Carlos Magno: Partido dimidiado, o primeiro de ouro com uma águia de duas cabeças de negro, bicada e membrada de vermelho; o segundo de azul com três flores de lis de ouro. O termo dimidiado é usado na heráldica britânica, mas se mostra mais preciso do que rodeios como meia águia movente do partido. Com efeito, brasona-se por inteiro cada um dos dois brasões e o termo basta para indicar que se há de desenhar cada um como se tivesse sido cindido pela metade. Neste caso, uniram-se as armas do imperador do Sacro Império (imperator Romanorum) e as do rei da França. Ambas remontam ao século XIII.

Fólio 5r: Rei Godofredo de Bulhão.
Fólio 5r: Rei Gudefroe de Bulhom.

Rei Godofredo de Bulhão: De prata com uma cruz potenteia de ouro, cantonada de quatro cruzetas do mesmo. São as armas reais de Jerusalém, que remontam ao reinado de João de Brienne (1210-25).

Fólio 5v: Bertrand du Guesclin.
Fólio 5v: Bertrão de Guesclim.

Bertrand du Guesclin: De vermelho com um leão de ouro; chefe de França. Na verdade, o condestável trazia de prata com uma águia de duas cabeças de negro, bicada e membrada de vermelho, e uma cotica do mesmo brocante sobre tudo.

Na postagem de 18/03, apresentei os Nove da Fama para ilustrar a ascensão dos arautos a oficiais de armas dentro da visão de mundo baixo-medieval, mas isso não explica todo o sucesso dos Nove da Fama, que, como mostrei, chega, de certo modo, até nós, porque são os protagonistas de matérias literárias que seguem rendendo estórias de que ainda gostamos, não mais contadas em milhares de versos, mas por meio da tecnologia do nosso tempo.

Como conjunto, os Nove da Fama parecem ter sido criados por Jacques de Longuyon, que enxertou 102 versos sobre esses personagens nos Vœux du paon ('Votos do pavão', 1310-1312), poema seu que é, à sua vez, uma longa interpolação do Roman d'Alexandre. Com efeito, Glynnis M. Cropp, em artigo de 2002, no qual oferece uma edição desses versos, observa que deixam ver uma composição à parte, embora perfeitamente coesa com o fio da narração: a comparação superestima as qualidades do cavaleiro Porrus, abrandando a violência que se vinha desenrolando através de um interlúdio agradável e útil, e em seguida confirma que não é Porrus, mas Alexandre o verdadeiro herói do romance. É que os Nove da Fama foram mais que bravos guerreiros, eles foram poderosos líderes, daí que no Livro do Armeiro-Mor àqueles que não possuíram títulos monárquicos se tenha dado o de "duque", cujo sentido não é o nobiliário, mas o etimológico: do latim dux, ducis 'general'.

Na configuração primitiva, a sequência dos Nove da Fama era mais teológica que cronológica: primeiro os três heróis pagãos (Heitor, Alexandre o Grande, Júlio César), depois os judeus (Josué, Davi, Judas Macabeu) e por último os cristãos (Artur, Carlos Magno e Godofredo de Bulhão), ou seja, sob a perspectiva da salvação, partia-se do referente mais longínquo para se chegar ao mais próximo ao leitor/ouvinte. No entanto, do século XV em diante assumiu-se uma perspectiva mais histórica, sob a qual se escreveram obras que reúnem uma crônica breve de cada um dos Nove. Foi uma dessas obras que serviu de fonte a João do Cró para a elaboração do primeiro capítulo do Livro do Armeiro-Mor: Le triumphe des Neuf Preux, impresso em 1487. Eis as gravuras de um exemplar conservado na Bibliothèque nationale de France:

Fólio 35r: Josué, roi.
Fólio 35r: Josué, roi.

Fólio 57r: David.
Fólio 57r: David.

Fólio 113: Judas Maccabëus.
Fólio 113: Judas Maccabëus.

Fólio 139r: Alixandre.
Fólio 139r: Alixandre.

Fólio 255r: Hector.
Fólio 255r: Hector.

Fólio 323r: Julius César.
Fólio 323r: Julius César.

Fólio 423r: Arthus.
Fólio 423r: Arthus.

Fólio 459r: Charlemagne.
Fólio 459r: Charlemagne.

Fólio 489r: Godefroi de Billon.
Fólio 489r: Godefroi de Billon.

Fólio 531r: Bertrand.
Fólio 531r: Bertrand.

A semelhança com as iluminuras do Livro do Armeiro-Mor é absolutamente evidente, inclusive as armas atribuídas a Bertrand du Guesclin. Apenas divergências nos esmaltes de alguns brasões aqui e ali, o que de resto era habitual então, sobretudo em se tratando de armas imaginárias. Na verdade, o iluminador do incunábulo devia de ser pouco versado em heráldica, já que pôs metal sobre metal nas armas de Alexandre o Grande e de Heitor. Além disso, vale a pena ler o prólogo:

Très Noble et très Chrestien Charles, VIII de ce nom, par la grâce de Dieu Roi de France, je, qui pour ma petitesse ne veuil présumer moi nommer, connoissant qu'entre les autres très grandes et nobles vertus dont Dieu, nostre créateur, vous aourne, vous désirez oïr, narrer et réciter les vertueuses proesses dont aucuns rois terriens ont esté grandement décorés en ce présent monde, vous notifie qu'en ceste nuit en dormant, les yeux clos et l'entendement ouvert et esveillé, se sont présentés à moi neuf personnages de diverses sortes. Et néanmoins, contendants, comme il me semble, tous à une fin, desquels les trois premiers et plus anciens en apparence estoient juifs de grande et singulière présentation, desquels le premier se nommoit Josué, homme de grande stature. Le second, David, qui portoit en chief couronne d'or fin. Le tiers avoit nom Judas Maccabëus, puissant et robuste de corps. Les autres trois personnages qui les premiers suivoient estoient payens et sembloient bien de grande autorité, de belle stature estoient, mais fel et austère regard avoient. Le premier desquels estoit Alexandre le Grand, couronne portant en teste et sceptre en la main, et se maintenoit comme empereur. Le second estoit grand et élevé, de beau corsage, tenant la main à son espée, et se nommoit Hector de Troie. Et le tiers estoit en armes, un manteau de pourpre dessous son bras sénestre et estoit nommé Julius César. Des trois derreniers commençai à spéculer et remirer les personnages, qui à merveilles estoient vénérables, magnifiques et de mout honneste représentation, dont le premier portoit couronne d'or mout riche en son chief et se nommoit Arthus, qui portoit escu de gueules à trois couronnes d'or. Le second estoit beau, haut et élevé, longue barbe, couronne impériale sur sa teste portoit et s'y avoit afulé un manteau de deux couleurs, parties d'azur et d'or, sur l'une desquelles, c'est à savoir, sur la dextre, avoit un aigle de sable à deux testes et l'autre chargé de fleurs-de-lis d'or, et se nommoit Charles le Grand. Et le tiers et derrenier des neuf estoit mout honneste, simple et courtois, couronnes d'espines portoit et se nommoit Godefroi de Buillon, qui portoit escu d'argent à une croix d'or potencée. Ces trois derreniers estoient chrestiens. Tous lesquels personnages conduisoit une dame qui en son maintien et vesture sembloit bien de grande révérence et autorité, portant entre ses mains une riche couronne de laurier. Et comme à demi effrayé je lui demandasse son nom et la cause de sa venue, attendu que les neuf autres dessus dits ne sonnoient mot, elle doucement me respondit qu'elle avoit nom Triumphe, laquelle demandoit avoir chascun d'iceux vassaux ensemble sa couronne de laurier, mais pource qu'à sa nativité lui avoit esté donné un don fatal, qui estoit tel que jamais ne seroit donné à homme, sinon au plus vaillant et au plus preux des autres. Et pource que tous les présents se disoient et nommoient preux, elle vouloit savoir lequel l'estoit le plus des autres, auquel elle peüst estre donné avec sa couronne. Et pour ceste cause estoit venue devers moi ensemble eux, pour et afin que je meisse par escrit les faits particuliers d'un chascun d'eux.

Em português:

Nobilíssimo e Cristianíssimo Carlos, VIII deste nome, pela graça de Deus Rei da França, eu, que pela minha pequenez não quero presumir de me nomear, sabendo que entre as muito grandes e nobres virtudes com que Deus, nosso criador, o adorna, Vossa Majestade deseja ouvir, narrar e recitar as virtuosas proezas com que alguns reis terrenos foram grandemente condecorados no presente mundo, notifico-lhe que nesta noite dormindo, fechados os olhos, aberto e desperto o entendimento, apresentaram-se a mim nove personagens de diversas formas. Não obstante, concorrentes, como me parece, todos a um fim, dos quais os três primeiros e mais antigos na aparência eram judeus de grande e singular presença, dos quais o primeiro se chamava Josué, homem de grande estatura. O segundo, Davi, trazia na cabeça uma coroa de ouro fino. O nome do terceiro era Judas Macabeu, poderoso e robusto de corpo. Os outros três personagens que seguiam os primeiros eram pagãos e pareciam também de grande autoridade, eram de bela estatura, mas tinham um olhar fero e austero. O primeiro deles era Alexandre o Grande, trazendo uma coroa na cabeça e um cetro na mão, portava-se como imperador. O segundo era grande e erguido, de belo tronco, tendo a mão na sua espada, chamava-se Heitor de Troia. E o terceiro estava armado, um manto púrpura debaixo do seu braço esquerdo e era chamado Júlio César. Dos três últimos comecei a observar e reparar nos personagens, que eram maravilhosamente veneráveis, magníficos e de muito decente representação, o primeiro dos quais trazia uma coroa de ouro muito rica na sua cabeça e se chamava Artur, que trazia um escudo de vermelho com três coroas de ouro. O segundo era belo, alto e erguido, barba longa, coroa imperial sobre a sua cabeça e vestira-se com um manto de duas cores, partido de azul e ouro, sobre uma, a saber, a da direita, tinha uma águia de negro de duas cabeças, e a outra carregada de flores de lis de ouro, e chamava-se Carlos o Grande. O terceiro e derradeiro dos nove era muito decente, singelo e cortês, trazia coroas de espinhos e chamava-se Godofredo de Bulhão, que trazia um escudo de prata com uma cruz potenteia de ouro. Estes três últimos eram cristãos. Todos esses personagens conduzia uma dama que no seu porte e vestimenta parecia também de grande reverência e autoridade, trazendo entre as suas mãos uma rica coroa de louros. E como meio assustado lhe perguntasse o seu nome e a causa da sua vinda, dado que os outros nove supraditos não diziam palavra, ela docemente me respondeu que o seu nome era Triunfo, a qual cada um daqueles vassalos pleiteava ter junto com a sua coroa de louros, mas porquanto à sua natividade lhe foi dado um dom fatal, nunca seria dado a homem algum, a não ser ao mais valente e ao mais prezado que os demais. E porquanto todos os presentes se diziam e se chamavam prezados, ela queria saber qual era o mais prezado que os demais, ao qual pudesse ser dada com a sua coroa. E por esta causa viera até mim junto com eles, para e a fim de que eu pusesse por escrito os feitos particulares de cada um deles.

Fica claro que o fato de os Nove da Fama terem sido líderes excelentes tornou as suas histórias mais que deleitosas para os nobres, para os quais a cavalaria era cada vez menos prática e mais discurso, porque eram cada vez menos guerreiros e mais cortesãos: eram também instrutivas para os soberanos, que nelas apreendiam exemplos de bons governantes e audazes conquistadores. Ademais, o número nove, além de acomodar três tríades, permitia a adição de um personagem a mais para completar a década, como Bertrand du Guesclin, que aparece nessa posição desde as baladas de Eustache Deschamps (1346-1404/05). Trocando em miúdos, as histórias dos Nove da Fama podiam destinar-se à glorificação de um príncipe ou senhor, não só pelo relato das suas façanhas à guisa de décimo prezado, mas também pela dedicatória da obra.

Com efeito, o Triumphe des Neuf Preux foi novamente impresso em 1507 e traduzido por Antônio Rodrigues, rei de armas Portugal, para o espanhol em 1530, sob o título de El triunfo de los Nueve Preciados de la Fama. Isso não só prova que dessa obra se tirou o primeiro capítulo do Livro do Armeiro-Mor, mas a epístola em português que o tradutor endereça ao rei Dom João III patenteia as múltiplas funções que as histórias dos Nove da Fama cumpriam nas sociedades quinhentistas:

Mui Alto e mui Poderoso e Sereníssimo Príncipe Dom João, III deste nome, nosso Senhor, pola graça divinal Rei de Portugal e da verdadeira Lusitânia e Reino dos Algarves d'aquém e d'além-Mar em África e dela perpétuo Conquistador, Senhor das partes de Guiné e de todo dourado Oceão, com todas suas terras e ilhas súbditas ao radiante sol, Rei e Senhor dos Reinos de Goa e de Quíloa e do Reino de Malaca e de Maluco, com todas suas ilhas, por quem reina o rico rei de Ormuz e de Cochim e a quem outros muitos reis, por força d'armas lusitânias conquistadas, pagam trebuto, e Senhor de toda a Conquista e Navegação de Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, verdadeiro possuidor de tôdolos seus requíssimos comércios e aromáticos fruitos etc. Movendo-me aquele dito do filósofo no primeiro da Matafísica, mui Esclarecido Príncipe e Senhor, que tôdolos hómẽes naturalmente desejam saber, e porque as cousas passadas se vereficam nas presentes e são espelho, exempro em que se vem e podem prover as foturas, nas quaes consiste todo entendimento perfeito dos homens, procedente do Altíssimo Deus, e assi porque em sua arte, perito e douto a cada um ser convém, sendo já eu desde minha tenra idade nos estudos exercitado, lendo por livros de diversos e diferentes linguágẽes, como ao bõo rei d'armas pertence, achei ũa obra em linguagem francesa, a qual por certo me paresceu digna de ser lembrada, porque o mais verdadeiramente que pode ser trata em particular as nove vidas dos mui famosos e prezados Nove da Fama, scilicet, três hebreus e três gentios e três cristãos, e assi também escreve a vida do esforçado cavaleiro Beltrão de Guesclim, natural bretão, condestabre que foi de França, na qual se trata das guerras que em seu tempo foram entre ingreses e franceses em Castela em tempo d'el-rei Dom Pedro. E certamente em diversos livros se poderão com grande trabalho achar estas dez vidas defusamente escritas, mas tão verdadeiramente e em tanta abondança no que é necessário e em tão breve estilo e volume tão pequeno copiladas certefico que se nom achem em outra algũa linguagem. E porque esta obra pretende e trata do triunfo da verdadeira política, nobreza, glória das armas, ao que eu por meu ofício tenho grande afeição por lhe dar nova vida, treladá-la em esta mais comum linguagem mui expediente me paresceu, com mais importuno trabalho e vegílias que necessidade de outra ciência, por ser necessário bem oulhar os livros donde estas dez vidas tiradas fôrom. E posto que o autor compoendor desta obra em linguagem francesa se não quisesse nomear, louvando-se em seu proêmio, todavia ele dedicou esta obra a Carlos, rei de França, oitavo deste nome, pedindo-lhe que lhe aprouvesse dar com os de seu Conselho sanção defenitiva, a qual destes nove mais se deve o glorioso treunfo da fama o que nunca até agora foi deciso nem determinado, e por certo não sem causa que pois, muito Sereníssimo Príncipe, toda a deferença destes nove consiste em qual deles mais floreceram as ditas mais soblimadas vertudes, scilicet, manhanimidade e fortaleza, decoradas com justiça, que tanto ao príncipe se requerem e em Vossa Alteza se acham em tão perfeito grao. A Vossa Alteza, por certo, pertence com mais dereito isto determinar e esta tão urgente razão tira e escusa minha baxa rudeza de culpa, por ser tão ousado de lhe ofrecer este meu prove trabalho, crendo que Vossa Alteza quererá mais resguardar a grande nobreza que em esta obra se trata e aos desejos que eu, humilde criado seu, tenho sempre de o servir, que ao meu fraco e humilde serviço, rogando sempre a Deus que em longa e mui próspera vida e acrecentamento sempre de estado queira conservar a Vossa Alteza. Amém. Etc.

Aí está tudo: os Nove da Fama personificam os ideais da cavalaria, que constituíam o código de conduta da nobreza, cuja fonte era o príncipe. Como a heráldica se converteu na dimensão estética desse código, resultava muito natural para as mentes de então que esses nove personagens tiveram brasões, de modo que parecia digníssimo que tais armas abrissem um armorial.

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