"O meu reino não é deste mundo." (Jo, 18, 36)
"O papa é pop". Quando o século XX começou, sentava-se no sólio petrino Leão XIII, o primeiro dos pontífices romanos que se deixou filmar por uma câmera. Perto do fim, o desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte propiciaram a São João Paulo II fazer do papado um fenômeno de massa, daí a canção dos Engenheiros do Hawaii já em 1990. Desde então, poucos acontecimentos engajam mais a porção de maioria católica do orbe que a morte do Santo Padre e a eleição do seu sucessor imediato.
Não emprego fortuitamente o verbo engajar. O passamento do papa Francisco e o conclave que se seguiu aos ritos fúnebres e elegeu Leão XIV deram-se sob o domínio das redes sociais, cuja governança é, do ponto de vista moral, mais que questionável. Foi nesse ambiente que ocorreu a ordenação das novas armas pontifícias. A meu ver, de modo infeliz. Sobre esse aspecto, passo a lavrar uma breve crônica.
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Foto oficial do papa Leão XIV com a sua assinatura e o seu brasão (imagem disponível na Vatican Media). |
O dia 8 de maio entardecia em Roma quando a chaminé da Capela Sistina soprou fumaça branca. Os sinos das igrejas tocaram por toda a parte e os fiéis souberam, então, que findara a vacância da Sé Apostólica. Pouco mais de uma hora depois, o cardeal protodiácono Dominique Mamberti saiu à sacada da Basílica Vaticana e anunciou: "Habemus papam!". O Colégio Cardinalício elegera Robert Francis Prevost, que se impôs o nome de Leão XIV. Em seguida, o sumo pontífice saudou o povo na praça, dirigiu-lhe uma mensagem e abençoou a cidade e o mundo.
Antes que o papa voltasse aos negócios que o esperavam dentro do Vaticano, a comunidade heráldica já reagia. Isso foi natural, afinal todos os que entraram no conclave são bispos e, como tais, podem ter brasões de armas. Hoje, graças à amplitude e à solidez da Wikimedia, tornou-se muito fácil achar essas armas. Não obstante, o eleito à sucessão de Pedro pode manter aquelas de que vinha usando ou modificá-las, em qualquer caso acrescentando-lhes as insígnias do seu primado. Os heraldistas ganham, desse modo, oportunidade para fazer um bom debate.
Efetivamente, em 1978 Bruno Bernard Heim trocou por ouro a cor negra da cruz e do M que em campo azul até então trouxera por armas o cardeal Karol Wojtyła, agora papa João Paulo II. Em 2005, Andrea Cordero Lanza di Montezemolo criou um brasão novo para Bento XVI, aproveitando as figuras daquele usado pelo cardeal Joseph Ratzinger. Tanto o arcebispo Heim como o cardeal Lanza di Montezemolo trabalharam por longo tempo no serviço diplomático da Santa Sé e estudaram com afinco a heráldica da Igreja, a respeito da qual escreveram manuais didáticos (1). O segundo chegou a aperfeiçoar as armas do papa Francisco em 2013.
Em 2025, lamentavelmente não resta especialista da mesma altura, ao menos entre o clero. O arcebispo Heim (2003), o cardeal Lanza di Montezemolo (2017) e outros grandes mestres, como o teuto-brasileiro Paulo Lachenmayer, OSB (1990), foram-se há muitos anos. Não faltam, porém, artistas heráldicos, tanto bons quanto ruins. Ora, os mesmos repositórios online que difundem o conhecimento facilitam que qualquer um monte pretensos brasões sem rigor técnico nem compromisso ético. As mesmas redes sociais que divulgam os trabalhos dos talentosos propagam informações falsas. Como se não bastasse, o plágio legalizado, que é a inteligência artificial "generativa", piora tudo.
Assim, menos de 24 horas após o anúncio, alguns artistas saíram dos grupos fechados, postando nas redes sociais esboços de quais poderiam ser as armas de Leão XIV. Sem dúvida, gozavam da liberdade e do direito para fazê-lo, mas convinha? Só a pergunta já me parece conveniente, porque as coisas não se tornam virais na Internet pelo que as pessoas razoavelmente ponderam, mas pelo que a imagem sugere. Demorou, pois, poucas horas para que os exercícios artísticos evoluíssem para informações falsas e narrativas partidárias.
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Notícia falsa sobre o brasão do papa Leão XIV. |
Infelizmente, a polarização política que em geral adoece a sociedade também fere o Corpo de Cristo. Na manhã da sexta-feira, dia 9, já me chegavam notícias que mostravam uma montagem: o escudo e o lema do cardeal Prevost, a tiara de São João Paulo II e as chaves do papa Francisco, tudo tomado dos desenhos mais usados na Wikipédia. Os textos afirmavam que era o brasão de Leão XIV e daí se levou isso às redes sociais, onde desencadeou uma batalha cultural pela tiara papal.
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Nunca é excessivo esclarecer muito bem esse elemento da armaria pontifícia. Como objeto real, não é litúrgico; como objeto heráldico, não tem conotação espiritual. O objeto real foi formado nos séculos XIII e XIV, quando os pontífices romanos amiúde disputavam o poder com suseranos e vassalos. Logo, é uma insígnia secular, que assinala o poderio temporal do papa enquanto príncipe deste mundo. A insígnia espiritual, que distingue o bispo de Roma dos demais, são as chaves:
Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as forças do Inferno não poderão vencê-la. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus. (Mateus, 16, 18–19)
Portanto, o servo dos servos de Deus não trabalha por um reino deste mundo, daí o gesto de São Paulo VI, quem antes de encerrar a terceira sessão do Concílio Vaticano II depôs a sua tiara sobre o altar da Basílica de São Pedro. Desde então, não se entronizam nem se coroam os papas, mas o recém-eleito preside a uma missa solene pelo início do seu ministério, onde recebe o pálio do pastor e o anel do pescador.
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Armas do Vaticano (imagem disponível no portal da Santa Sé). |
Enquanto objeto heráldico, a tiara continuou a timbrar o escudo pontifício até 2005, quando Bento XVI acolheu proposta do cardeal Lanza di Montezemolo, dando lugar a uma mitra, que "em recordação das simbologias da tiara, é de prata e tem três faixas de ouro (os três mencionados poderes de Ordem, Jurisdição e Magistério), ligados verticalmente entre si no centro para indicar a sua unidade na mesma pessoa". Considerando que isso aconteceu há vinte anos e adentramos o terceiro pontificado sob a mesma insígnia, creio que já podemos acolhê-la como objeto heráldico singular, denominando-a quiçá mitra papal.
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Bandeira do Vaticano. |
Cumpre ressaltar que não se suprimiu, por isso, a tiara da heráldica papal, dado que está presente no emblema da Santa Sé, nas armas do Vaticano e na sua bandeira (2). É justo: a cidade-estado é um território deste mundo que assegura soberania à Santa Sé para governar a Igreja Militante. Apesar disso, a natureza do Vaticano difere bastante do Estado Pontifício, onde o pontífice regia uma numerosa população desde o Lácio até a Romanha, na Itália central, tendo de se encarregar da sua defesa, promover a sua prosperidade e prover os serviços públicos, tal qual um governante civil.
A era desses papas-reis findou em 1870 e São Paulo VI percebeu os sinais dos tempos em 1964, declinando do fausto monárquico. Virado o século, os papas têm preferido que os seus brasões os identifiquem como bispos de Roma, completando a mudança de ênfase, que é, de resto, coerente com o que cada um pregou ao solenizar o início do seu pontificado: nenhum disse que veio reinar, mas todos disseram que receberam o encargo de apascentar e pescar. A pompa principesca deu lugar à oração: "Omnes sancti et sanctæ Dei, vos illum adjuvate" ("Todos os santos e santas de Deus, ajudai-o").
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"Brasão oficial do Santo Padre Leão XIV" (publicação da Secretaria de Estado da Santa Sé no X). |
Tudo se repete há tanto tempo que só o saudosismo de um papado medieval explica esse apego ao trirregno em pleno ano de 2025. As atribuições falsas de brasões alastraram-se de tal maneira ao longo da sexta-feira que na manhã de sábado, dia 10, a Secretaria de Estado publicou um desenho no X: "Stemma ufficiale del Santo Padre Leone XIV" ("Brasão oficial do Santo Padre Leão XIV"). Postas as circunstâncias, comentarei estritamente tal brasão na próxima postagem.
(1) O arcebispo Heim publicou Heraldry in the Catholic Church: Its origin, customs and laws em 1978 (revisto, ampliado e traduzido para o italiano sob o título L'araldica nella Chiesa Cattolica: Origini, usi, legislazione em 2018) e o cardeal Lanza di Montezemolo com o padre Antonio Pompili, o Manuale di araldica ecclesiastica nella Chiesa Cattolica em 2014.
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