Há duzentos anos anos uma reunião de ministros e representantes das províncias foi decisiva para a nossa separação de Portugal.
Fitamos já bem longe o ano de 2008, quando comemoramos o bicentenário da transferência da Corte portuguesa para o Brasil. O privilégio de viver esse tempo permite-nos experimentar quão longa foi a sucessão de eventos que levaram à nossa separação de Portugal em 1822.
Com efeito, durante esses catorze anos, o Rio de Janeiro tornou-se a cabeça da monarquia pela instalação ou criação de diversas instituições administrativas, financeiras e acadêmico-culturais nos meses seguintes ao desembarque; o Brasil, o Maranhão e o Pará deixaram de ser estados coloniais ao serem unificados e elevados a reino unido ao de Portugal em dezembro de 1815; ocorreu uma sucessão régia: Dona Maria I morreu em março de 1816 e Dom João VI foi aclamado rei de Portugal, do Brasil e dos Algarves em fevereiro de 1818; o absolutismo cedeu à nova era após o levante do Porto em agosto de 1820, que evoluiu rapidamente para uma revolução liberal; as Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, convocadas pelo governo revolucionário, instalaram-se em janeiro de 1821 para elaborar uma constituição política para o Reino Unido; pressionado pela dilatação do movimento até mesmo além-mar, o rei aprovou a futura constituição no mês seguinte, declarou o seu retorno a Lisboa no ulterior e embarcou em abril. Ficou o príncipe Dom Pedro como regente do reino do Brasil.
Assim, há exatamente duzentos anos, na ausência do príncipe, que estava em São Paulo, apaziguando a província, a princesa Dona Leopoldina presidiu à 13.ª sessão do Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias do Brasil, em que Lucas José Obes, da Cisplatina, resumiu o agravamento das relações com as Cortes, as quais, segundo ele, "tinham tirado a máscara, exigindo de Sua Alteza Real uma obediência a mais humilhante e do Brasil uma humilhação como nunca se exigira dos nossos maiores".
As armas reais de Portugal, Brasil e Algarves, ordenadas por Dom João VI pela Lei de 13 de maio de 1816, demonstram, entre outros testemunhos, que o projeto do Reino Unido efetivamente visava a evitar o que acontecera à Espanha, cuja dinastia fora deposta por Napoleão e cujo império, rebelde num primeiro momento contra José Bonaparte por lealdade a Fernando VII, logo aderiu aos ideais das Revoluções Americana e Francesa, desencadeando uma guerra continental e esfacelando-se em múltiplas repúblicas.
Assim, embora saibamos hoje que a bordadura dos castelos tenha sido acrescentada às armas reais portuguesas por Dom Afonso III para se diferençar de seu irmão mais velho, Dom Sancho II (leia-se a postagem de 19/01/2021), no século XIX ainda se cria efetivamente que eram as armas do Algarve, como a própria lei o declara: "da mesma forma que o Senhor Rei Dom Afonso III, de gloriosa memória, unindo outrora o Reino dos Algarves ao de Portugal, uniu também as suas armas respectivas". Ora, para "incorporar em um só escudo real as armas de todos os três Reinos", esperar-se-ia o recurso clássico à esquarteladura, como Castela e Leão ou França e Inglaterra. Ao "inscrever" o escudo real português na esfera armilar de ouro em campo de azul, não só se obteve o efeito visual de "um só e mesmo Reino", mas também se arranjou uma posição inteligente para cada parte: estando em cima, as armas portuguesas tinham maior preeminência, mas as armas brasileiras as encerravam e também as sustentavam, dando a entender que representavam a porção mais vasta do Reino Unido e o seu sustentáculo.
Armas de Dom Pedro de Bragança, príncipe real de Portugal, Brasil e Algarves: as armas reais de Portugal, diferençadas por um lambel de ouro de três pendentes; coroa de príncipe. |
Escusada a pressa dos revolucionários em eleger os deputados e abrir os trabalhos das Cortes para não esvaziar o movimento, de modo que não se pôde esperar a adesão do ultramar e a eleição e chegada dos seus deputados, fato é que os liberais portugueses não demoraram em revelar uma profunda contradição: por um lado, opunham-se veementemente ao Antigo Regime, mas, por outro, atuavam para restaurar o domínio colonial sobre o Brasil, despojando-o de tudo que a transferência da Corte e a unificação e elevação a reino lhe proporcionara, começando pela regência do príncipe, a qual procuraram desmantelar já em outubro de 1821 pela reforma política e militar das províncias brasileiras, que ficariam, uma a uma, subordinadas diretamente a Lisboa e, em decorrência disso, determinaram o seu regresso imediato a Portugal.
Portanto, o ano de 1822 começou com o desgaste do Fico, isto é, a resolução de ficar que Dom Pedro tomou a 9 de janeiro, desacatando as Cortes. Desde então, estas não passaram um só ato favorável ao que defendiam os deputados brasileiros: uma espécie de união dinástica. Mas já aos 18 do mesmo mês extinguiram os tribunais que Dom João VI criara no Rio de Janeiro. Em resposta, o príncipe regente criou aos 16 do mês seguinte o dito Conselho de Procuradores-Gerais e a 4 de maio determinou que nenhum decreto das Cortes se executasse no reino americano sem o seu "cumpra-se", o que lhe valeu o título de defensor perpétuo do Brasil, oferecido pela Câmara do Rio de Janeiro no dia 13.
Enquanto isso, as Cortes debatiam um projeto de lei que, na prática, retrocederia o comércio entre os dois reinos ao monopólio colonial e como as bancadas brasileiras não conseguiam deter o avanço dessas iniciativas por estarem em minoria, a segunda sessão do Conselho de Procuradores-Gerais, a 3 de junho, representou ao príncipe regente a convocação de uma assembleia constituinte e legislativa de deputados das províncias brasileiras, o que ele fez por Decreto do mesmo dia, no qual já se falava em independência, mas ainda em "união com todas as outras partes integrantes da grande família portuguesa, que [o povo deste grande e riquíssimo continente] cordialmente deseja".
Durante os meses de junho e julho de 1822, mais que os atos das Cortes em Lisboa e da regência no Rio de Janeiro foram as notícias, a correspondência e os rumores que precipitaram medidas cada vez mais duras. Assim, as notícias recebidas no Rio a 27 de julho datavam de até 23 de maio, mas levaram ao Decreto de 1.º de agosto, que reputou inimigas as tropas mandadas de Portugal sem o consentimento do príncipe regente, à Proclamação do mesmo dia, que "esclarece os povos do Brasil das causas da guerra travada contra o governo de Portugal", e ao Manifesto de 6 de agosto, "sobre as relações políticas e comerciais com os governos e nações amigas". Na verdade, o decreto era não só uma declaração de guerra às Cortes, mas também uma declaração de independência, mas ainda não de separação.
Armas de Dona Leopoldina de Habsburgo-Lorena, princesa real de Portugal, Brasil e Algarves: as armas do príncipe real, seu marido, unidas às do Império da Áustria sob a coroa de príncipe. (1) |
Perceba-se, não obstante, que as últimas notícias não alcançavam as reações das Cortes à criação do Conselho dos Procuradores-Gerais. Estas chegaram a 28 de agosto e foi delas que tratou a sessão desse conselho que hoje completa duzentos anos. Prossegue a citada ata:
Resolveu o Conselho que se procedesse imediatamente a um embargo dos fundos da Companhia dos Vinhos do Douro a título de represália; que se tomassem todas as medidas necessárias de segurança e defesa; que cada um dos Conselheiros apresentasse os seus planos na próxima sessão; e que os Conselheiros Militares, de acordo com os Ministros da Guerra e Marinha, fizessem o seu projeto de campanha.
Com efeito, na sessão de 23 de julho as Cortes tinham passado três decretos: o primeiro, que o príncipe ficasse no Rio de Janeiro até a promulgação da Constituição, mas o rei nomearia os seus secretários de estado; o segundo anulava a criação do Conselho de Procuradores-Gerais e que se verificaria a responsabilidade do ministério brasileiro; o terceiro, que se processassem e julgassem os membros da junta provisional paulista que tinham assinado uma representação contra as Cortes em dezembro de 1821.
Foram estas as notícias que Dona Leopoldina e o ministro José Bonifácio de Andrada remeteram a São Paulo. Não se conservaram as suas cartas, mas é fácil imaginar que quando o correio encontrou o destinatário no dia 7 de setembro às margens do riacho Ipiranga, Dom Pedro se convenceu de que insistir na independência sob a mesma Coroa podia resultar mais danoso do que separar de vez um reino do outro.
A partir de hoje, teremos as oportunidades de celebrar sucessivos bicentenários de eventos que formam a nossa trajetória como estado-nação diferente de Portugal, entre eles o bicentenário das armas nacionais no dia 18 de setembro, em cuja homenagem começarei a seguir uma série de postagens, cada uma sobre um elemento delas, segundo o decreto que as ordenou:
- "Em campo verde"
- "uma esfera armilar de ouro,"
- "atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo," (I, II, III)
- "sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul,"
- "e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo,"
- "cujos lados serão abraçados por dous ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor"
- "e ligados na parte inferior pelo laço da Nação."
- bicentenário das armas nacionais brasileiras;
- alterações das armas nacionais;
- variações e erros nas reproduções das armas nacionais;
- críticas às armas nacionais.
Francisco I da Áustria, pai da princesa Dona Leopoldina, ordenou essas armas por decreto em 6 de agosto de 1806: "Der Mittelschild enthält das genealogische Wappen des allerdurchlauchtigsten regierenden Kaiserhauses. Es ist von oben nach unten zweimal geteilet: zur Rechten, der rote gekrönte aufgerichtete Löwe von Habsburg im goldenen Felde; in der Mitte, das nunmehrige Hauswappen: ein silberner Querbalken im roten Felde; zur Linken, das herzoglich-lothringische Stammwappen: drei übereinander gesetzte, gestümmelte silberne Adler auf einem schrägrechts gezogenen roten Balken" ("O escudo do centro contém as armas genealógicas da Sereníssima Casa Imperial governante. É partido de dois, de cima para baixo: à destra, o leão rampante e coroado de vermelho, de Habsburgo, em campo de ouro; no meio, as armas dinásticas atuais: uma faixa de prata em campo de vermelho; à sinistra, as armas da linhagem ducal lorena: três águias mutiladas de prata, postas uma sobre a outra, numa faixa de vermelho, estendida diagonalmente para a direita").
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