Mostrar generosamente o certo a uma pessoa pode dar frutos que acabam alimentando bem toda a coletividade.
Dando continuidade ao assunto em torno do emblema de Álvaro Leonel Cardeal Ramazzini Imeri, bispo diocesano de Huehuetenango, na Guatemala, vou agora procurar tecer uma crítica construtiva, ao invés da destrutiva que abordei na postagem anterior.
Para começar, é preciso reconhecer que alguns países americanos nunca tiveram tradição heráldica. Os símbolos nacionais centro-americanos e guatemaltecos, por exemplo, mudaram várias vezes de 1823 a 1871, seguindo a conturbada história da região. Dentre esses símbolos, os chamados escudos são pouco ou nada heráldicos, inclusive o vigente. O próprio brasão concedido pelo rei Carlos I à Cidade da Guatemala em 1532 é bastante criticável.
A isso soma-se o fato de que os bispos, nas suas diversas dignidades (arcebispos, patriarcas, cardeais), são as únicas pessoas físicas que fazem uso regular de brasões atualmente na maior parte do Ocidente. Por isto mesmo, não é infrequente que depois de improvisar um às vésperas da ordenação, alguns nunca venham empregá-lo. Goste-se ou não, no século XXI bispos não são mais escolhidos entre os nobres, não exercem mais poderes temporais, não possuem mais objetos finos para armoriar, de modo que o selo diocesano, seja um brasão ou um emblema de outro tipo, satisfaz quase todas as necessidades simbológicas do pastoreio.
Esses fatos favorecem a avaliação do emblema do Cardeal Ramazzini? Não. Apenas contextualizam o objeto dentro de uma crítica técnica, tanto quanto possível. À luz da armaria, é completamente errôneo e muito feio. Completamente errôneo porque não cumpre nenhuma regra heráldica. Muito feio porque, sendo uma montagem de fotografias, não há arte alguma nele. Mas me aturde que entre tantos competentes juízes não apareça um que após a censura sugira que poderia ser assim ou assado. E olhe que, pelo caráter multimodal da heráldica, sequer é preciso reproduzir uma proposta. Dou imediatamente um exemplo.
Durante uma série de postagens nos dias 11, 13 e 15 de abril, demonstrei que a armaria eclesiástica pessoal evoluiu, ao menos no Brasil, do predomínio das armas gentilícias ao daquelas de devoção, passando pela hibridação de ambos os tipos, o que, na minha opinião, deu os melhores frutos. Assim, através de uma rápida busca, achei que em Módena há uns Ramazzini que, conforme vejo, trazem de azul com um braço armado de prata, movente do flanco destro, a mão de carnação, segurando dois ramos folhados (de oliveira?) de verde; chefe de ouro, carregado de uma águia de negro e sustido por uma divisa de vermelho. Não faço ideia se o cardeal vem dessa linhagem, embora a província de Módena faça fronteira com a Lombardia, de onde saiu a sua família, segundo a síntese biográfica da Santa Sé. De todo modo, estou aqui no plano do mero exercício. Assim, trocando o braço armado do cavaleiro pelo paramentado do sacerdote, a águia imperial pela ave nacional da Guatemala, os esmaltes do campo e das peças pelas cores nacionais desse país, facilmente proporia o seguinte: de azul com um braço de carnação, vestido de prata, movente do flanco destro, segurando um ramo de oliveira de verde; chefe de azul, carregado de um quetzal voando de sua cor e sustido por uma divisa de prata. Aí está: custou-me menos que o tempo gasto redigindo este parágrafo.
Mas desejo ir além, criando e mostrando um ordenamento ainda mais singelo, a partir da leitura do "insignoide" que o cardeal adotou. Sim, apesar de absolutamente rechaçável da perspectiva heráldica, consigo perfeitamente lê-lo enquanto símbolo. Com efeito, nos equivalentes ao primeiro e ao segundo quartéis, reconheço uma edificação pré-hispânica e um corpo d'água em meio a serras. Após outra busca rápida, soube que Huehuetenango fica numa região montanhosa e é habitada pelos mames, um povo maia que erigiu um estado em torno da cidade de Zaculeu entre os séculos X e XII. Compreendo, pois, que o bispo quer vincar uma relação com a população indígena e a sua terra.
Seguindo, então, para os equivalentes ao terceiro e quarto quartéis, contemplo uma igreja grande e um ícone do Bom Pastor, o que me leva a interpretar que nessa relação ele pretende atuar como Aquele que dá a vida pelas suas ovelhas, as conhece e é conhecido por elas (João, 10, 14-15). Enfim, no equivalente à derradeira partição, qualquer um enxerga um livro aberto. Creio que o seu significado está no mesmo capítulo do Evangelho segundo São João: "As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem" (10, 27). O livro é a Palavra e a Palavra é a voz do Bom Pastor.
 |
| Proposta de brasão para Álvaro Leonel Cardeal Ramazzini Imeri, bispo diocesano de Huehuetenango: verguetado de púrpura e prata de doze peças, com cinco lisonjas de vermelho, perfiladas de ouro, postas em cruz, unidas e brocantes, e um cordeiro passante de prata, segurando sobre a espádua um cajado de ouro e brocante sobre a lisonja do meio; insígnias de cardeal bispo; divisa: ¡Ay de mí si no evangelizo!. |
Apesar da inépcia heráldica de quem colou as fotos, tem-se tudo para ordenar boas armas. Comecei pesquisando imagens usando estas palavras-chaves: cultura maya mam. Não precisei de mais: vários resultados deixam ver magníficos trabalhos de tecelagem em que predominam listras e losangos com tons vermelhos e roxos. Ora, a armaria não só dispõe de tudo isto, mas em francês se diria que é du plus bel usage du blason! Convém lembrar, afinal, que os tecidos influenciaram a gênese da heráldica (leia-se a postagem de 10/02). Assim, da sugestão de tecidos listrados fiz um campo verguetado de púrpura e prata de doze peças e da decoração com losangos sobrepus cinco lisonjas de vermelho, perfiladas de ouro, postas em cruz e unidas.
A inserção de uma nota devocional que remetesse ao Bom Pastor e à Palavra não foi mais difícil, mas demandou alguns experimentos: um livro aberto com um alfa e um ômega, essas letras sós, um cajado, o Agnus Dei com a sua bandeirola, tudo sobre a lisonja do meio. Ao fim, um singelo cordeiro passante de prata, segurando um cajado de ouro sobre a espádua, assentou melhor.
Juntando, pois, tudo e arrematando, proponho: verguetado de púrpura e prata de doze peças, com cinco lisonjas de vermelho, perfiladas de ouro, postas em cruz, unidas e brocantes, e um cordeiro passante de prata, segurando sobre a espádua um cajado de ouro e brocante sobre a lisonja do meio; insígnias de cardeal bispo; divisa: ¡Ay de mí si no evangelizo!.
O meu balanço final é que ganhei mais do que gastei. Ganhei mais conhecimento com as breves pesquisas sobre o cardeal, Huehuetenango, os maias e os símbolos nacionais guatemaltecos. Gastei um pouco de tempo livre. Entendo que para os profissionais a heráldica é um serviço que oferecem, mas nem só deles a comunidade heráldica se compõe. Mesmo assim, paira sempre um ar de arrogância e venalidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário