19/04/21

PROPOSTA DE BRASÃO PARA DOM ANTÔNIO CARLOS CRUZ SANTOS

Não poucos bispos adotaram emblemas de qualidade heráldica dubitável, mas aplicando uma crítica construtiva, sempre se pode fazer uma boa proposta.

Na postagem anterior, dei os brasões de cinco bispos de Caicó, do segundo ao sexto. As armas do primeiro abordara na postagem de 15/04 e sobre o emblema do sétimo e atual vou escrever na presente. Digo emblema porque, infelizmente, não é razoável considerá-lo um brasão. Mas, como o prezado leitor já sabe, prefiro a crítica construtiva à destrutiva, então além de arguir por que esse emblema é inaceitável do ponto de vista heráldico, farei uma proposta de brasão novo para esse bispo.

Dom Antônio Carlos Cruz Santos nasceu em 1961 em São Gonçalo (RJ). Professou os seus votos e ingressou na Sociedade dos Missionários do Sagrado Coração de Jesus em 1988. Foi ordenado presbítero em 1992. Foi nomeado sétimo bispo diocesano de Caicó e ordenado em 2014. Como ovelha sua, permito-me registrar que guardo especial apreço pelo seu pastoreio. Por isto mesmo, o que vou tecer a seguir tem caráter estritamente técnico.

O de Dom Antônio Carlos é um caso típico daquilo que chamo de "insignoide": parece um brasão, porque contém um escudo, mas não o é, porque não é brasonável. Se não, vejamos:

Emblema de Dom Antônio Carlos Cruz Santos, bispo de Caicó (imagem disponível no blog de Robson Pires).
Emblema de Dom Antônio Carlos Cruz Santos, bispo de Caicó (imagem disponível no blog de Robson Pires).

Para começar, o número de figuras é incontornavelmente excessivo: 1. um sol; 2. uma estrela; 3. uma pegada; 4. um ramo de lírio; 5. um cacto; 6. uma sandália; 7. a silhueta dos morros do Pão de Açúcar e da Urca com o bondinho (no Rio de Janeiro); 8. uma embarcação à vela navegando num corpo d'água. Apesar disso, um excesso de figuras não é, por si, algo que ponha a perder um brasão. O problema é que esse emblema deixa ver que o seu criador não entendia nada de heráldica, já que ignorou completamente esse código ao ordenar essas figuras. Com efeito, não observou:

  • a regra de simplicidade: além do excesso de figuras, incluíram-se elementos supérfluos, como o bondinho e o barco;
  • nem a de estilização: a heráldica não veda silhuetas, tanto que as denomina sombras, mas além de raras, nesse caso trata-se de uma paisagem específica;
  • nem a de proporção: a pegada e a sandália ficaram minúsculas em comparação com o ramo de lírio e o cacto, também a destra ficou quase toda preenchida em comparação à sinistra, onde se veem amplos espaços vazios;
  • nem a de iluminura: o sol e a estrela de ouro sobre o campo de prata; qual é o esmalte da sandália? De sua cor? Qual é a cor natural de uma sandália?

O autor não se ateve sequer às normas da heráldica eclesiástica, observáveis em qualquer brasão episcopal: em vez de sobrepor o escudo à cruz, sobrepôs esta àquele, uma cruz de forma muito pouco convencional. Duvida-se, então, se faz parte do escudo ou lhe serve de ornamento externo. Se se verifica o segundo, tal como aparenta, segue-se que as oito figuras estão soltas no escudo. Como se brasonariam, por exemplo, as situações do sol e da estrela? "Em chefe um pouco acima" e "um pouco abaixo"?

Com efeito, quando a adoção desse emblema aconteceu, foi noticiada, aparentemente em primeira mão, pelo blog de Robson Pires. Na notícia, aponta-se o significado de cada figura:

  • o sol: simboliza Jesus Cristo;
  • a estrela: simboliza a Virgem Maria e refere ao apelido de Dom Antônio Carlos, Maristelo (de Maris Stella 'Estrela do Mar', um título mariano);
  • a pegada: simboliza a migração de seus pais, que saíram de Alagoas para ir viver no Rio de Janeiro;
  • o ramo de lírio: simboliza Santo Antônio, em cuja honra recebeu o seu nome de batismo;
  • o cacto: simboliza o sertão nordestino, onde essa planta resiste tal como a fé, a esperança e o amor;
  • a sandália: simboliza a profissão missionária;
  • os morros do Pão de Açúcar e da Urca: simbolizam a província do Rio de Janeiro dos Missionários do Coração de Jesus;
  • o corpo d'água: simboliza o rio São Francisco, às margens do qual fica Penedo, terra natal de seus pais, também o Rio de Janeiro, onde nasceu, e o Rio Grande do Norte, para onde veio.

Nesse texto, a cruz é descrita como integrante do escudo, mas, como ponderei, é questionável.

Claramente, Dom Antônio Carlos cometeu um erro corriqueiro para quem toma um brasão, mas desconhece o código heráldico nem dispõe de assessoramento adequado: a intenção de representar muitas coisas. Eu mesmo o cometi quando comecei a me interessar em assumir armas pessoais, até me aprofundar mais na matéria (vide a postagem de 03/01). De fato, esse erro não ocorre por mera ignorância, mas por um senso comum em relação ao que seja um brasão: na maior parte das concessões, os oficiais de armas portugueses e brasileiros cingiam-se a ordenar esquarteladuras das armas às quais o sujeito pretensamente tinha direito pela sua linhagem, mais com base na homofonia dos sobrenomes do que em provas genealógicas (vide a postagem de 13/01). Isso produzia frequentemente composições complexas, que nos transmitiram a ideia de que um brasão deve ostentar uma exuberância de elementos.

A simplicidade é tão essencial na armaria que, como disse em propostas anteriores, um emblema pode não ter nada de heráldico, mas se o seu conceito for singelo, será fácil convertê-lo em boas armas. Assim, depois de vários esboços, cheguei a uma proposta de brasão para Dom Antônio Carlos que julgo satisfatória. Digo que a esbocei várias vezes porque procurei preservar o máximo do conceito original.

Para começar, convinha distinguir a cruz enquanto peça e enquanto insígnia episcopal. A insígnia de dignidade vai para trás do escudo, a peça fica sobre o campo, firmada nos seus bordos. De que esmalte iluminá-la? Se o campo é de metal (prata), logo a peça principal deve ser iluminada de cor. Escolhi o vermelho por ser icônico do Sagrado Coração de Jesus.

Depois, a gestão das figuras. Para solver os defeitos de proporção, ordenei-as em seis unidades, mas ainda assim, como cantonar uma cruz por seis elementos? Alcei a travessa dela para abrir mais espaço no terceiro e quarto cantões, de modo a situar duas unidades em cada um. Inevitável foi adequar ou mesmo modificar as figuras originais:

  • o sol: desenhei uma sombra de sol, que é a forma heráldica do sol sem o rosto humano; o padrão dessa forma tem dezesseis raios, metade retilíneos metade curvilíneos;
  • a estrela: desenhei uma de oito raios porque a sua forma circular combina com o sol;
  • a pegada e a sandália: pus uma ao lado da outra, com o eixo mais longo na vertical, o que, de resto, é a posição ordinária de figura comprida, mas inverti a pegada, como se fosse de um pé direito que desce e a sandália, de um que sobe;
  • o cacto: as duas plantas punham dificuldades intransponíveis, por ocuparem espaço demais, especialmente o cacto, que tem uma forma mais robusta e inflexível e resistia a cair bem no conjunto com a pegada e a sandália; depois de muito matutar, atinei para o fato de que do ramo de lírio o que conta é a flor, então por que não uma flor de cacto? Ora, o mandacaru possui uma flor belíssima, cheia de referências na cultura nordestina, precisamente como símbolo da resistência ante os rigores da terra;
  • os morros e o corpo d'água: desenhei simplesmente dois montes, o da sinistra mais baixo, firmados num pé ondado de prata e azul, de modo que se obtém o efeito de semelhança aos morros do Pão de Açúcar e da Urca sem infringir a regra de estilização;
  • ramo de lírio: depois de superar a dificuldade com o cacto, foi fácil selecionar a flor do lírio e completar o conjunto de quatro figuras circulares cantonando a cruz.

Quanto aos esmaltes, como tudo carrega o campo, que é de metal, tudo deveria ser iluminado de cor, exceto o pé d'água, em que se firmam os montes e alterna metal e cor. No caso do sol, o vermelho não só é a sua cor habitual quando não iluminado de ouro, mas se representa Cristo, ainda mais apropriado, por ser a cor litúrgica da Paixão; no da estrela, o azul, por ser a cor mariana por excelência; nos da pegada e da sandália e dos montes, o negro e o verde, por serem as cores heráldicas mais próximas das naturais desses elementos. Já as duas flores, são itens difíceis: a do mandacaru é branca e lírios há de várias cores, mas os icônicos de Santo Antônio são também e sempre brancos. O problema é que a cor branca em heráldica corresponde à prata, mas sendo o campo precisamente desse metal, iluminar essas flores do mesmo descumpriria a regra de iluminura. Além disso, lançar mão de alguma cor as deixaria estranhas, de modo que, mesmo a contragosto, cedi ao recurso de iluminá-las ao natural; na prática, pintando as pétalas de branco.

Proposta de brasão para Dom Antônio Carlos Cruz Santos, sétimo bispo de Caicó: de prata com uma cruz alçada de vermelho, cantonada no primeiro de uma sombra de sol do mesmo; no segundo, de uma estrela de oito raios de azul; no terceiro, de uma pegada invertida de negro e uma alparca do mesmo, encimadas por uma flor de mandacaru de sua cor; no quarto, de dois montes de verde, o da sinistra mais baixo, firmados num pé ondado de prata e azul, e encimados por uma açucena de sua cor; insígnias de bispo diocesano; divisa: Videbunt in quem transfixerunt.
Proposta de brasão para Dom Antônio Carlos Cruz Santos, sétimo bispo de Caicó: de prata com uma cruz alçada de vermelho, cantonada no primeiro de uma sombra de sol do mesmo; no segundo, de uma estrela de oito raios de azul; no terceiro, de uma pegada invertida de negro e uma alparca do mesmo, encimadas por uma flor de mandacaru de sua cor; no quarto, de dois montes de verde, o da sinistra mais baixo, firmados num pé ondado de prata e azul, e encimados por uma açucena de sua cor; insígnias de bispo; divisa: Videbunt in quem transfixerunt.

De todas estas operações resulta, pois, a proposta seguinte: de prata com uma cruz alçada de vermelho, cantonada no primeiro de uma sombra de sol do mesmo; no segundo, de uma estrela de oito raios de azul; no terceiro, de uma pegada invertida de negro e uma alparca do mesmo, encimadas por uma flor de mandacaru de sua cor; no quarto, de dois montes de verde, o da sinistra mais baixo, firmados num pé ondado de prata e azul, e encimados por uma açucena de sua cor; insígnias de bispo; divisa: Videbunt in quem transfixerunt.

No seu emblema, Dom Antônio Carlos traz a divisa em português: Olharão para Aquele que transpassaram, mas, assim como na reprodução das armas de Dom Frei Manoel Delson Pedreira da Cruz, que estão inclusas na postagem anterior, não resisto ao comichão do latinismo. Foi tirada do Evangelho segundo São João (19, 37): "et iterum alia Scriptura dicit: 'Videbunt in quem transfixerunt'" ("E um outro texto da Escritura diz: 'Olharão para aquele que transpassaram'"). Portanto, refere à transfixão de Cristo, tal como as armas de Dom José Adelino Dantas, também inclusas na mesma postagem, mas aqui claramente a escolha foi motivada pela devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Para acabar, Dom Antônio Carlos usa o seu emblema há quase sete anos. Conviria trocá-lo? Penso que poderia. Se Dom Manoel Delson o fez para aperfeiçoar um brasão que já era aceitável, como mostrei na citada postagem, com muito mais razão poderia fazê-lo o bispo de Caicó para converter um "insignoide" num brasão correto. O mesmo vale para tantos outros antístites que, igualmente por falta de conhecimento e de assessoria especializada, adotaram emblemas que imitam brasões, mas apresentam uma qualidade heráldica que varia de pouca a nula.

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