26/02/21

PROPOSTA DE BRASÃO PARA CURRAIS NOVOS

Nem todo emblema de estado ou município é um brasão, mas de um bom emblema é possível criar um bom brasão. O de Currais Novos demonstra isto.

Na postagem anterior, expus que após a instauração da República, os estados e municípios brasileiros começaram a criar emblemas para si numa proporção que talvez só seja comparável ao acontecido em 1638, quando João Maurício de Nassau, conde de Nassau-Siegen e governador das conquistas no Brasil, ordenou armas para cada um dos concelhos sob o domínio holandês (1).

Curiosamente, a Constituição de 1891 era omissa quanto aos símbolos estaduais e municipais. Na verdade, a primeira constituição que abrangeu esse assunto foi a de 1946: "Os Estados e os Municípios podem ter símbolos próprios" (Art. 195, Parágrafo Único) (2). Presumo que tenha sido reação à constituição anterior, a do Estado Novo, que proibira os símbolos subnacionais:  "A bandeira, o hino, o escudo e as armas nacionais são de uso obrigatório em todo o país. Não haverá outras bandeiras, hinos, escudos e armas. A lei regulará o uso dos símbolos nacionais" (Art. 2).

Como apontei na mesma postagem, inicialmente não havia heraldistas; os projetos eram encomendados a artistas plásticos, o que era reforçado pelo estilo heráldico de então, muito naturalista. Alguns eram acertados, outros eram menos felizes. Em particular, sobressai a profícua parceria do historiador Afonso Taunay com o pintor José Wasth Rodrigues: aquele ordenava as armas e este as iluminava. Foram, na minha opinião, os melhores heraldistas de facto que o país teve durante a República Velha e a Era Vargas. Isso a partir de São Paulo, porque no Nordeste, um monge alemão tornou-se um dos maiores heraldistas do Brasil: o irmão Paulo Lachenmayer ingressou no Mosteiro de São Bento da Bahia em 1922 e graças ao seu trabalho não só as dioceses e o clero, mas também várias universidades e algumas cidades nordestinas têm ótimos brasões. Ouso até afirmar que na heráldica brasileira há uma "escola do Sudeste", cujas referências são Taunay e Wasth Rodrigues, e uma "escola do Nordeste", cuja referência é o Ir. Paulo.

Seja como for, da Constituição de 1946 em diante a demanda de símbolos municipais não carecia apenas de alguns bons heraldistas, mas de uma produção em escala industrial: em 1950, o Brasil tinha 1.890 municípios; em 1960, esse número saltou para 2.766; em 1970, para 3.952! Agravado pela falta de uma autoridade que regulasse, examinasse ou assessorasse, inevitavelmente se acabou criando muita porcaria. Pessoalmente, acho que do ponto de vista heráldico, os emblemas municipais brasileiros podem ser classificados assim:

  • Brasões: são emblemas heráldicos, isto é, perfeita ou aceitavelmente ordenados segundo as regras da armaria;
  • "insignoides": neologismo meu para designar os emblemas heraldizados, isto é, parecem brasões, mas não são brasonáveis, como um escudo com uma paisagem complexa;
  • emblemas (stricto sensu): funcionam como brasões, mas não têm sequer um escudo.

Em outras palavras, opero com dois critérios: a possibilidade de ser brasonado, que define a propriedade heráldica do emblema, e a forma de escudo, que lhe dá aparência de brasão. No entanto, para o senso comum, qualquer emblema de uma pessoa jurídica de direito público que seja usado como brasão é considerado brasão. E nem seria justo imputar isso apenas ao desconhecimento, porque a deficiência terminológica é gritante.

De fato, o emblema stricto sensu tem forma igual a uma empresa ou divisa, tanto que o Padre Claude-François Ménestrier, em La nouvelle méthode raisonnée du blason (1696), refere a elas como devises. O problema é que em português o termo empresa designa estritamente os emblemas pessoais e intransmissíveis em voga durante os séculos XV e XVI. Em contrapartida, divisa é uma palavra polissêmica até mesmo na heráldica: pode ser sinônimo de empresa, mas também de lema, e designa, ademais, uma peça, a faixa diminuta. No fim das contas, o emblema stricto sensu acaba sendo definido por eliminação: não é brasão nem parece um, tampouco selo nem empresa (estes todos emblemas lato sensu).

No caso de Currais Novos, os símbolos municipais estão estabelecidos no Art. 8.º da Lei Orgânica: "São símbolos do Município: a bandeira, o brasão de armas e o hino existente na data da promulgação desta Lei Orgânica. [Parágrafo único] Os símbolos do Município poderão ser modificados, no todo ou em parte, através de consulta popular". Além disso, em 2017 passou-se uma lei para impor o devido uso do brasão, em detrimento das marcas de gestão, iniciativa positiva a que aludi na postagem de 23/01.

LEI N.º 3.341, DE 25 DE OUTUBRO DE 2017
Dispõe sobre a obrigatoriedade de utilização do brasão do Município de Currais Novos/RN como único símbolo permitido nas propagandas e todos os bens materiais do Município.
O PREFEITO MUNICIPAL DE CURRAIS NOVOS, ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, no uso de suas atribuições legais, faz saber que a Câmara Municipal aprovou o Projeto de Lei n.º 17/2017, de autoria da Vereadora Tércia Leda Cardoso Bezerra, e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1.º O único símbolo permitido nas propagandas, veículos oficiais, papéis timbrados, obras, serviços e bens do Município de Currais Novos/RN é o brasão.
Art. 2.º As placas públicas, fardamentos dos servidores, papel timbrado, carros oficiais, todas as propagandas veiculadas por qualquer meio de comunicação, todos os bens públicos em que se possa gravar alguma menção à administração direta e indireta do Município, conterão somente a inscrição Prefeitura Municipal de Currais Novos/RN e o brasão.
Art. 3.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Prefeitura Municipal de Currais Novos/RN, Palácio Prefeito Raul Macedo, em 25 de outubro de 2017.
ODON OLIVEIRA DE SOUZA JÚNIOR
Prefeito

Eis o "brasão":

Emblema de Currais Novos. Imagem disponível no portal da prefeitura.
Emblema de Currais Novos. Imagem disponível no portal da prefeitura.

Agora o leitor entende o meu rodeio: isso não é um brasão! É singelo, belo, representativo, em suma, tem todas as qualidades de um bom emblema, mas para que a sua propriedade heráldica fosse ao menos discutível, seria preciso que houvesse aí um escudo ou campo. Curiosamente, na Câmara Municipal alguém percebeu isso e teve a brilhante ideia de jogar tudo dentro de um:

Marca da Câmara Municipal de Currais Novos. Imagem disponível no portal institucional.
Marca da Câmara Municipal de Currais Novos. Imagem disponível no portal institucional.

Isso não merece eufemismo, caro leitor: é um horror! Primeiro, não entendo por que algumas câmaras municipais querem possuir um brasão: o poder público, independentemente de ser executivo, legislativo ou judiciário, deveria usar o emblema da sua esfera, o que não impede adotar uma marca ou logotipo para uma identificação mais individualizada (3). No caso da Câmara Municipal de Currais Novos, uma marca baseada, por exemplo, na fachada da sua sede ficaria muitíssimo melhor. Depois, qual é o problema em o emblema do município não ser um brasão? Nenhum. O problema é chamar de brasão o que não é.

Esclarecida a matéria até aqui, farei nesta postagem uma proposta de brasão para Currais Novos seguindo a mesma linha da postagem anterior: formulando um ordenamento apropriado do ponto de vista heráldico sem desfigurar o emblema vigente. Antes, algumas informações sobre o lugar.

Currais Novos é a cidade que escolhi para trabalhar e viver quando ingressei no IFRN. No ano passado, Tércia Leda, a mesma vereadora que elaborou a lei citada acima, fez-me a gentileza de apresentar o meu nome à concessão da cidadania honorária pela Câmara Municipal, o que muito me honra. Segundo o IBGE, o município tinha 44.905 habitantes em 2020. Localiza-se na região geográfica intermediária de Caicó, encabeça a região geográfica imediata que leva o seu nome e integra a região histórica do Seridó. O seu PIB (R$ 695.677.500) em 2018 foi 13.º do estado e o IDH (0,691) em 2010, o sexto.

A origem de Currais Novos em nada difere das linhas gerais da colonização portuguesa do sertão nordestino: a concessão de sesmarias a certos colonos desbravadores para criar gado e ir reduzindo os povos indígenas. No caso, o pioneiro foi Cipriano Lopes Galvão, que veio de Pernambuco para tomar posse e habitar a data do Totoró em 1755. Nesse mesmo ano, a água esgotou-se no dia 26 de julho, memória de Sant'Ana e São Joaquim, mas à noite, após promessa do colono, caiu abundante chuva, que encheu os riachos e poços. O Coronel Galvão faleceu em 1764 e coube a seu filho homônimo, capitão-mor, cumprir o voto, doando meia légua de terra e erguendo nela em 1808 uma capela sob o título de Sant'Ana, perto da confluência dos riachos Totoró e São Bento, o mesmo lugar onde em 1760 seu pai levantara currais novos para tratar e negociar o gado, de modo que logo ficou conhecido como os Currais Novos do Capitão-Mor, denominação transmitida ao povoado que cresceu em torno da capela.

Quanto à formação política, a criação do distrito de paz precedeu a ereção da capela a freguesia, aquela por meio da Lei Provincial n.º 301, de 6 de setembro de 1854, esta pela Lei Provincial n.º 893, de 20 de fevereiro de 1884. A emancipação aconteceu no primeiro ano da República, pelo Decreto Estadual n.º 59, de 15 de outubro de 1890. O título de cidade foi concedido pela Lei Estadual n.º 486, de 29 de novembro de 1920.

Currais Novos atravessou três ciclos econômicos bem definidos. O primeiro engendrou-a e deu-lhe nome: a pecuária. O segundo foi a cotonicultura e o terceiro, a mineração da scheelita.

O algodoeiro (mais precisamente a espécie mocó) é nativo da região e o seu cultivo passou dos indígenas aos colonos. A Guerra Civil Americana (1861-65) causou um desabastecimento na Europa que foi, então, aproveitado pelos produtores brasileiros. Quando os Estados Unidos voltaram a suprir a demanda europeia, a produção nordestina sustentou o desenvolvimento da indústria têxtil nacional. No Rio Grande do Norte, a exportação de algodão superou a de açúcar a partir de 1905, deslocando o próprio eixo político do Litoral Sul para o Seridó na década de vinte. Esse ciclo chegou ao fim no início dos anos oitenta, quando a praga do bicudo assolou os algodoais e a produção, já combalida por deficiências estruturais, não se recuperou.

A scheelita é uma das fontes do tungstênio, metal que tem diversas aplicações na indústria. Esse ciclo tem balizas precisas: de 1942, quando foi descoberta a Mina Brejuí, a 1994, quando a sua lavra foi encerrada. Essa mina sozinha chegou a contribuir com 48% da produção nacional em 1969. Graças à exploração da scheelita, Currais Novos consolidou-se como a segunda cidade do Seridó potiguar. Contudo, a diminuição do consumo do tungstênio, a exaustão das reservas e o domínio do mercado pela China tornaram essa atividade inviável.

Percebe-se, portanto, que o emblema municipal é muito significativo para qualquer currais-novense que conheça minimamente a história da sua terra: o chapéu de vaqueiro refere ao ciclo da pecuária, os ramos de algodoeiro ao do algodão e as barras de minério (a qualidade do desenho usado pela prefeitura não ajuda, mas ficam abaixo do chapéu) ao da scheelita. Não é nada difícil ordenar um bom brasão com essas figuras.

Prefeito Odon Júnior hasteando a bandeira de Currais Novos na comemoração do centenário da elevação a cidade em 2020. Imagem disponível no perfil da prefeitura no Facebook.
Prefeito Odon Júnior hasteando a bandeira de Currais Novos na comemoração do centenário da elevação a cidade em 2020. Imagem disponível no perfil da prefeitura no Facebook.

Assim, à falta de escudo, que esmalte dar ao campo? É fácil: a bandeira municipal, que carrega o emblema, é azul, então de azul pode ficar também o escudo. Os ramos de algodoeiro devem, evidentemente, servir de suportes, do que restam, então, duas figuras: o chapéu e as barras de metal.

O chapéu é a figura principal. No desenho usado pela prefeitura, aparece amarelo, mas a julgar por outras reproduções, creio que a intenção original fosse colori-lo ao natural, ou seja, da cor de couro. No brasão, parece muito apropriado que seja iluminado de ouro.

Quanto às barras de metal, em vez de um desenho naturalista, até difícil de captar o referente (no mínimo, seria preciso que fosse tridimensional), proponho uma figura heráldica tradicional: a bilheta. Consiste num retângulo, ordinariamente posto na vertical. Origina-se, como tantos outros elementos heráldicos geométricos, de ornatos têxteis e recebeu esse nome por semelhar, precisamente, um bilhete. Pode representar qualquer objeto retangular, como cédulas, tijolos e, por que não, barras de metal. Decidi iluminá-las de prata porque é a coloração do tungstênio. O número de três tem motivação meramente estética, mas pode facilmente adquirir carga simbólica: as três minas (Brejuí, Barra Verde e Boca de Laje), os três ciclos econômicos, as três paróquias (Sant'Ana, Imaculada Conceição e São Francisco) etc.

Enfim, os demais ornamentos externos. O improvável leitor deste blog sabe que não tenho muito apreço por eles, por considerá-los marginais à luz do sistema heráldico clássico, mas como desta vez venho fazer uma proposta de brasão, sem eles ficaria incompleta. Um é o timbre: coroa mural de prata, de cinco torres aparentes. Tenho duas ou três palavras a dizer sobre as coroas murais na heráldica municipal brasileiras, mas vou guardá-las para um postagem específica. O outro é a divisa: listel de prata com a legenda Carpent poma nepotes em letras de negro. A esta, sim, convém justificação aqui e agora.

Muitos municípios brasileiros, suspeito que inicialmente influenciados pelas normas da heráldica municipal portuguesa, ornam os símbolos oficiais com os seus nomes e, muito frequentemente, com a data da sua emancipação. Mas isso é uma redundância: o brasão é, por si, um identificador do seu portador, tal como o próprio nome (vide as postagens de 11/01 e 12/02). O texto verbal que os brasões costumam ostentar é um lema, isto é, uma sentença que exprime um ideal do armígero, geralmente em latim, a língua clássica do Ocidente. Com efeito, mais classicista que a minha escolha, impossível: tirei a mencionada divisa do verso 50 da écloga 9 de Virgílio (70-19 a.C.), poeta romano dos mais prestigiados em toda a literatura ocidental. O original diz "carpent tua poma nepotes", ou seja, "os vindouros (ou descendentes) colherão os teus frutos". Parece-me que condensa bem o legado dos antepassados — vaqueiros, algodoeiros, mineiros —, que os símbolos municipais currais-novenses tão belamente evocam, ao tempo que insta o presentes a visar generosamente o porvir. Além disso, nepos, nepotis em latim também significa 'neto'. Ora, Currais Novos nasceu sob o patronato de Sant'Ana, a avó materna de Jesus Cristo, segundo a tradição cristã.

Proposta de brasão para Currais Novos: de azul com um chapéu de vaqueiro sertanejo de ouro, acompanhado de três bilhetas de prata em ponta; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois ramos de algodoeiro de verde, folhados do mesmo, com capulhos de prata; divisa: Carpent poma nepotes, escrita de negro em listel de prata.
Proposta de brasão para Currais Novos: de azul com um chapéu de vaqueiro sertanejo de ouro, acompanhado de três bilhetas de prata em ponta; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois ramos de algodoeiro de verde, folhados do mesmo, com capulhos de prata; divisa: Carpent poma nepotes, escrita de negro em listel de prata.

Justificado tudo, proponho para Currais Novos o brasão seguinte: de azul com um chapéu de vaqueiro sertanejo de ouro, acompanhado de três bilhetas de prata em ponta; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois ramos de algodoeiro de verde, folhados do mesmo, com capulhos de prata; divisa: Carpent poma nepotes, escrita de negro em listel de prata.

Proposta de bandeira para Currais Novos.
Proposta de bandeira para Currais Novos.

Na verdade, o emblema de Currais Novos é tão virtuoso pela sua singeleza, beleza e representatividade que se pode facilmente estender a proposta do brasão à bandeira municipal. Nesta, podem ficar as figuras do escudo e os suportes, à semelhança do emblema vigente, mas sem a legenda Currais Novos - RN, por supérflua, como razoei.

Notas:
(1) Alagoas (Marechal Deodoro, AL), Igarassu (PE), Itamaracá (Ilha de Itamaracá, PE), Olinda (PE), Paraíba (João Pessoa, PB), Porto Calvo (AL), Rio Grande (Natal, RN), Sirinhaém (PE). Ao contrário do que se repete, creio que esses brasões não foram dados às capitanias ou províncias, mas somente aos concelhos. Pretendo desenvolver essa interpretação numa postagem específica.
(2) Na Constituição de 1988, esse dispositivo acha-se no Art. 13, § 2.º: "Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão ter símbolos próprios".
(3) O modelo dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia é particularmente interessante: por terem sido criados em rede, todos assumiram a mesma identidade visual, mas é consabido que o emblema que deve timbrar qualquer documento é o brasão da República. Por outro lado, as universidades são uma exceção, pois a posse de um selo ou brasão faz parte da expressão da sua autonomia desde as origens.

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