Como a heráldica gentilícia não está mais sob o controle estatal, qualquer um pode assumir armas para si, mas deve antes compreender esse sistema.
Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:
(6) His præmissis, in quæstione proposita distingue: quandoque unus assumit arma quæ alius portavit ab antiquo, et illius non interest, nec ex hoc verisimiliter lædi potest. Exemplum: Teutonicus tempore indulgentiæ venit Romam, ubi reperit quemdam Italicum arma et insignia suorum antiquorum portantem, et de hoc volebat conqueri. Certe non poterit: tanta enim est distantia inter utriusque domicilium, quod ex hoc ille primus lædi non potest. Et in his in quibus quadam publica facultate quis occupat sibi usum, non licet conqueri nisi ex causa magna (D, 43, 13, 1, 6 [1]).
(7) Quandoque potest contingere quod alterius multum interest. Quid enim si homo odii plenus, cujus vitæ multi insidiantur, assumeret arma et insignia hominis pacifici et quieti? Certe illius interest et poterit facere eum prohiberi. Sicut enim potest peti prohibitio ne ipsius arma seu insignia vituperiose portentur, ut dictum est, multo fortius potest peti prohibitio ne ex hoc, propter unitatem armorum, alius pro alio occidatur vel injurietur. Idem, si per violentiam primi aliquid spectat quietem popularium (C, 1, 4, 4 [2]; X, 5, 31, 14 [3]), nam ad officium judicis spectat quies popularium (D, 1, 12, 1, 12 [4]).
Quandoque potest esse quod multorum de populo interest. Ponamus exemplum in aliis signis quam in his quæ portantur pro armis. Pone quemdam fabrum doctissimum qui in gladiis et aliis suis operibus facit certa signa, ex quibus opus hujus magistri esse dignoscitur, et ex hoc tales merces melius venduntur et avidius emuntur. Posito quod alius faceret tale signum posset prohiberi, quia ex hoc populus decipitur: accipitur enim opus unius magistri pro opere alterius (C, 7, 6, 5 [5]; X, 5, 6, 15 [6]).
(8) Et eadem ratione dico in signis quibus utuntur notarii (C, 1, 51, 14, 2 [7]; N, 73 [8], et ibi notatur quod si alius signum unius assumeret, potest prohiberi). Idem in signis quibus utuntur mercatores. Idem in signis quibus utuntur fabricatores chartarum de papyro et similium per easdem rationes, et hoc similiter expeditur officio judicis, ut dictum est.
(6) Adiantado isso, na questão proposta distinga-se: às vezes um assume as armas que outro tem trazido desde antigo e isso não o afeta. Não pode verossimilmente ser lesado por isso. Exemplo: no tempo da indulgência, um alemão veio a Roma, onde encontrou um italiano que traz as armas e insígnias dos seus antepassados e queria queixar-se disso, mas em todo o caso não podia. Com efeito, há tanta distância entre uma morada e a outra que o primeiro não pode ser lesado por isso. Naquilo em que por certa provisão pública alguém toma o uso para si, não é permitido querelar senão por uma causa relevante (D, 43, 13, 6 [1]).
(7) Às vezes pode acontecer que afeta muito um dos dois. Com efeito, o que fazer se um homem cheio de ódio, cuja vida muitos espreitam, assumisse as armas e insígnias de um homem pacato e quieto? Definitivamente, afeta-o e poderá fazer com que seja proibido. Com efeito, assim como se pode pedir a proibição para que não se tragam as suas armas de modo vituperioso, como se disse, muito mais fortemente se pode pedir a proibição para que, por causa da identidade de armas, um não seja morto ou injuriado pelo outro. O mesmo se por violência do primeiro algo visa ao sossego social (C, 1, 4, 4 [2]; X, 5, 31, 14 [3]), pois à função do juiz cabe o sossego social (D, 1, 12, 12 [4]).
Às vezes pode acontecer que afeta muita gente. Vejamos um exemplo sobre outros sinais, diferentes dos que se trazem por armas. Digamos que certo ferreiro é muito habilidoso e faz determinados sinais nas espadas e em outras obras suas, pelos quais se reconhece que a obra é desse mestre e por isso se vendem melhor tais mercadorias e se compram mais avidamente. Posto que outro fizesse tal sinal, poderia ser proibido, porque o povo é enganado por isso. Com efeito, toma-se a obra de um mestre pela obra de outro (C, 7, 6, 5 [5]; X, 5, 6, 15 [6]).
(8) Pela mesma razão, digo sobre os sinais de que usam os notários (C, 1, 51, 14, 2 [7]; N, 73 [8]; note-se aí que se um assumisse o sinal de outro, pode-se proibir). O mesmo sobre os sinais de que usam os mercadores. O mesmo sobre os sinais de que usam os fabricantes de papel e semelhantes, pelas mesmas razões. Similarmente, isso é desembaraçado pela função do juiz, como se disse.
[2] C, 1, 4, 4: Mimæ et quæ ludibrio corporis sui quæstum faciunt publice habitu earum virginum quæ Deo dicatæ sunt non utantur (Que as comediantes e aquelas que tiram ganho por escárnio do seu corpo não usem publicamente o hábito das virgens que se dedicaram a Deus).
[3] X, 5, 31, 14: Privati homines regulariter nequeunt constituere collegium et habere signa collegii, nisi eis aliter concedatur. Dilecta in Christo filia abbatissa Jotrensis nobis insinuare curavit, quod, cum presbyteri et clerici Jotrensis ecclesiæ Meldensis diœcesis non consueverint habere sigillum, nec sint unum corpus ita, quod capitulum appellaretur, nihilominus tamen contra voluntatem ipsius abbatissæ, quæ ipsorum caput est et patrona, sigillum habere contendunt (...). Discretioni vestræ mandamus, quatenus, inquisita super his diligentius veritate, si vobis constiterit ita esse dictis presbyteris et clericis auctoritate nostra inhibeatis expresse, ne præsumant vel de novo fabricare sigillum, vel uti eo, si forte noviter fuerit fabricatum (X, 5, 31, 14: As pessoas privadas não podem constituir regularmente um colégio nem ter os sinais de um colégio, a não ser que se lhes conceda de outro modo. A abadessa de Jouarre, dileta filha em Cristo, cuidou em nos comunicar que, como os presbíteros e clérigos da igreja de Jouarre, da diocese de Meaux, não costumavam ter um selo e assim não são um só corpo, que seria chamado cabido, nada menos contra a vontade da própria abadessa, pretendem ter um selo (...). Confiamos ao vosso discernimento até em que medida, inquirida a verdade sobre estes da maneira mais diligente, se vos tiver parecido certo que assim seja, inibais com a nossa autoridade os ditos presbíteros e clérigos, expressamente para que não ousem fabricar de novo um selo ou usar de um, se acaso tiver sido novamente fabricado).
[4] D, 1, 12, 12: Quies quoque popularium et disciplina spectaculorum ad præfecti Urbi curam pertinere videtur: et sane debet etiam dispositos milites stationarios habere ad tuendam popularium quietem et ad referendum sibi quid ubi agatur (Vê-se que também o sossego social e a disciplina dos espetáculos concernem à administração do prefeito da Cidade, e seguramente deve também ter soldados a postos para proteger o sossego social e reportar a si o que se passar aí).
[5] C, 7, 6, 6: Sed et qui domini funus pileati antecedunt vel in ipso lectulo stantes cadaver ventilare videntur, si hoc ex voluntate fiat vel testatoris vel heredis, fiant illico cives Romani. Et ne quis vana liberalitate jactare se concedatur, ut populus quidem eum quasi humanum respiciat multos pileatos in funus procedentes aspiciens, omnibus autem deceptis maneant illi in pristina servitute publico testimonio defraudati: fiant itaque et hi cives Romani, jure tamen patronatus patronis integro servando (Mas também alguns andam na frente do funeral do dono usando píleo ou veem-se abanando o cadáver no leito. Se isso se fizer por vontade do testador ou do herdeiro, tornem-se imediatamente cidadãos romanos. E para que ninguém se permita gabar de vã liberalidade, certamente para que o povo se volte a isso como se fosse gentil, olhando muitos com píleo caminhando para funeral, mas enganados todos, ficam aqueles frustrados na antiga servidão com o público testemunho, tornem-se também estes cidadãos romanos, mas conservando integramente por direito o patronato do patrão).
[6] X, 5, 6, 15: In nonnullis provinciis a Christianis Judæos seu Sarracenos habitus distinguit diversitas; sed in quibusdam sic quædam inolevit confusio, ut nulla differentia discernantur. Unde contingit interdum, quod per errorem Christiani Judæorum seu Sarracenorum, et Judæi seu Sarraceni Christianorum mulieribus commiscentur. Ne igitur tam damnatæ commixtionis excessus per velamen erroris hujusmodi ulterioris excusationis possint habere diffugium: statuimus, ut tales utriusque sexus in omni Christianorum provincia et omni tempore qualitate habitus publice ab aliis populis distinguantur, cum etiam per Moysen hoc ipsum legatur eis injunctum (Em algumas províncias, a diversidade de vestimenta distingue os judeus ou sarracenos dos cristãos, mas em outras cresceu de tal modo certa confusão que não se discernem por nenhuma diferença. Daí às vezes ocorra que, por erro, os cristãos se misturem com as mulheres dos judeus ou dos sarracenos e os judeus ou sarracenos, com as dos cristãos. Por conseguinte, para que os excessos de tão danosa mistura não possam ter a dispersão de uma ulterior desculpa pelo encobrimento de um erro dessa espécie, estabelecemos que em toda a província de cristãos e em todo o tempo, tais de um sexo e do outro se distingam publicamente de outros povos pela qualidade da vestimenta; como se lê, também isto lhes foi imposto pelo próprio Moisés).
[7] C, 1, 51, 14, 2: Nec callidis machinationibus hujusmodi legem putet quis esse circumscribendam et, si non consiliarii signum quod solitum est chartis imponat, sed alias quasdam litteras excogitatas assimulaverit, existimans ei licere fungi quidem memorato officio, sub hujusmodi tamen umbra latere, cum in legem committant hi, qui vigorem ejus scrupulosis et excogitatis artibus eludere festinant (Não pense ninguém que há de se manipular a lei por maquinações ardilosas dessa espécie. Se não impuser nos papéis o sinal de conselheiro que é o costumeiro, mas tiver simulado outras letras quaisquer inventadas, julgando ser-lhe certamente permitido cumprir com algum dever famoso, porém esconde sob uma sombra dessa espécie, visto que são culpados contra a lei aqueles que se precipitam a esquivar o seu vigor por artimanhas meticulosas e inventadas).
[8] N, 73: [5] Sed et instrumenta publice confecta licet tabellionum habeant supplementum, adjiciatur et eis antequam compleantur, sicut dictum est, testium ex scripto præsentia. [6] Oportet autem judicantes et si qua signa invenerint adscripta chartis, etiam hæc requirere et legere niti (plurima namque novimus et ex illis apparuisse), et non facile fidem litterarum ex aliarum collatione recipere propter dudum dictas a nobis causas ([5] Ainda que os instrumentos tenham sido lavrados publicamente, embora tenham o suplemento dos tabeliões, acrescente-se-lhes também, antes de ser completados, a presença de testemunhas por escrito, tal como se disse. [6] Se os judicantes acharem certos sinais inscritos nos papéis, convém ainda que os pesquisem e examinem para lê-los (por certo, também sabemos que muito tem aparecido a partir disso) e, a partir da comparação de outros, não admitam facilmente a fé das letras, pelas causas já ditas por nós).
Comentário:
O constituinte mínimo de um brasão é o próprio escudo ou campo. Na linguagem heráldica, um escudo que tem apenas o próprio campo denomina-se liso ou pleno. Na armaria portuguesa, por exemplo, os Meneses trazem de ouro liso e os Barretos, de arminho liso. Depois, há certo número de peças, que são figuras e padrões geométricos, também com os seus próprios nomes: pala, faixa, banda etc., e palado, bandado, faixado etc. Desde os primeiros tratados de heráldica, é consenso que estas são as armas mais antigas. Mas, por mais numerosas combinações que se possam obter daí, é um sistema finito. O que torna a heráldica versátil são as inumeráveis figuras do que existe no céu, na terra e nas águas e da obra humana. Mesmo assim, crescentes, leões ou castelos são tão frequentes que chega a parecer que esse conjunto é igualmente finito.
Portanto, em heráldica coincidências são inevitáveis, mas Bártolo deslinda isso magistralmente: para além de certa extensão territorial, eventuais estorvos por causa de coincidências cessam, já que a distância os torna remotos. É exatamente o que ocorre a pessoas homônimas: se convivem cotidianamente, precisam acordar um modo para evitar embaraços, mas se levam as suas vidas uma longe da outra, a homonímia não as afeta. Por conseguinte, desdobra-se que quem pretende assumir armas novas para si e quiser evitar involuntárias usurpações, deverá atentar para a sua "jurisdição heráldica" (sobre isso, leia-se a postagem anterior). Os limites dessa jurisdição correm, por assim dizer, em cima das fronteiras linguísticas (1), de modo que um brasileiro há de consultar não só as cartas de brasão passadas aqui, mas também a armaria portuguesa, e em virtude do alto grau de estatização da heráldica lusófona, não é algo difícil. De fato, desde o século XVI dispomos de uma série de armoriais oficiais e acadêmicos:
- O Livro do Armeiro-Mor (1509), de João do Cró, rei de armas Portugal;
- o Livro da nobreza e perfeição das armas (1512-41), de Antônio Godinho, escrivão da Câmara;
- o Tesouro de nobreza (1675), de Francisco Coelho, rei de armas Índia;
- o Tesouro da nobreza de Portugal (1783), de Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, reformador do Cartório da Nobreza, o armorial oficial até o fim da monarquia;
- o Arquivo heráldico-genealógico (1872), de Augusto Romano Sanches de Baena, visconde de Sanches de Baena;
- a Armaria portuguesa (1908), de Anselmo Braamcamp Freire;
- o Arquivo nobiliárquico brasileiro (1918), de Rodolfo Smith de Vasconcelos, barão de Vasconcelos, e Jaime Smith de Vasconcelos, barão de Smith de Vasconcelos;
- o Armorial português (tomo 1, 1920; tomo 2, 1923), de Guilherme Luís dos Santos Ferreira;
- o Armorial lusitano (1961), de Afonso Eduardo Martins Zúquete.
O que falta no espaço lusófono não são fontes para conhecer as armas gentilícias enquanto foram reguladas pelo estado; falta pedagogia para mostrar ao neófito como tudo isso funcionava e que possibilidades restam hoje. Efetivamente, o amável leitor que teve suficiente interesse para chegar até aqui deve estar-se perguntando: diante de tantas restrições e diligências, o que fazer para ingressar na comunidade heráldica hodierna?
Voltemos às armas dos Gamas. Vou dar uma opinião muito particular, tanto que vou começá-la dizendo o que não penso. Não acho que ninguém deva usar de quaisquer armas como se identificassem um sobrenome (ou, no português europeu, apelido). Nem mesmo quando os reis de armas, sem grandes ou nenhuns rigores genealógicos (2), ordenavam enfadonhos esquartelados com as armas das linhagens que constavam dos seus livros, o entendimento não era esse; entendia-se, seja sincera ou dissimuladamente, que alguém de sobrenome igual a um constante do armorial e que provava um mínimo de fidalguia provinha mesmo dessa linhagem armígera. No entanto, também não acho que, como não haja mais oficiais de armas (nem fidalgos), os brasões da nobreza luso-brasileira devam ser tratados como peças de museu, apreciáveis no seu valor histórico, mas inutilizáveis.
A meu ver, as armas gentilícias assumidas no Medievo em Portugal e as concedidas depois pelos soberanos desse reino e pelos imperadores do Brasil fazem parte do patrimônio semiótico do mundo lusófono. Isso, sim, pode-se dizer que acontecia: tais armas, especialmente as antiquíssimas, não pertenciam a uma casa, como noutros países (3), mas referiam a uma vaga ancestralidade, relativamente fácil de alegar dentro do devido processo administrativo. Façamos como Bártolo e concebamos um exemplo.
Na postagem anterior, exemplifiquei o funcionamento do sistema com as armas de Caetano Maria Lopes Gama, visconde de Maranguape, nascido no Recife em 1795. Agora imaginemos que um cidadão pernambucano qualquer tem esses mesmos sobrenomes, se interessa por heráldica e gostaria de assumir um brasão novo para si. Primeiro, fique claro que se quisesse tomar um escudo liso de púrpura simplesmente porque o roxo é a sua cor favorita, nada impediria. Mas digamos que prefere trazer referências familiares: o que poderia fazer? Dentre outras possibilidades, isto:
Observe-se que não se poderia verossimilmente acusar o armígero de qualquer usurpação. Quem conhece as armas dos Lopes (4) e dos Gamas capta as referências, mas estão tão diferençadas — dos Gamas o xadrezado convertido numa peça de disposição incomum e dos Lopes apenas a figura do primeiro e quarto quartéis —, que se o sistema oficial ainda vigesse, o conjunto seria certamente tido por mercê nova. Afinal, essas referências sequer constituem a figura principal. Esta alude à naturalidade do armífero: o leão e a cruz alta são, sem dúvida, os símbolos unívocos de Pernambuco. Com efeito, aparecem no brasão de Duarte Coelho, o primeiro donatário da capitania, a cruz na bandeira da Revolução de 1817, depois do estado, e o leão no timbre do brasão deste, além da própria alcunha de Leão do Norte, que o povo pernambucano orgulhosamente ostenta.
Enfim, prezado leitor, esta é a beleza da heráldica: com boa instrução e boas ideias ainda se podem fazer ótimas coisas.
(1) Isso é provado não só por países que foram metrópole e colônia, como Portugal e o Brasil ou o Reino Unido e o Canadá, mas também por países com uma diversidade linguística muito marcada, como a Espanha, onde a heráldica catalã claramente se distingue da castelhana.
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