Bicentenário das armas nacionais: "Será d'ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul...".
A locução Brasil colônia foi forjada pela nossa historiografia nacionalista para dotar o país de um passado coeso. Não à toa, a historiografia mais recente tem preferido a locução América portuguesa, já que os domínios americanos de Portugal não foram coeridos sob o nome de Brasil senão pela Lei de 16 de dezembro de 1815. E, ainda assim, pode-se duvidar, pois no preâmbulo se diz "dando ao mesmo tempo a importância devida à vastidão e localidade dos meus domínios da América", mas no artigo 1.º se ordena que "o Estado do Brasil seja elevado à dignidade, preeminência e denominação de Reino do Brasil".
A dúvida é razoável, pois a essa altura Portugal tinha três domínios no continente americano: o Brasil, o Maranhão e o Grão-Pará. Cada um se denominava estado e era governado por um alto oficial que respondia diretamente à Coroa. O estado do Brasil foi criado em 1548. Dele foi desmembrado em 1619 o estado do Maranhão, abrangendo o território do cabo de São Roque para o norte, renomeado estado do Maranhão e Grão-Pará em 1655, por volta de quando o limite foi deslocado até o delta do Parnaíba. Em 1751, transferiu-se o governo-geral de São Luís para Belém, pelo que se inverteu a denominação: estado do Grão-Pará e Maranhão. Mas o governo-geral de São Luís foi restabelecido em 1772. Desde então, o norte da América portuguesa cindia-se em dois estados: o do Maranhão e Piauí a leste e o do Grão-Pará e Rio Negro a oeste. Além disso, no espiritual as dioceses de São Luís e Belém, criadas em 1677 e 1720, não eram sufragâneas da arquidiocese de Salvador, mas do patriarcado de Lisboa.
O problema é que enquanto a Corte estava no Rio de Janeiro, não fazia diferença se o reino do Brasil se restringia ao antigo estado do Brasil ou abrangia este e os do Maranhão e do Grão-Pará, porque para o primeiro se tornou desnecessário um governador-geral ou vice-rei já em 1808 e aqueles que governavam os outros dois deviam, de todo modo, reportar-se a superiores que então se achavam no Rio. Seja como for, ao aderirem à revolução liberal em janeiro e abril de 1821, o Grão-Pará e o Maranhão reconheceram-se integrantes do reino do Brasil.
Aí está. Quando os deputados brasileiros começaram a tomar assento nas Cortes a partir de agosto de 1821, absolutamente não representavam o Brasil, mas as suas províncias. O que os uniu foi a crescente animosidade da maioria parlamentar europeia contra o status do reino americano e, mesmo assim, nem todos, pois um dos dois deputados paraenses e ambos os maranhenses votavam alinhados à maioria europeia. Ninguém sabia, afinal, qual forma a constituinte daria ao Reino Unido e, dependendo de qual fosse, o Grão-Pará e Maranhão podiam preferir a subordinação a Lisboa do que ao Rio.
Enquanto isso, depois de a Lei de 1.º de outubro de 1821 ter estabelecido em cada província brasileira uma junta provisória e um comando militar, independentes entre si e responsáveis ao governo do Reino e às Cortes, Dom Pedro teve de sair recebendo ou conquistando a lealdade de cada uma à sua regência. Assim, no ano de 1822 até o ato da separação houvera conflitos em fevereiro na Bahia (que aí se arrastaria até julho do ano seguinte), em abril em Minas, em junho em Pernambuco e a 7 de setembro o príncipe se achava em São Paulo precisamente para apaziguar as agitações que estavam ocorrendo lá. O próprio Conselho dos Procuradores-Gerais só empossara até então os do Rio de Janeiro, Cisplatina, Minas Gerais, Santa Catarina e Espírito Santo.
"Em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul". |
Nessa conjuntura, a esfera armilar assinalava a continuidade política do reino do Brasil após a separação e a cruz da Ordem de Cristo, a continuidade histórica desde o descobrimento e a conquista da terra de Santa Cruz. Pode-se, portanto, qualificá-las de elementos "pré-nacionais". Daí que a orla de estrelas talvez seja o elemento mais inteligente e importante do escudo, por exprimir o projeto de uma só nação "do Amazonas ao Prata", como diz a Proclamação de 1.º de agosto de 1822.
Também do ponto de vista heráldico a forma da orla é inovadora. A rigor, a orla é uma peça de segunda ordem que circunda o campo, assim como a bordadura, mas, à diferença desta, não se firma no bordo, mas dele fica a uma distância igual à da sua largura. A orla mede, normalmente, um doze avos da largura do escudo, metade da bordadura. Acertadamente, o Decreto de 18 de setembro de 1822 precisa que a esfera com a cruz está "circulada de dezenove estrelas de prata em uma orla azul". Ora, o termo circulada deixa claro que essa orla não está traçada rente aos bordos do escudo, mas tem forma circular.
Pode-se afirmar com bastante segurança que a inspiração dessas figuras foi a bandeira dos Estados Unidos, o único símbolo nacional que naquele momento mostrava estrelas representando os estados que se tinham unido para formar a nação. As armas brasileiras têm, não obstante, um arranjo mais eloquente, pois "uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul" é como dizer que o reino do Brasil é integrado de forma inquebrantável pelas suas "dezenove províncias compreendidas entre os grandes rios, que são os seus limites naturais e que formam a sua integridade".
Mapa do Império do Brasil por C. Brockes e C. Held, 1878 (imagem disponível Biblioteca Nacional Digital). |
Em 1822, essas dezenove províncias eram o Grão-Pará, o Maranhão, o Piauí, o Rio Grande do Norte, o Ceará, a Paraíba, Pernambuco, Alagoas, a Bahia, Sergipe, o Espírito Santo, o Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, o Rio Grande do Sul, a Cisplatina, Minas Gerais, Goiás e o Mato Grosso. Desde 1828, quando a Lei de 30 de agosto reconheceu a independência da Cisplatina, hoje Uruguai, até 1850, quando a Lei n.º 582 elevou a comarca do Alto Amazonas, no Grão-Pará, à categoria de província com a denominação de Amazonas, houve dezoito províncias, mas o número subiu para vinte em 1853, quando a Lei n.º 704 elevou a comarca de Curitiba, em São Paulo, a província com a denominação de Paraná. Essa alteração refletiu-se desde então no brasão, embora não se tenha oficializado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário