24/09/22

BICENTENÁRIO DAS ARMAS NACIONAIS: CRÍTICAS

Bicentenário das armas nacionais: críticas.

A heráldica é uma arte e as artes, no sentido contemporâneo do termo, estão sujeitas ao gosto. Na postagem de 06/09/21, argui que há duas espécies de estilo: o da época e o pessoal. O mesmo direi do gosto, se é que seja possível desvinculá-lo do estilo. Penso que discernir esses fatos seja imprescindível a qualquer crítica racional.

Há quem critique os símbolos nacionais do Brasil desde o momento mesmo em que foram criados, tanto em 1822 como em 1889, mas alguns não passavam do não gostar de verde e amarelo, por exemplo. Não à toa, a palavra critério tem a mesma raiz de crítica: para se criticar algo, é preciso ter critério; preferir uma coisa à outra por mero gosto não parece promissor para se apresentar qualquer argumento.

Assim, creio que ao longo desta série de postagens demonstrei suficientemente que as primeiras armas nacionais são singelas, belas e representativas. Com efeito, há apenas dois conjuntos de figuras no campo, mais a coroa e os suportes. Eventualmente, acrescentavam-se outros ornamentos externos, mas isso se fazia com a licença poética e segundo a moda próprias da época.

Há quem julgue que o brasão do Império são armas a inquirir, isto é, descumprem a regra de iluminura, mas se se tomar a sentença "de verde com uma esfera armilar de ouro", ver-se-á que não: uma figura de metal em campo de cor. A cruz da Ordem de Cristo é, de fato, vermelha, mas não está diretamente no campo, e sim atravessando a esfera e formando com ela um conjunto de figura principal de metal com figura secundária de cor. É verdade que a orla de azul, esta sim, fica no campo, sobrepondo cor a cor, daí que com frequência se lhe acrescentem perfis de prata, mas me parece um preciosismo, pois além de ter uma posição secundária, sendo uma peça, pode estar cosida.

Ordenamento alternativo das armas nacionais no início da República.
Ordenamento alternativo das armas nacionais no início da República.

O caso do brasão da República é bem diferente. O escudo é simplicíssimo: de azul com cinco estrelas de prata postas como a constelação do Cruzeiro do Sul e uma bordadura de azul, perfilada de ouro e carregada de vinte estrelas de prata. Se a ele se tivessem apenas acrescentado os ramos de cafeeiro e tabaco por suportes e uma estrela por timbre, como se chegou a praticar no começo do regime (confira-se a postagem de 22/02/21), teria cabido aos artistas enfeitá-lo com bandeiras e troféus ao reproduzirem-no na moeda, em fachadas etc. Acontece, porém, que foi criado e adotado por desenho já com um excesso de ornamentos externos, alguns de heráldica bastante duvidosa.

Assim, a espada sob a estrela era claramente um afago aos militares que deram o golpe de estado contra a monarquia e pretendiam tutelar a república. O listel com o nome do país e a data da instauração do regime deu origem à jaboticaba da armaria brasileira: a adição do topônimo e/ou de datas magnas ao brasão no lugar de uma divisa, que é o elemento heráldico apropriado.

Adaptações das armas nacionais no início da República.
Adaptações das armas nacionais no início da República. (1)

De fato, os republicanos não precisavam criar novos símbolos nacionais e o Marechal Deodoro da Fonseca não tinha essa intenção, como a atestou num despacho de 17 de novembro de 1889, fac-similado por Luiz Marques Poliano em Heráldica (1986, p. 231):

Despacho do General Deodoro em uma proposta para a nova bandeira da República. 17-11-89. Henriques.
"A Bandeira Nacional, já tão conhecida, e reconhecidamente bela, continua, substituindo-se a coroa sobre o escudo pelo cruzeiro."
Manuel Deodoro da Fonseca

Na verdade, teria bastado tirar a coroa e fechar os ramos de cafeeiro e tabaco como uma grinalda, porém todos entendiam, como se constata, que era necessário trocá-la por um símbolo republicano, daí não só a ideia do Marechal Deodoro, mas também o barrete frígio e a estrela, mas nada disso ficava bem, evidentemente. Além disso, a cruz da Ordem de Cristo causava incômodo. Em 1822, representava a continuidade histórica do país desde o seu descobrimento e a sua conquista; em 1889, lembrava o padroado, que tantos dessabores dera tanto ao estado como à igreja, cujo divórcio os republicanos defendiam e consumaram já em janeiro de 1890.

A história prova, enfim, que às quedas de monarquias se seguem renovações dos símbolos nacionais: em Portugal (1910), manteve-se o brasão, mas se mudaram as cores da bandeira; na Alemanha (1918), manteve-se a águia, mas se mudaram as cores da bandeira; na Espanha (1931-1939), manteve-se o brasão, mas se mudou de bandeira; na Itália (1946), manteve-se a bandeira, mas se mudou de emblema. O do Brasil foi apenas o primeiro caso.

Brasão ou bandeira, mudou-se o que mais representava o regime deposto. No caso brasileiro, era o escudo que suportava a coroa e carregava figuras muito vinculadas à dinastia. Como o brasão estava presente na bandeira, inevitavelmente também esta se alterou. Outra vez, podem-se fazer várias críticas a Raimundo Teixeira Mendes e Artur Sauer, os criadores da bandeira e do brasão assumidos pelo governo provisório, mas é justo reconhecer que a República procurou manter os conceitos dos antigos símbolos nacionais.

A esfera armilar e a esfera celeste nos símbolos do Brasil.
A esfera armilar e a esfera celeste nos símbolos do Brasil.

Ora, a esfera armilar é o instrumento e a esfera celeste é o objeto que por ele se estuda. As estrelas da bandeira nacional simulam o céu no Rio de Janeiro quando o Cruzeiro do Sul atinge o zênite, como se fosse observado por uma esfera armilar. É por isso que as constelações não têm aí a forma que se vê da Terra, mas estão invertidas: a esfera armilar projeta o firmamento, isto é, a ideia de que as estrelas se firmam numa esfera dentro da qual se encerra a Terra. Ora, ao manejar um simulacro desse universo, o estudioso situa-se além do firmamento, observando-o pelo avesso.

É claro que Teixeira Mendes e os seus colaboradores tiveram de tomar fortes licenças poéticas ao transformar um trabalho técnico — a projeção de um aspecto do céu mediante certo instrumento  num símbolo nacional, licenças duramente atacadas pelos detratores desse símbolo. Seja como for, é razoável reconhecer que foi uma maneira inteligente, talvez sofisticada, de manter o conceito da esfera armilar — símbolo do Brasil desde o período colonial —, ao tempo que resolveu o problema de pôr uma figura de cor no centro do losango amarelo. A propósito, a mesma cor do escudo que Dom João VI deu ao reino do Brasil em 1816, que também era redondo.

Outra operação inteligente foi a troca da cruz da Ordem de Cristo pela constelação do Cruzeiro do Sul, a qual vou comentar mais detidamente no dia 1.º de dezembro, ocasião em que se celebrará o bicentenário da Imperial Ordem do Cruzeiro.

Nota:
(1) A estrela vermelha tornou-se símbolo comunista a partir de 1918 na conjuntura da Revolução Russa. Portanto, não tinha nenhuma conotação esquerdista no ocaso da monarquia brasileira.

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