O brasonamento não só evita que se dependa de um desenho, mas também deixa ver que a heráldica não é tão inflexível quanto parece.
Na postagem de 20/11, rejeitei a ideia de uma heráldica americana solta das regras "europeias". No entanto, é forçoso reconhecer que certos padrões praticados no Velho Mundo causam estranheza onde não há uma tradição longa que os lastreie. Assim, quem tem visto a vida toda nos presépios e na decoração natalina a Estrela de Belém como um cometa com uma cauda de raios retos ou curvos em leque, estranha muito que por defeito o cometa heráldico ou estrela caudata se distinga por um raio mais longo de forma ondeada.
Esse ponto de vista é o que me leva a supor que, tendo acatado a proposta de Tristão de Alencar Araripe, o poder público natalense preferiu uma forma de estrela caudata mais familiar para os seus cidadãos ao assumir um brasão para si. O que, na verdade, não é pecado algum: é tão rara a lei heráldica que não se possa flexibilizar de algum modo ou mesmo não tenha uma exceção justificável que nem sei dar um exemplo agora. Via de regra, há bastante margem para se trabalhar. O limite extremo é constituído pela possibilidade de se brasonar.
Com efeito, o brasonamento é o que complica a vida de quem pretende estudar a armaria municipal brasileira, inclusive a melhor. É tão grave que em 1933, depois de uma cuidadosa pesquisa, Clóvis Ribeiro publicou Brasões e bandeiras do Brasil afirmando que Natal não tinha brasão, quando tanto a prefeitura como a câmara municipal declaram que foi assumido em 1909, mais precisamente por uma resolução aos 23 de agosto. Como é provável que o texto dessa resolução nunca tenha sido recolhido num livro, ninguém sabe o que diz. E frise-se que procurar não é tarefa fácil, já que em geral o serviço público brasileiro não arquiva a sua memória, mas empilha a sua papelada onde vai cabendo.
Armas de Natal: de azul com uma estrela de ouro, caudata de três raios retilíneos de prata, posta em barra, a estrela para o baixo e a cauda para o alto. |
E lá vamos nós: comentar mais um brasão a partir de uma imagem. No desenho usado pelo poder público há muito tempo, pelo que parece, vejo um escudo de azul com uma estrela de ouro, caudata de três raios retilíneos de prata, posta em barra, a estrela para o baixo e a cauda para o alto. De fato, é notável o quão mais longo é esse brasonamento que a proposta de Tristão de Alencar Araripe. Continuam armas singelas — o campo com uma figura —, mas a cada modificação da forma ordinária dessa figura é preciso indicar o modificado: a estrela e a cauda não têm o mesmo esmalte, mas dois, indique-se; a cauda não é feita de um raio ondado, mas de três retilíneos, indique-se; não está posta em pala, mas em barra, indique-se; a estrela não fica para o alto e a cauda para o baixo, mas o inverso, indique-se.
Desenho do brasão de Natal usado pela prefeitura. |
Enfim, confesso que me surpreende o fato de as alterações se terem cingido à própria figura, sem o acréscimo de mais, já que figuras alongadas deixam espaços vazios e o horror vacui — tão forte na armaria portuguesa — tende a querer preenchê-los.
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