Bicentenário das armas nacionais: "Será d'ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil em campo verde...".
Não há nações antes da Revolução Francesa. Certamente, as pessoas julgam desde tempos imemoriais que se juntam em povos, mormente por falarem a mesma língua. Mas no Antigo Regime mais que o idioma ou a cultura importava o laço de vassalagem. Assim, em 1572 cantava Camões que os portugueses eram "ũa gente fortíssima de Espanha" (Os lusíadas, 1, 31), porque a Espanha era a Hispânia romana, e até 1757, já em pleno iluminismo, o ensino do português aos índios não esteve no programa da conquista da América, porque indispensável era professar a fé cristã, já que a religião não se distinguia do estado e o estado não se distinguia da Coroa.
Depois da Revolução Francesa, não é mais a soberania de um príncipe que une os sujeitos que vivem dentro de certo estado, mas a comunhão de uma geografia, uma história, uma língua, uma literatura, uma cultura ou, em suma, a pertença a uma nação. No entanto, a geografia nacional, a história nacional, a língua nacional, a literatura nacional, a cultura nacional não são entidades da natureza, mas construtos sociais. Essa construção denomina-se nacionalismo.
Como remontar a origem da nação o mais longe ao passado é uma operação básica do nacionalismo, pode causar grande confusão o fato de que na Idade Moderna a marinha de guerra içava um pavilhão, a mercante outro e o exército desfraldava tantos estandartes quantas as suas unidades. Ora, a frota mercante não pertencia ao monarca para arvorar a sua bandeira e mesmo muito da força armada terrestre eram empresas privadas que a Coroa aprovava por ter com elas interesses mútuos. Assim, os navios que exploraram a costa brasileira ostentavam a cruz da Ordem de Cristo porque efetivamente foram armados às expensas dessa ordem e os bandeirantes levavam bandeiras próprias, como estandartes de santos, porque empreendiam as suas jornadas "com despesa de sua fazenda", como se dizia. Se não há nações antes da Revolução Francesa, logo não há, tampouco, símbolos nacionais: o pano branco com as armas reais não representava a pátria, mas assinalava o domínio da Coroa.
É por isso que tendo as Cortes Gerais e Extraordinárias derrubado o Antigo Regime no começo de 1821, já em agosto passaram uma lei adotando "um laço nacional, composto na forma do modelo junto, das cores branca e azul, por serem aquelas que formaram a divisa da Nação Portuguesa desde o princípio da Monarquia em mui gloriosas épocas da sua história". Trata-se de um ato quase tão transcendente quanto a adoção de uma bandeira nacional, pois pela primeira vez o uso de uma insígnia se estendia "a todos os cidadãos".
"Em campo verde". |
Como a própria citação dá a entender, escolheram-se o branco e o azul por serem os esmaltes das armas de Portugal antigo, já que o branco equivale à prata. É a mesma operação que Dom Pedro I aplicou ao criar a bandeira nacional brasileira: o pano é verde como o escudo; o losango é amarelo como a figura principal, isto é, a esfera armilar de ouro, o metal equivalente a essa cor. Portanto, a questão não é por que o campo das armas é verde; antes, convém perguntar por que a bandeira é verde.
A comparação com a vizinhança latino-americana pode ser muito elucidativa. Com efeito, a Espanha tem uma das bandeiras nacionais mais antigas: foi adotada ainda sob o Antigo Regime, por Real Decreto de Carlos III em 1785, como pavilhão de guerra. As três faixas horizontais — vermelha, amarela e vermelha —, tendo a do meio o dobro da largura, refletem os esmaltes das armas de Castela, Aragão e Navarra e não se confundem com nenhuma bandeira de outro país hispânico. Ou melhor, à medida que as nações hispano-americanas se construíam, tomaram o cuidado de criar bandeiras nacionais que do alto de uma fortaleza costeira ou de uma embarcação no mar contrastassem com a bandeira espanhola.
Diferentemente dos seus vizinhos, o Brasil tinha um brasão antes de se separar de Portugal: uma esfera armilar de ouro firmada em campo de azul. Assim, teria sido razoável e fácil escolher o azul e o amarelo para as nossas cores nacionais, mas esta segunda cor, dependendo do matiz, da luz ou da distância, pode ser avistada como branco, o que causaria confusão com as cores nacionais portuguesas. No rol das cores heráldicas, dispunha-se, pois, do vermelho, do negro, do verde e da púrpura.
Soldados do Regimento de Fuzileiros de Infantaria de Paranaguá em 1806 (aquarela de João Pedro Mulato; imagem disponível no perfil A Terra de Santa Cruz, no Facebook). |
O vermelho foi, de cara, descartado, pois era o mais próximo a uma cor nacional até a dita lei de 1821, por ser a cor do estandarte do rei e da libré da Casa Real desde o reinado de Dom João V (1705-50). O preto, com o seu forte vínculo cultural com a morte, definitivamente não servia a uma nação que acabava de começar a sua vida. A púrpura tinha, ao contrário, um nobilíssimo simbolismo, mas depois de se ter perdido a fórmula antiga da sua extração (leia-se a postagem de 06/02/2021), sempre foi mal entendida e reproduzida de forma hesitante. Restava o verde.
Muito se tem repetido que o verde era a cor da Casa de Bragança, mas essa afirmação precisa de muita ponderação. Podem-se, sim, aduzir alguns fatos, a meu ver insuficientes para se chegar a afirmar tal, afinal os esmaltes das armas dessa casa eram os mesmos da realeza, quer se levem em conta as suas primeiras, segundas ou terceiras armas (leia-se a postagem de 09/01/2021).
O verde na emblemática régia e naval portuguesa. |
De fato, o verde está presente na emblemática régia portuguesa, já que tem essa cor a cruz da Ordem de Avis, cujas pontas figuraram na bordadura das armas reais de 1383 a 1485. Verdes com a cruz da Ordem de Cristo eram as bandeiras dos terços portugueses na Guerra da Restauração (1640-68), como se vê no biombo dos viscondes de Fonte Arcada (conservado no Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa). Verde e branco eram as cores da libré antiga da Casa de Bragança até 1728, quando Dom João V as trocou pelo encarnado para as casas real, da rainha e do príncipe, segundo António Caetano de Sousa na História genealógica da Casa Real portuguesa (VII, p. 275). Sete listras horizontais, quatro verdes e três brancas, formavam o pavilhão mercante do Brasil para os navios que tinham menos de quinze peças de artilharia durante os reinados de Dom João IV e Dom Afonso VI e o pavilhão mercante do Reino para os navios que tinham menos de vinte peças desde a regência de Dom Pedro II. As mesmas cores compunham, provavelmente, as bandeiras e os estandartes regimentais durante o reinado de Dom João V, os quais eram gironados e contragironados.
Presumindo-se que em 1822 se conservasse a memória desses fatos, o verde, juntamente com o amarelo, oferecia, pois, a vantagem de distinguir os símbolos nacionais brasileiros dos portugueses sem causar demasiada estranheza. De certo modo, o mesmo se passou no Rio da Prata: o azul-celeste e o branco argentinos diferem bastante do vermelho e amarelo espanhóis, mas também são as cores da Ordem de Carlos III.
Estes apontamentos são acadêmicos. A explicação de que o verde representa as nossas matas continuará a ser tão boa quanto sempre foi. Diz Joaquim Norberto de Sousa Silva em artigo de 1890 que o próprio Pedro I a invocou:
Não gostou o paisagista [Emílio Taunay, depois barão de Taunay] nem do desenho nem das combinações das cores da bandeira. Apresentou sensatas e razoáveis objeções, que Dom Pedro aceitou de bom humor, mas não cedeu da adoção das cores, não só porque representavam a primavera eterna do Brasil e o ouro, a sua principal riqueza, como porque já estava lavrado o decreto da sua criação.
Na verdade, a perspectiva acadêmica acabará tornando-se demasiado estreita se não for capaz de compreender que a simbolização é tão relevante quanto a satisfação de necessidades práticas, afinal não é a análise crítica, mas sim a narrativa heroica que constrói a nação.
Escuso-me, enfim, de abordar a forma do escudo, por já ter tratado disto mais de uma vez neste blog (leiam-se, em especial, as postagens de 25/01/2021 e 24/07/2021).
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