13/01/21

SE É PERMITIDO TRAZER AS ARMAS DE OUTREM

É muito singular da heráldica gentilícia portuguesa o alto grau de centralização estatal, principalmente desde Dom Manuel I.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(5) Sed quæro, unus portat certa arma vel insignia, alius vult portare eadem, an liceat vel prohiberi possit? Et videtur quod liceat, quia potest quis assumere nomen alterius (D, 36, 1, 65, 10 [1]; D, 31, 76, 5 [2]). Et possunt esse plures ejusdem nominis (D, 26, 2, 30 [3]; D, 31, 1, 8, 3 [4]). Ergo potest quis assumere arma alterius, et plures eadem insignia portare vel rebus imponere, cum utrumque fiat ad recognoscendum. E contra videtur D, 50, 17, 11 [5]. Si enim primo signum est nostrum, sine facto nostro a nobis auferri non potest. Sed hoc non bene facit; loquitur enim in his quibus plures in solidum uti non possunt, alias secus, ut in usu plateæ et balnei et similibus (D, 13, 6, 5, 15 [6]). Præterea signum quod portat unus et signum quod portat alius non est unum et idem, immo sunt diversa, habentia omnimodam similitudinem. Ad decisionem ergo prædictorum præmitto: primo, quod ille cujus signum alii portant potest prohibere seu petere ut prohibeatur, si ille cujus est signum ex hoc injuriatur, quia forte illud portant cum vituperio vel vituperiose tractant (C, 1, 9, 11 [7]; C, 1, 4, 4 [8]; X, 5, 31, 14 [9]). Secundo, de hoc potest conqueri quilibet tertius, qui læditur, et ad ejus petitionem prohiberi ne portent (C, 2, 14, 1 [10]; N, 17, 16 [11]). Tertio, judex ex officio suo, si videt hoc ad scandalum posse esse et deceptionem subjectorum, potest prohibere (C, 7, 6, 1, 5 [12], ubi circa eos qui pileati antecedunt lex aliquod statuit; ne populus decipiatur, expressius X, 5, 6, 15 [13]).

(5) Mas pergunto se é permitido ou pode proibir-se: um traz determinadas armas ou insígnias e outro quer trazer as mesmas. Vê-se que é permitido, porque alguém pode assumir o nome de outrem (D, 36, 1, 65, 10 [1]; D, 31, 76, 5 [2]) e pode haver vários do mesmo nome (D, 26, 2, 30 [3]; D, 31, 1, 8, 3 [4]). Portanto, alguém pode assumir armas de outrem e vários podem trazer as mesmas insígnias ou impô-las em coisas quando se fizerem uma coisa e a outra para se reconhecerem. Contrariamente se vê em D, 50, 17, 11 [5]: com efeito, se é primeiro nosso, não se pode tirar de nós sem o nosso consentimento. Mas isso não se aplica; com efeito, fala-se daquilo que vários não podem usar por inteiro de outra maneira em outro lugar, como do uso de uma praça, banho e semelhantes (D, 13, 6, 5, 15 [6]). Ademais, o sinal que um e outro trazem não são um e o mesmo; melhor dizendo, são diversos que têm em tudo semelhança. Para atalhar, pois, o já dito, adianto, em primeiro lugar, que quem tem um sinal pode proibir a outro que o traga ou pedir que se proíba, se aquele que tem o sinal for injuriado por isso, acaso porque o trazem com vitupério ou tratam vituperiosamente (C, 1, 9, 11 [7]; C, 1, 4, 4 [8]; X, 5, 31, 14 [9]). Em segundo lugar, disso pode queixar-se um terceiro qualquer que é lesado e, por petição do mesmo, proibir-se que tragam (C, 6, 41, 1 [10]; N, 17, 16 [11]). Em terceiro lugar, se na sua função o juiz vê que isso pode servir ao escândalo e ao engano dos sujeitos, pode proibi-lo (C, 7, 6, 5 [12], onde a lei estatui acerca daqueles que andam usando píleo; mais explicitamente para o povo não ser enganado: X, 5, 6, 15 [13]).

Notas:
[1] D, 36, 1, 65, 10: Si vero nominis ferendi conditio est, quam prætor exigit, recte quidem facturus videtur, si eam expleverit: nihil enim male est honesti hominis nomen assumere (Mas se há a condição de levar o nome, a qual o pretor exige, vê-se que certamente fará bem se a tiver cumprido. Com efeito, não é nada mau assumir o nome de um homem honesto).
[2] D, 31, 76, 5: Pater cum filia pro semisse herede instituta sic testamento locutus fuerat: "Peto, cum morieris, licet alios quoque filios susceperis, Sempronio nepoti meo plus tribuas in honorem nominis mei" (Um pai, tendo constituído sua filha como co-herdeira, falara assim no testamento: "Quando morreres, ainda que tenhas tido outros filhos, peço que atribuas mais a meu neto Semprônio, para honra do meu nome").
[3] D, 26, 2, 30: Duo sunt Titii, pater et filius: datus est tutor Titius nec apparet, de quo sensit testator: quæro, quid sit juris (Há dois Tícios, pai e filho; Tício foi designado tutor e não está claro em qual o testador pensou. Pergunto: o que é de direito?).
[4] D, 31, 8, 3: Si inter duos dubitetur de eodem legato, cui potius dari oportet, ut puta si Titio relictum est et duo ejusdem nominis amici testatoris veniant et legatum petant et heres solvere paratus sit, deinde ambo defendere heredem parati sint, eligere debere heredem, cui solvat, ut ab eo defendatur (Se entre dois se duvidar sobre a mesma herança, a qual é preferível dar? Por exemplo: se foi deixada a Tício, dois do mesmo nome, amigos do testador, vierem e pedirem a herança, o herdeiro dispôs-se a pagar e em seguida ambos se dispuseram a defender o herdeiro, o herdeiro deve escolher a qual pagar, para ser defendido por ele).
[5] D, 50, 17, 11: Id quod nostrum est sine facto nostro ad alium transferri non potest (O que é nosso não pode ser transferido para outro sem o nosso consentimento).
[6] D, 13, 6, 5, 15: Si duobus vehiculum commodatum sit vel locatum simul, Celsus filius scripsit libro sexto Digestorum quæri posse, utrum unusquisque eorum in solidum an pro parte teneatur. Et ait duorum quidem in solidum dominium vel possessionem esse non posse: nec quemquam partis corporis dominum esse, sed totius corporis pro indiviso pro parte dominium habere. Usum autem balinei quidem vel porticus vel campi uniuscujusque in solidum esse (Se um veículo for emprestado a dois ou alugado ao mesmo tempo, Celso Filho escreveu no sexto livro do Digesto que se pode perguntar se cada um deles está sujeito por inteiro ou pela sua parte. Diz que certamente a propriedade ou posse não pode ser de dois por inteiro e que um não é o dono de uma parte do conjunto, mas tem a propriedade de todo o conjunto indivisamente pela sua parte. Certamente o uso de um banho, de uma galeria ou de um campo é de cada um por inteiro).
[7] C, 1, 9, 11: Judæos quodam festivitatis suæ solemni Aman ad pœnæ quondam recordationem incendere et sanctæ crucis assimulatam speciem in contemptu Christianæ fidei sacrilega mente exurere provinciarum rectores prohibeant, ne locis suis fidei nostræ signum immisceant, sed ritus suos citra contemptum Christianæ legis retineant, amissuri sine dubio permissa hactenus, nisi ab illicitis temperaverint (Proíbam os governadores das províncias que os judeus, em certa solenidade de uma festividade sua para a recordação do castigo de Hamã, em certo momento incendeiem uma imagem similar à santa cruz e sacrilegamente a destruam, em menosprezo da fé cristã, nem incorporem o sinal da nossa fé nos seus lugares, mas retenham os seus ritos sem o menosprezo da lei cristã; sem dúvida, perderão o permitido até aqui, a não ser que se tenham abstido de ilícitos).
[8] C, 1, 4, 4: Mimæ et quæ ludibrio corporis sui quæstum faciunt publice habitu earum virginum quæ Deo dicatæ sunt non utantur (Que as comediantes e aquelas que tiram ganho por escárnio do seu corpo não usem publicamente o hábito das virgens que se dedicaram a Deus).
[9] X, 5, 31, 14: Privati homines regulariter nequeunt constituere collegium et habere signa collegii, nisi eis aliter concedatur. Dilecta in Christo filia abbatissa Jotrensis nobis insinuare curavit, quod, cum presbyteri et clerici Jotrensis ecclesiæ Meldensis diœcesis non consueverint habere sigillum, nec sint unum corpus ita, quod capitulum appellaretur, nihilominus tamen contra voluntatem ipsius abbatissæ, quæ ipsorum caput est et patrona, sigillum habere contendunt (...). Discretioni vestræ mandamus, quatenus, inquisita super his diligentius veritate, si vobis constiterit ita esse dictis presbyteris et clericis auctoritate nostra inhibeatis expresse, ne præsumant vel de novo fabricare sigillum, vel uti eo, si forte noviter fuerit fabricatum (As pessoas privadas não podem constituir regularmente um colégio nem ter os sinais de um colégio, a não ser que se lhes conceda de outro modo. A abadessa de Jouarre, dileta filha em Cristo, cuidou em nos comunicar que, como os presbíteros e clérigos da igreja de Jouarre, da diocese de Meaux, não costumavam ter um selo e assim não são um só corpo, que seria chamado cabido, nada menos contra a vontade da própria abadessa, pretendem ter um selo (...). Confiamos ao vosso discernimento até em que medida, inquirida a verdade sobre estes da maneira mais diligente, se vos tiver parecido certo que assim seja, inibais com a nossa autoridade os ditos presbíteros e clérigos, expressamente para que não ousem fabricar de novo um selo ou usar de um, se acaso tiver sido novamente fabricado).
[10] C, 2, 14, 1: At ne in fraudem legum adversariorumque terrorem his nominibus abutantur et titulis, qui hujusmodi dolo scientes conivent, afficiendi sunt publicæ sententiæ nota (A fim de não abusarem desses nomes e títulos para fraude das leis e o terror dos adversários, deve-se gravar com a marca da sentença pública quem, ciente, transigir com um dolo dessa espécie).
[11] N, 17, 16: Mox autem ut ingredieris provinciam, convocatis omnibus in metropoli constitutis (dicimus autem Deo amabili episcopo et venerabili clero et nobilibus civitatis), insinuabis hæc nostra sacra præcepta sub gestorum insinuatione, et propones exemplar eorum publice non solum in metropoli, sed et in aliis provinciæ civitatibus, transmittens ea per officiales tuos sine damno, ut omnes cognoscant, in quibus suscepisti cingulum, et videant, si hoc conservas et nostro dignum temet ipsum ostendis judicio (Assim que entrares na província, convocados todos os constituídos na metrópole (referimos ao bispo, amado por Deus, o venerável clero e os nobres da cidade), comunicarás estas sagradas resoluções nossas com a comunicação das providências, e exporás uma cópia destas publicamente, não só na metrópole, mas também nas outras cidades da província, transmitindo-as pelos teus oficiais sem custo, para que conheçam todos como tomaste o cíngulo e vejam se o observas e te mostras digno do nosso julgamento).
[12] C, 7, 6, 5: Sed et qui domini funus pileati antecedunt vel in ipso lectulo stantes cadaver ventilare videntur, si hoc ex voluntate fiat vel testatoris vel heredis, fiant illico cives Romani. Et ne quis vana liberalitate jactare se concedatur, ut populus quidem eum quasi humanum respiciat multos pileatos in funus procedentes aspiciens, omnibus autem deceptis maneant illi in pristina servitute publico testimonio defraudati: fiant itaque et hi cives Romani, jure tamen patronatus patronis integro servando (Mas também alguns andam na frente do funeral do dono usando píleo ou veem-se abanando o cadáver no leito. Se isso se fizer por vontade do testador ou do herdeiro, tornem-se imediatamente cidadãos romanos. E para que ninguém se permita gabar de vã liberalidade, certamente para que o povo se volte a isso como se fosse gentil, olhando muitos com píleo caminhando para funeral, mas enganados todos, ficam aqueles frustrados na antiga servidão com o público testemunho, tornem-se também estes cidadãos romanos, mas conservando integramente por direito o patronato do patrão).
[13] X, 5, 6, 15: In nonnullis provinciis a Christianis Judæos seu Sarracenos habitus distinguit diversitas; sed in quibusdam sic quædam inolevit confusio, ut nulla differentia discernantur. Unde contingit interdum, quod per errorem Christiani Judæorum seu Sarracenorum, et Judæi seu Sarraceni Christianorum mulieribus commiscentur. Ne igitur tam damnatæ commixtionis excessus per velamen erroris hujusmodi ulterioris excusationis possint habere diffugium: statuimus, ut tales utriusque sexus in omni Christianorum provincia et omni tempore qualitate habitus publice ab aliis populis distinguantur, cum etiam per Moysen hoc ipsum legatur eis injunctum (Em algumas províncias, a diversidade de vestimenta distingue os judeus ou sarracenos dos cristãos, mas em outras cresceu de tal modo certa confusão que não se discernem por nenhuma diferença. Daí às vezes ocorra que, por erro, os cristãos se misturem com as mulheres dos judeus ou dos sarracenos e os judeus ou sarracenos, com as dos cristãos. Por conseguinte, para que os excessos de tão danosa mistura não possam ter a dispersão de uma ulterior desculpa pelo encobrimento de um erro dessa espécie, estabelecemos que em toda a província de cristãos e em todo o tempo, tais de um sexo e do outro se distingam publicamente de outros povos pela qualidade da vestimenta; como se lê, também isto lhes foi imposto pelo próprio Moisés).

Comentário:

Quando o rei Dom Afonso V instituiu que o rei de armas Portugal fosse o oficial principal de armas, como mostrei na postagem anterior, consequentemente definiu uma espécie de jurisdição heráldica, ou seja, no território da Coroa portuguesa ele era o operador desse sistema semiótico, digamos assim. Isso ocorreu por toda a Europa ocidental, mas no pequeno reino do extremo ocidente desdobrou-se de forma singular.

Primeiro, tornara-se moda que qualquer príncipe ou senhor se servisse de um ou mais arautos. Estes, nesse momento, ainda eram ambulantes de baixa extração e ocupavam-se de vários encargos além da matéria heráldica, todos, não obstante, concernentes à honra cavalheiresca. Como resume Werner Paravicini em artigo de 2006:

Leurs activités ont déjà été observées : elles peuvent se résumer en connaissance et reconnaissance des familles et des personnes et de leurs armoiries, mots et devises (dont on ne sait pas s'ils ne les ont pas créés), des rangs, des rituels et des cérémonies ; ils agissent parfois en tant que messagers et diplomates ; ils sont chargés de crier haut et de coucher par écrit les bienfaits dignes de louange et les méfaits méritant le blâme. Mais, sauf de rares exceptions, ils ne sont ni simples messagers ou diplomates, ni maitres de cérémonies, ni juges de tournois ou de gages de bataille. Alors quelle est l'essence de leur activité, leur raison d'être ? Il est évident qu'il s'agit chaque fois d'un aspect de l'honneur et de la représentation honorifique de la personne du prince ou du noble. (1)

Depois os arautos souberam promover-se junto aos soberanos e fazer carreira nas suas cortes, a ponto de se terem tornado os especialistas em brasões e mais tarde terem dado nome à própria arte: heráldica. Assim, o rei de armas Toison d'Or era o oficial principal de armas dos estados da Borgonha e o Montjoie presidia ao colégio dos arautos franceses, como ainda hoje o Garter preside ao College of Arms, cuja jurisdição se estende à Inglaterra, Gales, Irlanda do Norte e demais reinos da Comunidade britânica, exceto o Canadá (2), e o Lord Lyon tem a sua Court, com jurisdição sobre a Escócia.

O que distingue Portugal é o grau de intervenção estatal: em 1512, Dom Manuel I promulgou um regimento em que não só constituiu a corporação dos oficiais de armas, mas também estatuiu o provimento dos ofícios, o seu cerimonial, obrigações, privilégios e remunerações, até mesmo os modelos das cartas de brasão. Não parou aí: as disposições relativas ao uso do brasão foram incorporadas no código legal que o mesmo rei promulgou em 1521, conhecidas como Ordenações manuelinas (liv. II, t. XXXVII):

Esguardando nós quanto com razão é e deve seer estimada a nobreza e fidalguia das pessoas e quanto os homens fazem e são obrigados fazer por a alcançar e sustentar, e assi como as armas dos nobres e fidalgos de nossos Reinos devem andar em toda certidão e merecimentos, e porque cada ũu saiba o modo e maneira em que pode e deve trazer as armas que por dereito lhe pertencem, o declaramos por esta ordenação.
1.º item. O chefe da linhagem será obrigado trazer as armas dereitas, sem diferença nem mestura doutras ninhũas armas. E sendo chefe de mais de ũa linhagem, será obrigado trazer as armas de todas aquelas de que for chefe dereitas e sem mestura em seus quartéis, segundo por Portugal Rei d'Armas lhe será ordenado.
2.º item. Os outros irmãos, e assi todos os outros da linhagem, as hão de trazer com a deferença ordenada no nobre ofício da armaria e assi poderão trazer até quatro armas, se quiserem, daqueles de quem descenderem, esquarteladas, e mais, não. E se quiserem tomar somente estremas as armas da parte de suas mães, podê-lo-ão fazer.
3.º item. Os bastardos hão de trazer as armas com sua quebra de bastardia, segundo ordenança d'armaria.
4.º item. Nom poderá pessoa algũa trazer armas do Reino dereitas, posto que sejam mesturadas com outras armas, mas hão de seer trazidas no quartel em que as trouxerem, que há de seer o dereito, com deferença, assi como a cada ũu pertence as trazer, convém a saber, as que vêm por bastardia com a quebra da bastardia e as outras com a deferença ordenada d'armaria, porque pois o Príncipe herdeiro as nom pode trazer sem deferença, muito menos ninhũa pessoa.
5.º E porque isto assi inteiramente se guarde, como é muita razão que seja, ordenamos e mandamos que qualquer pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, que novamente tomar armas que de dereito lhe nom pertençam, perca sua fazenda, a metade pera quem o acusar e a outra metade pera os cativos. E mais, perderá toda sua honra e privilégio de fidalguia e linhagem e pessoa que tever e seja havido por plebeu, assi nas penas como tributos e peitas, sem nunca poder gozar de ninhũu privilégio nem honra que por razão de sua linhagem ou pessoa ou de dereito lhe pertencesse.
6.º E quem quer que tever armas suas e as leixar em todo, tomando assi novamente outras que lhe nom pertençam, haverá as mesmas penas na maneira que dito é e pelo mesmo caso perca as suas armas próprias, sem as mais poder teer nem delas usar.
7.º E qualquer que acrecentar nas suas armas algũa cousa que por dereito nelas nom possa acrecentar ou delas tirar algũa cousa que por dereito nom podia tirar, encorrerá em pena de dous anos de degredo pera cada ũu dos lugares d'além. E mais, pagará cinquenta cruzados d'ouro pera o rei d'armas ou outro oficial d'armas que o acusar e nom usará d'outras armas, salvo daquelas que próprias e direitamente forem suas.
8.º E além das penas sobreditas em cada ũu dos ditos casos, mandamos que aqueles que de novo tomarem armas nom lhe pertencendo ou acrecentarem ou tirarem nas que teverem, como dito é, hajam mais por pena: que em quaesquer demandas que trouxerem, ora nelas sejam autores ou réus ou assistentes ou opoentes, posto que vencidos ou vencedores sejam no principal, sejam sempre condenados nas custas pera a parte contraira em tresdobro, assi nas do processo como pessoaes. E qualquer parte que contra eles litigar, poderá opoer no feito, despois da sentença dada, cada ũa das sobreditas cousas, e lhe será a dita parte condenada nas custas em tresdobro, provando cada ũa das sobreditas cousas, como dito é.
9.º item. Todas as sobreditas penas haverá o que tever tomadas as ditas armas novamente e as nom leixar ou aquele que as tever acrecentadas ou delas tever tirado e as nom tornar a poer, como de dereito lhe pertencem, da pubricação desta ordenação a três meses.

Esse texto contém duas sutilezas que, a meu ver, não têm sido observadas com a devida atenção na literatura acadêmica. Com efeito, lê-se frequentemente que em Portugal a capacidade heráldica se restringia à nobreza (3). Mas releia-se a ordenação transcrita e não se achará aí nenhuma disposição tão taxativa que permita concluir tal. O que se vedava muito claramente e sob pesadíssimas penas era a usurpação de armas alheias, bem como os acrescentamentos e supressões indevidas. Por outro lado, no preâmbulo da ordenação a pertença dos brasões aos nobres aparece tão natural e habitual que provavelmente não pareceu necessário legislar nesse sentido.

Assim, no mundo lusófono durante a Idade Moderna e até a queda da monarquia no Brasil e em Portugal não se aplicava o razoado por Bártolo nos parágrafos do seu tratado que publiquei na postagem anterior e nesta (4). Brasão era coisa de fidalgo, mais precisamente do fidalgo de cota de armas. Mas se há algo que a história prova é que a pretensão nobiliárquica de se distinguir pelo sangue se esgota, literalmente, cedo ou tarde. José Manuel Valle Porras, em artigo de 2018, demonstra o quão frequente chegou a ser a fraude heráldica na Espanha, na França e nos Países Baixos meridionais. Se não o era na Inglaterra, devia-se ao domínio estatal da armaria, similar ao que havia em Portugal. Mas daquele país o autor aduz mais de um caso em que o lesado pela usurpação das suas armas depositava suficiente confiança no estado para denunciar o malfeito. Por outro lado, no sistema luso-brasileiro ninguém precisava denunciar o que quer que fosse porque todos se beneficiavam da aparência de legalidade e regularidade sob a qual procedimentos inverossímeis se passavam.

Retomando o exemplo das armas dos Gamas, se somente o chefe de linhagem tinha o direito de as trazer direitas — e no caso das linhagens mais antigas mal se sabia quem seria esse chefe —, como se sustentava o sistema? Augusto Romano Sanches de Baena, visconde de Sanches de Baena, no seu Arquivo heráldico-genealógico (1872), dá notícia de uma carta de brasão passada a favor de Caetano Maria Lopes Gama, visconde de Maranguape e ocupante de altos cargos da administração pública brasileira durante a primeira metade do século XIX:

19. CAETANO MARIA LOPES GAMA, fidalgo-cavaleiro da Casa Imperial, membro ordinário do Conselho de Estado, senador do Império, ministro aposentado no Supremo Tribunal de Justiça, grande dignitário da Ordem da Rosa, oficial da Imperial do Cruzeiro, comendador da de Cristo, o qual tem ocupado por diferentes vezes o cargo de ministro e secretário de Estado em diversos ramos da administração pública, além do de presidente de província, natural e batizado na freguesia do Santíssimo Sacramento da cidade do Recife, na província de Pernambuco, filho legítimo do Doutor João Lopes Cardoso Machado, natural da cidade de Lisboa, e Dona Ana Bernarda do Nascimento Gama, natural e batizada naquela província; neto por parte paterna do Capitão-Mor José Lopes Cardoso, natural de Guimarães, e de Dona Águeda Maria de Sousa Machado, natural da vila de Soure, ambos do Reino de Portugal, e pela materna do Sargento-Mor Pedro Fernandes Gama e Dona Teresa Maria de Jesus, ambos naturais daquela mesma província; bisneto materno do Fidalgo-Cavaleiro Pedro Fernandes Gama e de sua mulher, Dona Maria dos Prazeres Neves; terceiro neto pelo dito lado do Fidalgo-Cavaleiro Manuel Fernandes Gama e de Dona Francisca Gomes, filha legítima do Coronel do Regimento de Linha da Cidade do Porto Bento Gomes; quarto neto por esta mesma parte do Fidalgo Aires da Silva Coutinho, morgado de Azurara, e de Dona Margarida da Gama, filha de Dom Vasco da Gama, terceiro marquês de Nisa.
Escudo esquartelado: no primeiro quartel as armas dos Gamas, a saber: quinze escaques de ouro e vermelho de três peças em faixa e cinco em pala, sendo as vermelhas acoticadas com suas faixas de prata, e no meio um escudo com as quinas do Reino de Portugal; no segundo quartel, as dos Lopes: em campo azul uma palmeira de ouro, um corvo pousante nela com asas estendidas; no terceiro quartel, as dos Cardosos: em campo vermelho dois cardos de verde floridos, com flor e raízes de prata, entre dois leões de ouro batalhantes, armados de vermelho; no quarto quartel, as dos Machados: em campo vermelho, cinco machados de prata, manicados de ouro, postos em aspa. Elmo de prata, guarnecido de ouro em relevos. Timbre: o dos Gamas, um naire da cintura para cima vestido ao modo da Índia, com o escudo das armas na mão.
Brasão passado em 26 de fevereiro de 1849. Registrado no Cartório da Nobreza, liv. VI, fl. 8.

Armas do visconde de Maranguape: esquartelado, o primeiro xadrezado de ouro e vermelho, de três peças em faixa e cinco em pala, as de vermelho carregadas de duas faixas de prata, e um escudete de Portugal antigo, posto no ponto de honra; o segundo de azul com uma palmeira de ouro e um corvo estendido de negro, pousado nela; o terceiro de vermelho com dois cardos de verde, floridos e arrancados de prata, um sobre o outro, entre dois leões batalhantes de ouro; o quarto de vermelho com cinco machados de prata, encabados de ouro.
Armas do visconde de Maranguape: esquartelado, o primeiro xadrezado de ouro e vermelho, de três peças em faixa e cinco em pala, as de vermelho carregadas de duas faixas de prata, e um escudete de Portugal antigo, posto no ponto de honra (Gama de Vasco da Gama); o segundo de azul com uma palmeira de ouro e um corvo estendido de negro, pousado nela (Lopes de João Lopes); o terceiro de vermelho com dois cardos de verde, floridos e arrancados de prata, um sobre o outro, entre dois leões batalhantes de ouro (Cardoso); o quarto de vermelho com cinco machados de prata, encabados de ouro (Machado).

Observe, caro leitor, que o primeiro quartel dessas armas vem do avô materno do visconde; o segundo e o terceiro, do avô paterno; o quarto, da avó paterna. Embora o varão precedesse a mulher, as armas dos Gamas de Vasco da Gama eram as mais nobres, porque o armígero era quarto neto de uma filha do chefe dessa linhagem. E quanto às armas dos Lopes, Cardosos e Machados, também teriam sido herdadas dos respectivos chefes (5)? Não se diz nem sou eu quem hei de duvidar, mas a heráldica gentilícia lusófona funcionava tal como ilustra esse caso: era uma combinatória de armas que, originariamente, identificavam certas linhagens, mas na prática eram usadas como sinais dos sobrenomes (apelidos no português europeu) dessas linhagens, ou melhor, de quaisquer sobrenomes iguais aos delas. Tal combinatória era, ainda, reforçada por um sistema de diferenças e quebras que marcava, teoricamente, a via de transmissão da nobreza e das armas.

Portanto, por que alguém que vivia dentro da jurisdição desse sistema se daria ao trabalho de usurpar um brasão alheio? As provas genealógicas eram testemunhais e ninguém dispunha de testemunhas que remontassem muito além de duas ou três gerações. Qualquer um que tivesse ascendido a um estilo de vida compatível com a nobreza, alegasse a fidalguia de um único avô ou avó e usasse de sobrenomes constantes do armorial oficial podia receber um brasão pessoal, novo na composição e "ancestral" nos componentes. Afinal, ninguém queria lidar com a pecha da recém-nobilitação.

Em suma, o sistema heráldico luso-brasileiro funcionou fabulosamente. É claro que nele mesmo estão as raízes de crenças populares equivocadas, como a de que famílias ou sobrenomes têm brasões ou a de que o esquartelado é quase um padrão. Mas seria injusto deixar de reconhecer que por séculos sustentou a fachada de exclusão a que se destinava, ao mesmo tempo que era relativamente acessível e, assim, se atualizava.

A ironia da história é que as repúblicas, ao desconhecerem os foros de nobreza, trouxeram de volta à lusofonia a heráldica primitiva: tanto eu como você, caro leitor e cidadão, podemos assumir um brasão próprio tal como Bártolo arrazoa.

Notas:
(1) "As suas atividades já foram observadas: podem resumir-se em conhecimento e reconhecimento das famílias e das pessoas e dos seus brasões, divisas e empresas (das quais não se sabe se as criaram), das categorias, dos rituais e das cerimônias; atuam às vezes como mensageiros e diplomatas; são encarregados de proclamar alto e de pôr por escrito as benfeitorias dignas de louvor e as malfeitorias que merecem repreensão. Mas, salvo raras exceções, não são nem simples mensageiros ou diplomatas, nem mestres de cerimônia, nem juízes de torneios ou de provas de armas. Então qual é a essência da sua atividade, a sua razão de ser? É evidente que se trata a cada vez de um aspecto da honra e da representação honorífica da pessoa do príncipe ou do nobre." (tradução minha)
(2) No Canadá, o órgão equivalente é a Canadian Heraldic Authority/Autorité héraldique du Canada e o seu oficial principal é o Chief Herald of Canada/Héraut d'armes du Canada.
(3) Denomina-se capacidade heráldica o direito de herdar um brasão ou a licitude de assumir um novo.
(4) As Ordenações filipinas (1603) conservaram no essencial a legislação heráldica manuelina: "Como os blasões das armas e apelidos que se dão àqueles que per honrosos feitos os ganharam sejam certos sinais e prova de suas nobreza e honra e dos que deles descendem, é justo que essas insígnias e apelidos andem em tanta certeza que suas famílias e nomes se não confundam com as dos outros que não tiverem iguais merecimentos. E que assi como eles per serviços feitos a seus reis ou repúblicas se assinalaram e aventajaram dos outros, assi sua preeminência e dignidade seja a todos notória. Polo que ordenamos que qualquer pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, que novamente tomar armas que de direito lhe não pertençam, perca sua fazenda, a metade para quem o acusar e a outra para os cativos. E mais, perderá toda sua honra e privilégio de fidalguia e linhagem e pessoa que tiver e seja havido por plebeu, assi nas penas como nos tributos e peitas, e sem nunca poder gozar de privilégio algum nem honra que por razão de sua linhagem ou pessoa ou de direito lhe pertença. 1. E o que tiver armas suas e as deixar em todo, tomando novamente outras que lhe não pertençam, haverá as mesmas penas e polo mesmo caso perca as suas armas próprias, sem as mais poder ter nem delas usar. 2. E quem acrescentar nas suas armas alguma cousa que per direito não possa nelas acrescentar ou delas tirar alguma cousa que per direito não podia tirar, incorrerá em pena de dous anos de degredo para África e pagará cinquenta cruzados para o Rei de Armas Portugal ou outro oficial de armas que o acusar, e não usará de outras armas, senão das que própria e direitamente forem suas. 3. E além das penas acima ditas em cada um dos ditos casos, queremos que os que de novo tomarem armas não lhes pertencendo ou acrescentarem ou tirarem as que tiverem, hajam mais por pena: que em quaisquer demandas que trouxerem, ora sejam autores, réus, assistentes ou opoentes, posto que no principal sejam vencidos ou vencedores, sejam sempre condenados nas custas para a parte contrária em tresdobro, assi nas do processo como pessoais. E a parte que com eles litigar poderá opor no feito, depois de sentença dada, cada uma das ditas cousas, e provando-as, lhe será a dita parte condenada nas custas em tresdobro. 4. E para que cada um saiba a ordem per que deve trazer as armas que per direito lhe pertencem, declaramos que o chefe de linhagem será obrigado trazer as armas direitas, sem diferença nem mistura de outras algumas armas. E sendo chefe de mais que de uma linhagem, será obrigado trazer as armas direitas de todas aquelas linhagens de que for chefe e sem mistura em seus quartéis, segundo lhe será ordenado per Portugal Rei de Armas. E os outros irmãos e todos os outros da linhagem as hão de trazer com a diferença ordenada no nobre ofício da armaria. E assi poderão trazer até quatro armas, se quiserem, daqueles de quem descenderem, esquarteladas, e mais, não. E se quiserem tomar somente estremes as armas da parte de suas mães, podê-lo-ão fazer. E os bastardos hão de trazer as armas com sua quebra da bastardia, segundo ordem da armaria. 5. E não poderá pessoa alguma trazer as armas do Reino direitas, posto que sejam misturadas com outras armas, mas hão de ser trazidas no quartel direito com diferença, assi como a cada um pertence trazê-las, convém a saber, as que vêm per bastardia, com a quebra da bastardia, e as outras, com a diferença ordenada pelo rei de armas". Assim vigeu no Brasil até a Constituição de 1891.
(5) Efetivamente, essas armas dos Lopes foram concedidas a João Lopes por Dom Afonso V em 1476, segundo se lê na Armaria portuguesa (1908), de Anselmo Braamcamp Freire. Isso ocorre à maioria das linhagens nomeadas por patronímicos, pois originariamente estes não referiam a uma linhagem, mas simplesmente à filiação. Em outras palavras, qualquer filho de um Lopo se chamava Fulano Lopes.

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