11/01/21

QUAIS FORAM AS ARMAS DE BÁRTOLO

Originalmente, todos os brasões eram assumidos, mas desde cedo os príncipes perceberam que a concessão de armas podia ser um instrumento interessante.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(3) Quædam sunt insignia seu arma privatorum hominum nobilium et popularium; de istis quidam reperiuntur qui habent arma vel insignia quæ portant ex concessione imperatoris vel alterius domini, ut vidi concedi multis a serenissimo principe Carolo quarto, Romanorum imperatore necnon rege Bohemiæ. Et mihi, tunc ejus consiliario, inter cetera concessit ut ego et ceteri de agnatione mea leonem rubeum cum caudis duabus in campo aureo portaremus. Et istis licere portare talia insignia non est dubium: de principis enim potestate disputare sacrilegum est (C, 9, 29, [1]; C, 2, 16 [2]). Si enim sine judicis auctoritate prohibetur, ergo cum judicis auctoritate permittitur.

(4) Quidam tamen arma seu insignia sua propria auctoritate assumunt sibi, et istis an liceat videndum est. Et puto quod liceat. Sicut enim nomina inventa sunt ad recognoscendum homines (C, 7, 14, 10 [3]), ita et ista insignia inventa sunt (D, 1, 8, 8 [4]). Sed talia nomina licet cuilibet sibi imponere ad placitum (D, 1, 8, 8; D, 48, 10, 1, 13 [5]). Ita ista insignia cuilibet licet portare et depingere in suo tantum, non in alieno (C, 2, 16, 2 [6] et ibi notatur per glossam, facit X, 5, 31, 14, et quod ibi notatur per glossam [7]).

(3) Certas insígnias ou armas são de pessoas privadas, nobres ou populares. Dentre estas, acham-se algumas que têm armas ou insígnias que trazem por concessão do imperador ou de outro senhor, como vi serem concedidas a muitos pelo sereníssimo príncipe Carlos IV, imperador dos romanos e também rei da Boêmia. E a mim, então conselheiro seu, concedeu para que eu e os demais da minha linhagem trouxéssemos um leão de vermelho com duas caudas em campo de ouro. A estes é permitido trazer tais insígnias, não há dúvida. Com efeito, é sacrílego discutir o poder do príncipe (C, 9, 29, 2 [1]; C, 2, 16 [2]). Com efeito, se é proibido sem a autoridade do juiz, com a autoridade do juiz é, portanto, permitido.

(4) No entanto, alguns assumem armas ou insígnias por iniciativa própria. Cabe ver se lhes é permitido. Penso que sim. Com efeito, assim como os nomes foram inventados para reconhecer os homens (C, 7, 14, 10 [3]), também assim foram inventadas essas insígnias (D, 1, 8, 8 [4]). Por certo, é permitido a qualquer um impor-se tais nomes à vontade (D, 1, 8, 8; D, 48, 10, 1, 13 [5]). Assim, é permitido a qualquer um trazer e pintar essas insígnias apenas no que é seu, não no que é alheio (C, 2, 16, 2 [6] e o anotado em glosa; X, 5, 31, 14 e o que é anotado em glosa [7]).

Notas:
[1] C, 9, 29, 2: Disputari de principali judicio non oportet: sacrilegii enim instar est dubitare, an is dignus sit, quem elegerit imperator (Não cabe discutir sobre o julgamento do príncipe; com efeito, equivale a um sacrilégio duvidar se é digno quem o imperador tiver escolhido).
[2] C, 2, 16: Ut nemini liceat sine judicis auctoritate signa imprimere rebus quas alius tenet (Que não seja permitido a ninguém imprimir sem a autoridade do juiz sinais nas coisas que outro tem).
[3] C, 7, 14, 10: Ad recognoscendos singulos nomina comparata publico consenso (Os nomes foram distribuídos por consenso público para reconhecer os homens um por um).
[4] D, 1, 8, 8: Sanctum est, quod ab injuria hominum defensum atque munitum est. 1. Sanctum autem dictum est a sagminibus: sunt autem sagmina quædam herbæ, quas legati populi Romani ferre solent, ne quis eos violaret, sicut legati Græcorum ferunt ea quæ vocantur cerycia (Santo é algo defendido e salvaguardado da injúria dos homens. Recebeu o nome de santo por causa das verbenas (sagmina). As verbenas são certas ervas que os embaixadores do povo romano costumam levar para ninguém os violar, como os embaixadores dos gregos levam aquelas que se chamam caduceus).
[5] D, 48, 10, 13: Falsi nominis vel cognominis asseveratio pœna falsi coercetur (A declaração de um nome ou sobrenome falso é castigada com a pena de falsidade).
[6] C, 2, 16, 2: Rebus, quas alius detinet, imprimere signa nemini licet, etiam si suas vel obligatas sibi eas esse aliquis affirmet (Não é permitido a ninguém imprimir sinais nas coisas que outro detém, mesmo que ele afirme ser suas ou que lhe estão hipotecadas).
[7] X, 5, 31, 14: Privati homines regulariter nequeunt constituere collegium et habere signa collegii, nisi eis aliter concedatur. Dilecta in Christo filia abbatissa Jotrensis nobis insinuare curavit, quod, cum presbyteri et clerici Jotrensis ecclesiæ Meldensis diœcesis non consueverint habere sigillum, nec sint unum corpus ita, quod capitulum appellaretur, nihilominus tamen contra voluntatem ipsius abbatissæ, quæ ipsorum caput est et patrona, sigillum habere contendunt (...). Discretioni vestræ mandamus, quatenus, inquisita super his diligentius veritate, si vobis constiterit ita esse dictis presbyteris et clericis auctoritate nostra inhibeatis expresse, ne præsumant vel de novo fabricare sigillum, vel uti eo, si forte noviter fuerit fabricatum (X, 5, 31, 14As pessoas privadas não podem constituir regularmente um colégio nem ter os sinais de um colégio, a não ser que se lhes conceda de outro modo. A abadessa de Jouarre, dileta filha em Cristo, cuidou em nos comunicar que, como os presbíteros e clérigos da igreja de Jouarre, da diocese de Meaux, não costumavam ter um selo e assim não são um só corpo, que seria chamado cabido, nada menos contra a vontade da própria abadessa, pretendem ter um selo (...). Confiamos ao vosso discernimento até em que medida, inquirida a verdade sobre estes da maneira mais diligente, se vos tiver parecido certo que assim seja, inibais com a nossa autoridade os ditos presbíteros e clérigos, expressamente para que não ousem fabricar de novo um selo ou usar de um, se acaso tiver sido novamente fabricado).

Comentário:

Nalgum momento do baixo Medievo em Portugal, alguém que se fazia chamar pelo sobrenome (ou, como se diz no português europeu, apelido) da Gama tomou por armas um xadrezado de ouro e vermelho, de três peças em faixa e cinco em pala, as de vermelho carregadas de duas faixas de prata. Não se sabe exatamente quem nem onde nem quando, porque acontecia como Bártolo expõe: era uma forma de identificação pessoal que se podia assumir por iniciativa própria.

Armas dos Gamas: xadrezado de ouro e vermelho, de três peças em faixa e cinco em pala, as de vermelho carregadas de duas faixas de prata.
Armas dos Gamas: xadrezado de ouro e vermelho, de três peças em faixa e cinco em pala, as de vermelho carregadas de duas faixas de prata.

Ainda que não haja documento (1), sabe-se que um navegador desse sobrenome mudou o curso da história mundial ao traçar a rota marítima da Europa à Índia e que, por isso, o rei Dom Manuel I lhe concedeu um brasão com o acrescentamento honroso de um escudete de Portugal antigo (2) às armas gentilícias, presumivelmente no ano de 1500, quando lhe foi dado o título de dom e o almirantado da Índia. Evidentemente, falo de Vasco da Gama.

Armas de Vasco da Gama: xadrezado de ouro e vermelho, de três peças em faixa e cinco em pala, as de vermelho carregadas de duas faixas de prata, e um escudete de Portugal antigo, posto no ponto de honra.
Armas de Vasco da Gama: xadrezado de ouro e vermelho, de três peças em faixa e cinco em pala, as de vermelho carregadas de duas faixas de prata, com um escudete de Portugal antigo, posto no ponto de honra.

Como Bártolo já explica, os brasões não eram apenas formas de identificação pessoal, mas também mercês pelas quais os príncipes e senhores galardoavam os serviços dos seus vassalos. O próprio Bártolo, enviado pela comuna de Perúsia para representá-la ante o imperador Carlos IV, que se achava em Pisa em 1355, recebeu, entre outros privilégios, o brasão que descreve no seu tratado: de ouro com um leão de cauda forcada de vermelho (3). Quem conhece as armas da Boêmia (4) percebe que, diferençadas pelos esmaltes, foram estas que o imperador, também rei daquela terra, concedeu ao famoso professor de Perúsia.

Armas de Bártolo de Sassoferrato: de ouro com um leão de cauda forcada de vermelho.
Armas de Bártolo de Sassoferrato: de ouro com um leão de cauda forcada de vermelho.

Além de completar a classificação das armas — de dignidade, assumidas e concedidas , a perspicácia de Bártolo capta o mecanismo social desse sistema: o brasão é um legado de família. Na verdade, ele é muito feliz ao empregar o termo agnatio, isto é, 'agnação' ou 'linhagem', pois é mais precisamente um legado do pai ao filho primogênito. Se no caso das armas direitas dos Gamas (5) é difícil saber quem teria o direito de as trazer (ao menos não acho notícia de que tenha havido um chefe conhecido dessa linhagem), por outro lado, sabe-se a quem foi reconhecido pela última vez o direito de trazer as armas de Vasco da Gama: a José Teles da Gama, 15.º conde da Vidigueira (6), falecido em 1941. Não obstante, nos aditamentos e correções da Armaria portuguesa (1908), Braamcamp Freire insere uma nota reveladora e cáustica:

Carta de brasão encontrei uma concedida em 1783 (Arquivo heráldico-genealógico, 887). O desassombro com que esta carta de brasão foi passada é bem revelador, não só da ignorância da gente que superintendia no Cartório da Nobreza, reformadores e todos mais, mas também do desrespeito e desinteresse com que já se tratavam os assuntos relativos à aristocracia. Em Portugal não foi a abolição dos vínculos, não foram os casamentos desiguais, não foi a incultura da maior parte dos fidalgos que arruinou a nobreza; foram, acima de tudo, as facilidades de seus vários chefes, nas nobilitações, concessões de armas e de títulos, a muitos, nacionais e estrangeiros, indignos da menor distinção. A despreocupação com que isto tudo era lançado tornou-se tão característica num dos últimos soberanos, que ele próprio, sem consciência do golpe que dava no prestígio da realeza, sem o qual ela se não podia manter, escarnecia das mercês por si mesmo concedidas a pessoas ridículas ou indignas de atenção. Pois é verdade: em 1783 foram dadas as armas, concedidas por Dom Manuel a Vasco da Gama em prémio do descobrimento da Índia, a um sujeito qualquer, porque entre os seus apelidos se encontrava o de Gama!

Portanto, caro leitor, não é preciso buscar pelo Google o "brasão da família Gama" para ver que há um notável descompasso entre a teoria e a prática. Se as pessoas creem que a cada sobrenome correspondente certo brasão, não se deve apenas ao despudor de quem vende bugigangas ilustradas de armas gentilícias, mas também a erros que vêm de longe, cometidos pelos próprios operadores do sistema. Como se chegou a isso?

Um dos aspectos mais interessantes da história da heráldica é que o sistema original, surgido no século XII, ruiu ao longo do XV. Esse sistema é o descrito por Bártolo no seu tratado: qualquer um — pessoa ou comunidade  podia assumir um brasão, havia armas concedidas pelos príncipes e senhores à guisa de mercê e também aquelas ligadas a certas dignidades. Mas cada vez mais o caráter honroso sobrelevou o identificativo. Laurent Hablot, em artigo de 2012, estuda essa mutação a partir da prática da concessão:

Le droit de contrôle que s'arroge progressivement le pouvoir royal sur l'expression emblématique procède donc, en positif, de ces processus de distinction et de mise à l'honneur via l'outil héraldique. Mais ce pouvoir se construit aussi, en négatif, par la perte progressive de liberté d'expression héraldique de la noblesse au profit de l'Etat royal. Cette évolution résulte d'un télescopage de pratiques diverses dont le dénominateur commun reste la construction de l'Etat : le contrôle de la justice, celui de la guerre, celui du statut social et donc fiscal, celui plus abstrait mais non moins essentiel de l'honneur. (7)

Com efeito, o incremento de significado social explica o desenvolvimento dos ornamentos externos, nomeadamente os timbres, elmos e coronéis, e o decremento de significado pessoal, o surgimento de um sistema novo: a empresa ou divisa (8).

Tudo isso se passou com especial intensidade em Portugal, pois desde cedo a Coroa procurou aí controlar o sistema, talvez favorecida pela vantagem da pequenez territorial. Esse movimento começou exatamente em 1476, por ato do rei Dom Afonso V:

Carta que pertence ao ofício do Rei d'Armas Purtugal
A quantos esta minha carta virem, faço saber que a mim praz, movido per alguns justos e bons respeitos, que nenhum rei d'armas, arauto nem passavante, nem outra algũa pessoa possa ordenar nenhũas armas por mi novamente dadas, nem per outra maneira algũa confirmadas, senom Portugal, meu Rei d'Armas, que me praz e quero que em sua vida este cárrego tenha e outra algũa pessoa não, posto que em algum tempo seja mudado o nome de Portugal per qualquer maneira que seja. E assi tenha, como agora tem, o livro do registro e tombo das ditas armas per mim novamente dadas e per ele ordenadas e das armas de todos os fidalgos antigos e de linha direita. E quero que haja de cada ũa pessoa a que assi as ditas armas ordenar per meu mandado e per qualquer outra maneira um marco de prata de seu foro, assi como o haviam os outros reis d'armas que ante ele fôrom. E porém mando aos meus chanceleres e escrivães da minha Chancelaria e a quaesquer outros reis d'armas que, acontecendo que algũa carta de armas a sua mão vá, nom sendo certificadas que per ele, dito Portugal, fôrom ordenadas e em seu livro registradas e assentadas e pintadas, tal carta nom a selem nem passem em maneira algũa. E em caso que passem, não sendo lembrados desta minha carta ou em outra qualquer maneira, quero que as ditas cartas d'armas nom sejam valiosas e o dito rei d'armas as possa ordenar a outro qualquer que eu novamente der armas. E o mando a tôdolos escrivães de minha Corte, assi da Puridade como da Câmara e Fazenda e quaesquer que i houverem, que nenhum deles nom seja tam ousado que nenhũa carta d'armas per mim novamente dadas nem confirmadas faça nem mande fazer, salvo per mandado e portaria do dito rei d'armas. E per esta mando e defendo que nenhum pebleu nem outra algũa pessoa tragam nenhũas armas com metaes em escudo, salvo se for fidalgo de cota d'armas, sob pena de pagar um marco de prata pera o dito rei de armas, porque assi é minha mercê e o sinto per meu serviço. E mando a tôdalas minhas justiças de tôdolos meus Reinos e Senhorios que cumpram e guardem esta minha carta como nela é conteúdo, sem outro nenhum embargo. Dada em Touro, 21 dias do mês de maio. Hanrique Ribeiro a fez. Ano 1476. (Chancelaria de Dom Afonso V, liv. 6, fl. 91)

Para mim, o ponto mais destacável desse texto é que testemunha de modo indubitável que não eram apenas os nobres que usavam de brasões. Se depois o sistema se reconfigurou, deveu-se precisamente às regulações que principiaram aí: o estabelecimento de um ofício principal de armas, a competência exclusiva do seu oficial para gerir as mercês reais novas e registrar as armas nobres ancestrais, a imposição de restrição aos plebeus.

Essa restrição merece comentário próprio. De entrada, é desconcertante, porque ao vedar os metais, obriga à combinação de cores, o que infringe a regra dos esmaltes e dá, consequentemente, armas falsas. Será que a intenção era mesmo essa: impelir os plebeus a trazer armas falsas e, assim, distingui-los ostensivamente dos nobres? Ou será que podemos tentar uma interpretação que deixe a medida menos agressiva, talvez a de que os metais estivessem vedados no campo do escudo?

Seja como for, a partir de então e sob o reforço definitivo da legislação manuelina, o brasão em Portugal e no Brasil se tornou um distintivo de nobreza. A sua natureza excludente e gestão centralizada funcionavam tão bem que a fraude, em vez de o deteriorar, o sustentava. Mas isso fica para a próxima postagem.

Notas:
(1) Certamente o houve, mas a documentação da armaria portuguesa tem lacunas causadas pela destruição do Cartório da Nobreza durante o terremoto de 1755.
(2) Sobre a distinção entre as armas de Portugal antigo e moderno, leia-se a postagem anterior. Anselmo Braamcamp Freire, na sua Armaria portuguesa (1908), brasona os besantes de ouro nas armas de Vasco da Gama, justificando que assim se veem no Livro do Armeiro-Mor e no Livro da nobreza e perfeição das armas e arguindo que isso consiste numa diferença das armas reais. Mas na Sala de Sintra e nas demais fontes estão pintados de prata e as armas de Portugal antigo não são, de todo modo, as armas reais plenas. Por isso, preferi a prata.
(3) Melhor que a redação original, isto é, "com duas caudas". O brasão de Bártolo é uma das questões bizantinas a que refiro na postagem de 07/01: Cavallar et alii duvidam da sua veracidade, esgrimindo como argumento principal a falta de diploma. Francamente, esperar que se passassem regularmente cartas de brasão já em 1355 é desconhecer a história da heráldica.
(4) A Boêmia é uma região histórica da Tchéquia. Na verdade, é a região que na língua tcheca tem o nome de Čechy. As suas armas são de vermelho com um leão de cauda forcada de prata, armado, lampassado e coroado de ouro. Figuram no primeiro e quarto quartéis do brasão tcheco hodierno (no segundo, as armas da Morávia e no terceiro, da Silésia).
(5) Na heráldica portuguesa, armas direitas opõem-se a armas diferençadas, ou seja, as armas direitas são as primitivas da linhagem, sem nenhuma alteração.
(6) Vasco da Gama foi o primeiro conde da Vidigueira. Braamcamp Freire, na citada Armaria portuguesa, diz que os condes, seus sucessores, usaram primeiro as suas armas, depois, pelo acúmulo de outros títulos, um esquartelado com as armas dos Lancastres, Teles de Meneses, Silveiras e Castro, e sobre o todo, as dos Gamas de Vasco da Gama. De fato, um brasão bem ao gosto do Antigo Regime: quanto mais armas, mais nobreza...
(7) "O direito de controle que se arroga progressivamente o poder régio sobre a expressão emblemática procede, pois, positivamente, desses processos de distinção e do honramento mediante a ferramenta heráldica. Mas esse poder se constrói também, negativamente, pela perda progressiva de liberdade de expressão heráldica da nobreza em proveito do Estado real. Essa evolução resulta de uma introdução de práticas diversas cujo denominador comum permanece a construção do Estado: o controle da justiça, o da guerra, o do estatuto social e, por conseguinte, fiscal, o mais abstrato, mas não menos essencial, da honra." (tradução minha)
(8) Dada a sua dimensão, o estudo da empresa demandaria um espaço próprio. Sumarissimamente, digo que a empresa era quase o contraponto do brasão: não era constrangida por regras sintáticas, não era hereditária, tinha forte carga alegórica e compunha-se livremente de um "corpo" (figura) e uma "alma" (mote). Algumas empresas tiveram um sucesso singular, como a de Dom Manuel I, cujo corpo era uma esfera armilar de ouro e cuja alma era Spera in Deo: primeiro se tomou por símbolo da expansão ultramarina, depois se vinculou ao estado do Brasil, enfim se tornou a figura principal das nossas armas reais e imperiais, de certo modo ainda presente na nossa bandeira nacional, também suporte das armas nacionais portuguesas desde a instauração da República.

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