18/03/21

DAQUELES QUE PRIMEIRO INVENTARAM AS ARMAS

A mitificação das origens da heráldica serviu aos interesses dos arautos, mas também se encaixava bem na visão de mundo baixo-medieval.


Do Tratado Prinsault (1444):

Le premier chapitre : de ceux qui premier trouvèrent armes.

Le très vaillant et victorieux Alixandre, roi de Macédoine, le très puissant troyen Hector, le très prudent empereur Jules César et plusieurs autres nobles princes, désirants savoir comme leurs vassaux et sujets se portoient vaillamment aux faits d'armes, afin d'esprouver et récompenser chascun selon sa desserte, ordonnèrent qu'en leurs escus seroit descrite ou insculpée certaine enseigne et différence, par laquelle l'on peüst clairement discerner et juger de leurs vaillants et preux faits, laquelle enseigne à présent est appelée armes, lesquelles armes ont esté assignées par lesdits princes non seulement à iceux vaillants hommes, mais aussi à toute leur postérité, afin qu'en recordation et mémoire desdites vaillances, ils soient plus inclinés et animés à ensuivre et imiter les beaux faits, prouesses et vaillances de leurs prédécesseurs.

Fólios 52v e 53r do códice 3711, conservado na Bibliothèque Mazarine, em que se veem as armas imaginárias de personagens arturianas.
Fólios 52v e 53r do códice 3711, conservado na Bibliothèque Mazarine, em que se veem as armas imaginárias de personagens arturianas. (1)

O primeiro capítulo: daqueles que primeiro inventaram as armas.

O valorosíssimo e vitoriosíssimo Alexandre, rei da Macedônia, o potentíssimo troiano Heitor, o prudentíssimo imperador Júlio César e vários outros nobres príncipes, desejando saber como os seus vassalos e súditos se portavam valorosamente nos feitos de armas, a fim de provar e recompensar cada um segundo o seu serviço, ordenaram que nos seus escudos seria descrita ou insculpida certa insígnia e diferença, pela qual se pudessem claramente discernir e julgar os seus valorosos e bravos feitos, insígnia que no presente é chamada armas, as quais foram concedidas por esses príncipes não só àqueles valorosos homens, mas também a toda a sua posteridade, para que em recordação e memória desses valores, estejam mais inclinados e animados a seguir e imitar os belos feitos, proezas e valores dos seus predecessores.

Fólio 1r do códice Français 18651, conservado na Bibliothèque nationale de France, em que se veem várias armas imaginárias.
Fólio 1r do códice Français 18651, conservado na Bibliothèque nationale de France, em que se veem várias armas imaginárias.

Comentário:

Ao longo da ainda curta existência deste blog, fiz algumas considerações sobre a origem da heráldica, que marquei exatamente com essa etiqueta. Vou tentar resumi-las num parágrafo.

A heráldica surgiu no século XII no norte da França, mais precisamente em terras que hoje fazem parte da região da Alta França (Hauts-de-France). À falta dos objetos armoriados que o tempo consumiu, como vestes, escudos e pinturas sobre paredes e tetos, o nosso conhecimento depende do que foi gravado nos selos. Desde o início do século, esses selos mostram senhores montados, sustendo com uma mão um escudo e com a outra uma lança, a esta afixada uma bandeira na qual se veem desenhos que coincidem com o que serão as armas desses senhorios, como o burelado de Luxemburgo, o bandado da Borgonha ou o xadrezado de Vermandois. Na quarta década desse século, difundiu-se por toda a Europa ocidental a moda de representar o cavaleiro empunhando uma espada em vez da lança, o que deixava ver o campo do escudo, sobre o qual se passou a figurar o brasão. Enfim, na década de oitenta a representação sigilar começou a reduzir-se ao escudo armoriado, transcendendo o âmbito senhorial e militar original e estendendo-se a toda a sociedade.

Ora, se a heráldica se desenvolveu durante o século XII, qualquer explicação que remonte o seu surgimento para trás ou contém equívoco, como as de certos acadêmicos modernos que acertaram na origem baixo-medieval, mas erraram recuando-a um ou dois centênios, ou é mítica, como a dos arautos, de que o presente capítulo é exemplo. Em particular, o mito de que alguma grande personagem da Antiguidade criou a heráldica já aparece no De ministerio armorum, o tratado produzido por um arauto português em 1416:

Quia quando divus Julius Cæsar fuit supra ripariam sive fluvium de Rubicon in Romania et dixit generaliter suis gentibus seu ejus exercitui quod ille qui ex bona et integra voluntate nollet perseverare et persistere cum ipso in magnis factis et conflictibus et gestis ad quæ intendebat et sperabat pervenire quod ab eodem discederent, ipsis liberam impartiendo et in pugnam licentiam. Et illis gentibus sui exercitus quæ bono et constanti corde vellent permanere et persistere secum præceptum fecit et jussit quod quilibet gentium earumdem exercitus sui deferrent insignia talia quod minime essent similia; sic quod insignia singularia omnino discreparent a se ipsis, ad finem quod corda audacia et felicia et valentes probitates cognoscerentur a vecordibus et infelicibus cordibus et gestis minus prosperis. Et fuit tunc publicatum ut quilibet dicti exercitus faceret scribi in modum registri divisiam sive insignia quæ differret. (2)

Por mais que os arautos tenham forjado essas narrativas e outras semelhantes com deliberado interesse corporativo — reivindicar dignificação do seu mister —, antes de incorrer num pesado juízo de valor, convém procurar entender como o mito se articulava com as práticas, as crenças e os gostos e, por isso, convencia. Com efeito, as pessoas da baixa Idade Média tinham uma predileção por estórias ambientadas em três momentos, segundo Jean Bodel na Chanson des saisnes (1180-1200):

N'en sont que trois matères à nul homme vivant : 
de France et de Bretagne et de Rome la grand ;
ne de ces trois matères n'y a nulle semblant.
Li conte de Bretagne sont si vain et plaisant,
et cil de Rome sage et de sens apprendant,
cil de France sont voir de chascun jour apparent. (3)

A matéria de Roma, ou ciclo clássico, é ambientada na Grécia e Roma antigas e narra os feitos de personagens como Heitor, Alexandre o Grande e Júlio César; a matéria de Bretanha, ou ciclo arturiano, é ambientada na Grã-Bretanha e na (pequena) Bretanha da Idade Média inicial e narra os feitos do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda; a matéria de França, ou ciclo carolíngio, é ambientada na Europa alto-medieval e narra os feitos de Carlos Magno e dos seus paladinos. Os textos faziam tanto sucesso que o gênero recebeu o nome da própria língua em que eram compostos: romance (de romanice, por oposição a latine, a língua culta). A matéria de Bretanha foi especialmente apreciada no ocidente ibérico, já que remanescem traduções para o português do José de Arimateia, de fragmentos do Merlim e da Demanda do Santo Graal, todos componentes da chamada pós-vulgata dos romances arturianos, e de fragmentos do Livro de Tristão para o galego.

Na verdade, essas matérias continuam a satisfazer as nossas necessidades por boas estórias. A diferença é que ninguém compõe mais dez mil versos, mas usa da tecnologia atual para produzir obras audiovisuais: qualquer um que goste do gênero lembra do Aquiles interpretado por Brad Pitt (Troia, 2014) ou do Alexandre o Grande por Colin Farrell (Alexandre, 2004), sem falar das várias produções de tema arturiano. E ainda que a matéria de França tenha caducado no gosto contemporâneo, o seu lugar foi ocupado, a meu ver, pelo que bem mereceria a qualificação de "matéria de Jerusalém", isto é, a afeição às cruzadas. A propósito, em 2005 estreou um filme que no Brasil ganhou precisamente o título de Cruzada (o original é Kingdom of Heaven): é ambientado no Cerco de Jerusalém e Orlando Bloom interpreta Balião de Ibelin. Durante a cena que transcorre no porto de Messina, veem-se muitas bandeiras heráldicas, inclusive a real de Castela e Leão. Embora a cena tenha ficado bonita, em 1187 não havia armas compostas de Castela e Leão, porque o célebre esquartelado foi criado em 1230. Ainda que houvesse, os príncipes cristãos espanhóis não participavam das cruzadas na Terra Santa porque já lutavam as suas próprias contra o domínio muçulmano na península.

Ora, se hoje em dia, mesmo dispondo de recursos para evitar gritantes anacronismos, os produtores dessas estórias tomam certas liberdades para melhor as adaptar ao imaginário do público, muito mais naturalmente fazia-o o autor baixo-medieval ao transformar personagens históricas e literárias de tempos longínquos em perfeitos cavaleiros sob o ideal da época. Tendo, pois, sido cavaleiros perfeitos, era evidente para aquele público que deviam ter possuído brasões. Efetivamente, nos códices em que os tratados de armaria foram copiados não é incomum a reprodução de armoriais e nestes, a inserção de armas imaginárias. O próprio códice BM 3711, cuja cópia estou editando e traduzindo, é concluído por um armorial dos cavaleiros da Távola Redonda. O códice Français 18651, conservado na Bibliothèque nationale de France, contém um armorial geral precedido de dois tratados de armaria, o primeiro uma cópia do Prinsault. No primeiro fólio desse armorial veem-se os brasões seguintes:

Les armes des Trois Rois : Gaspar, Melchior, Balthazar ; un empereur de Constantinoble ; les armes du grand maistre de Rhodes ; les armes d'un empereur de Grèce ; les armes des Neuf Preux : Hector de Troie, le roi Alixandre, Julius César, Josué, le roi David, Judas Maccabeüs, roi Arthus, Charlemagne, Goudefroy de Billon ; Burtrand du Clasquin. (4)

Os Neuf Preux, denominados Nove da Fama em português, condensam a projeção da cavalaria no passado, ao tempo que evidenciam as fontes da erudição e da literatura popular baixo-medievais, sem grande rigor quanto à diferença entre história e ficção: a Antiguidade (os três heróis pagãos: Heitor, Alexandre o Grande e Júlio César), a Bíblia (os três heróis judeus: Josué, Davi e Judas Macabeu) e a alta Idade Média (os três heróis cristãos: Artur, Carlos Magno e Godofredo de Bulhão).

Enfim, a mitificação das origens da heráldica não servia apenas a um projeto de poder, arquitetado pelos arautos, mas também tinha fácil entendimento e convencimento, porque se enquadrava bem na visão de mundo dominante então.

Notas:
(1) As armas que estão iluminadas nesses dois fólios são: Galaad, Tristan de Léonois, le roi Bandemagus de Gorre, Hector des Mares, Brunor le Noir, Lancelot du Lac, Gauvain d'Orcanie, le roi Rions, Bliobléris de Gannes, Agloval de Galles, Perceval de Galles, Lionel de Gannes. Ao contrário do que sugerem as péssimas dublagens brasileiras de produções audiovisuais anglófonas, os nomes das personagens arturianas não só podem ser aportuguesados, mas alguns têm mesmo versões na nossa língua, graças às traduções medievais, como Galaaz, Tristão ou Galvão.
(2) "Tal se depreende do que o divino Júlio César, quando se encontrava junto do Rubicão, na Romanha, disse a todos os seus homens ou seja ao seu exército. Àqueles que de boa e plena vontade não quisessem ficar e avançar consigo para os grandes empreendimentos, lutas e operações que planeava e às quais esperava entregar-se, dizia que se afastassem de si, e deixassem aos outros liberdade para combaterem sem estorvos. Por outro lado, àqueles do seu exército que de coração sincero e constante quisessem ficar e avançar consigo dava uma ordem segundo a qual mandava que quem quer que fosse dos homens do seu exército ostentasse insígnias tais que de forma alguma se assemelhassem umas às outras. Se estas insígnias individuais se diferenciassem plenamente umas das outras também os peitos denodados e valorosos e os atos de valentia e lealdade acabariam por se demarcar dos corações cobardes e mesquinhos e dos feitos menos insignes. Foi então publicamente ordenado que todo aquele que pertencesse a esse exército mandasse escrever, à maneira de letreiro, uma divisa ou insígnias que fossem diferenciadas." (tradução do editor; falei um pouco sobre essa obra na postagem de 14/03)
(3) "São apenas três as matérias para algum homem vivente: / de França, de Bretanha e de Roma, a grande; / dessas três matérias, não há nenhuma semelhante. / Os contos de Bretanha são tão leves e agradáveis / e os de Roma, sábios e de significado instrutivo, / os de França são verdadeiros e a cada dia provados." (tradução minha)
(4)  "As armas dos Três Reis: Gaspar, Melquior, Baltasar; um imperador de Constantinopla; as armas do grão-mestre de Rodes; as armas de um imperador da Grécia; as armas dos Nove da Fama: Heitor de Troia, o rei Alexandre, Júlio César, Josué, o rei Davi, Judas Macabeu, rei Artur, Carlos Magno, Godofredo de Bulhão, Bertrand du Guesclin."

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