06/09/22

"UMA ESFERA ARMILAR DE OURO"

Bicentenário das armas nacionais: "Será d'ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil em campo verde uma esfera armilar de ouro...".

A esfera armilar é um instrumento astronômico. Parece um globo terrestre porque as armilas que lhe dão nome simulam, efetivamente, os círculos que se traçam no estudo do movimento aparente do sol e das estrelas em volta da Terra, daí que esta ficasse, na verdade, dentro da esfera armilar, na forma de uma esfera menor. Como outros instrumentos dessa espécie, usava-se na navegação.

No século XIV, tornou-se habitual que os príncipes e senhores tivessem, além de um brasão, uma empresa. A empresa ou divisa é um emblema consistente de uma figura ou corpo e um mote ou alma, solto de regras sintáticas, pessoal e intransferível, portanto em tudo diferente do brasão. A causa do seu surgimento é a vinculação de certos brasões a territórios, em detrimento de quem os governava: as chamadas armas de dignidade, como as classifica já Bártolo de Sassoferrato no seu De insigniis et armis (1358). Assim, quando Dom Afonso III acrescentou a bordadura castelada às armas reais portuguesas em 1260 e Dom João I, as pontas da cruz de Avis em 1383, fizeram-no com todo o direito de quem dispunha duma coisa sua, mas quando Dom João II tirou esse segundo acrescentamento e endireitou os escudetes dos flancos em 1485, ouviu o seu conselho, porque então se tratava de um assunto de estado.

"Em campo verde uma esfera armilar de ouro...".
"Em campo verde uma esfera armilar de ouro...".

Todos os reis da Casa de Avis usaram de empresas. A de Dom João I tem por corpo um ramo de pilriteiro e por alma Por bem; a de Dom Duarte tem por corpo um ramo de hera e por alma Tayas serey; a de Dom Afonso V tem por corpo um rodízio que borrifa água e por alma Jamais; a de Dom João II tem por corpo um pelicano em sua piedade e por alma Pola lei e pola grei; a de Dom Manuel I tem por corpo uma esfera armilar e por alma Spera in Deo.

Portanto, durante o reinado do Venturoso a esfera armilar assinalava a sua presença, o seu poder, a sua liberalidade ou o seu favorecimento. Depois da sua morte, passou a relembrar um tempo de riqueza e prosperidade jamais igualado e, como é um instrumento astronômico e identificava o primeiro que se intitulou senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Etiópia, da Arábia, da Pérsia e da Índia, passou a simbolizar os domínios ultramarinos. Ainda no século XIX, a macuta, moeda de cobre que circulou na África portuguesa, trazia as armas reais suportadas por uma esfera armilar, arranjo que a cronologia distingue das armas do Reino Unido e faz precursor das armas republicanas.

A esfera armilar nas signas navais portuguesas.
A esfera armilar nas signas navais portuguesas.

Portanto, uma vez incorporada na emblemática estatal, a esfera armilar não tinha uma relação exclusiva com essa ou aquela porção do império português. Com efeito, a moeda dita manuel, precisamente por ostentar a empresa do rei no reverso, foi cunhada em Goa de 1510 a 1521 e durante a regência e reinado de Dom Pedro II figurava no pavilhão mercante tanto da Índia como do Brasil. Tendo, porém, caído em desuso sob Dom João V na carreira da Índia, vinculou-se mais estreitamente aos domínios americanos, o que foi reforçado pela emissão regular de espécies com essa figura pelas casas da moeda brasileiras, como mostrei na postagem de 22/02/2021, num período em que o peso da América cresceu de tal modo dentro do império que veio salvar a monarquia quando o exército de Napoleão marchou sobre o Reino e o Rio de Janeiro refugiou a Corte.

Assim, quando Dom João VI deu pela falta de um brasão que distinguisse o recém-ereto reino, deve de ter parecido óbvio que a esfera armilar já o representava oficiosamente, bastando ordená-la conforme o código heráldico: "de ouro em campo azul". O príncipe Dom Pedro, que sempre cuidou de justificar os seus atos na regência do Brasil como reações aos abusos das Cortes, as quais chegou a acusar de sequestrar o rei, afastando de si o risco de incorrer em suspeitas de lesa-majestade, foi literal em relação à figura principal das armas da nova nação: "que se conservem as armas que a este Reino foram dadas pelo Senhor Rei Dom João VI, meu augusto pai, na Carta de Lei de 13 de maio de 1816" (Decreto de 18 de setembro de 1822).

É fácil imaginar que à data do citado decreto nada estava assegurado: até onde as Cortes iriam? Dom João VI permaneceria em Portugal? Dom Pedro usurparia o título de rei do Brasil a seu pai? As províncias setentrionais se uniriam ao destino das meridionais? Mais uma vez, a heráldica presta-se a refletir visualmente certo projeto político: num cenário de tanta incerteza, a conservação da esfera armilar mostrava a intenção de uma separação o menos traumática.

O ouro da esfera armilar nas armas do Brasil unido e do Brasil separado é o amarelo que, juntamente com o verde, constituem as nossas cores nacionais até hoje. Assim como se atribuiu muitas vezes o verde à Casa de Bragança, o amarelo tem sido atribuído à Casa de Habsburgo-Lorena, mas diferentemente daquele, ao qual convêm, a meu ver, as ponderações que fiz na postagem anterior, neste caso há, de fato, coincidência: de ouro são os campos das antigas armas imperiais, das ducais da Lorena e das condais de Habsburgo. A própria bandeira austríaca após a dissolução do Sacro Império tinha duas faixas horizontais, uma preta e a outra amarela. De todo modo, essas atribuições parecem ter sido uma estratégia diplomática. Francisco Pereira Lessa em artigo de 1930 cita um relatório de Antônio Teles da Silva, embaixador em Viena e depois marquês de Resende:

[A cor verde foi adotada] por ser esta a da Casa de Bragança, e a amarela, a da Casa de Lorena, de que usa a Família Imperial da Áustria. Estas explicações pareceu-me haverem plenamente satisfeito a Sua Alteza, desvanecendo a ideia pouco favorável que aqui se tinha do espírito com que se fizeram tais mudanças, e mais, que Metternich ficara lisonjeado com o motivo por que figurava na bandeira a cor amarela.

"Sua Alteza" era o príncipe Klemens von Metternich, o chanceler austríaco e um dos grandes do mundo pós-Napoleão.

Como também coloquei na postagem anterior, é preciso respeitar a explicação nacionalista de que o ouro/amarelo representa as nossas riquezas. Porém do ponto de vista acadêmico, impõe-se observar que, na falta de um estandarte de uso consolidado (como as cruzes britânicas e nórdicas), Dom Pedro I não fez senão seguir a melhor prática, que é tirar as cores nacionais do campo e da peça ou figura principal das armas:

  • Espanha: vermelho e amarelo, dos esmaltes coincidentes nas armas de Castela, Aragão e Navarra;
  • Áustria: preto e amarelo, dos esmaltes das armas do Sacro Império;
  • Prússia: preto e branco, dos esmaltes das armas reais;
  • Portugal: branco e azul, dos esmaltes das armas de Portugal antigo.

Portanto, de uma esfera armilar de ouro em campo de verde, verde e amarelo.

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