20/11/21

A ARTE HERÁLDICA (IV)

O heraldista exímio não se limita ao que se repete por aí, pois sabe manejar tanto os recursos tradicionais como as possibilidades de inovação.

Por mais de uma vez, li defesas de uma suposta heráldica americana, que se definiria pela soltura das rigorosas regras europeias. Em grande medida, as postagens deste blog ficam longas porque sempre procuro contextualizar o objeto sobre o qual discorro. Mal de filólogo. Mas vale a pena pelo bem de prevenir um juízo apressado. Por exemplo, antes de censurar o emblema do Cardeal Ramazzini, coloquei que já na primeira metade do século XVI os monarcas espanhóis concediam armas bastante questionáveis às urbes recém-fundadas no Novo Mundo, afinal, para exemplificá-lo com o exemplo daquelas da Cidade da Guatemala, um escudo partido com a imagem de um santo e uma paisagem num campo de esmalte indefinido, mais uma bordadura, anda longe de ser lo mejor del mundo em matéria heráldica. Em última análise, quero ponderar que certos fatos são compreensíveis nos seus contextos, mas daí a jogar a fôrma pela janela para fazer passar um produto mau por bom não dá.

Esse discurso pretensamente nativista poderia fazer sentido se a heráldica fosse um código fechado, mas é aberto. As regras heráldicas nada têm, por si, de europeias. Resultam da capacidade humana de significar, como tantas outras práticas mundo afora, similares em alguma medida, como aquelas denominadas genericamente totens. Europeias são as figuras mais frequentes de objetos e edificações e a própria ideologia subjacente ao bestiário, porque, claro, é um sistema semiótico ocidental, de origem medieval. Mesmo assim, não repele nada fora do seu âmbito original. Em mais uma analogia com os estudos da linguagem, diria que no brasão podem entrar todos os substantivos comuns, mas os substantivos próprios não costumam ser de boa arte. Trocando em miúdos, os baobás são árvores nativas da África subsaariana, de Madagascar e da Austrália. Um baobá pode figurar num brasão tanto quanto um carvalho, como de fato figura um nas armas nacionais do Senegal. O que não se deve fazer é pôr, por exemplo, o baobá do Passeio Público de Fortaleza.

Armas da Universidade Federal do Ceará (UFC): de azul com uma banda bretessada de ouro, carregada de três folhas de carnaúba de verde, postas no sentido da banda.
Armas da Universidade Federal do Ceará (UFC): de azul com uma banda bretessada de ouro, carregada de três folhas de carnaúba de verde, postas no sentido da banda.

Voltando, precisamente, ao mote desta série de postagens, que é Fortaleza, hoje darei mais uma criação do irmão Paulo Lachenmayer. O improvável leitor já sabe que esse nome é sinônimo de ótima qualidade heráldica. Trata-se do brasão da UFC. Nele, o mestre demonstra como do singelo se pode alcançar o engenhoso. Assim, começa com uma banda, que carrega três figuras repetidas. Isso é do mais corriqueiro, especialmente na armaria lusófona. Mas à banda deu um atributo incomum: o bretessado, que se diz da peça cujos bordos estão guarnecidos de ameias, tanto o superior como o inferior. Além disso, a figura repetida é singular: uma folha de carnaúba. Assim, ordenou um escudo de azul com uma banda bretessada de ouro, carregada de três folhas de carnaúba de verde, postas no sentido da banda, ou, como se lê na ata da 176.ª sessão extraordinária do Conselho Universitário, havida em 26 de março de 1965 e citada no Manual de identidade visual da UFC, "de azul, uma banda com bordos denticulados, de ouro, carregada de três folhas de carnaúba, alinhadas em banda, ao natural", o que, praticamente, vem ser o mesmo.

Desenho do brasão da UFC usado pela instituição.
Desenho do brasão da UFC usado pela instituição.

A Universidade Federal do Ceará foi criada em 1954 pela Lei n.º 2.373, de 16 de novembro. A sua reitoria fica em Fortaleza, onde tem três campi (do Benfica, do Pici e do Porangabuçu), mais os campi nas cidades de Crateús, Itapajé, Quixadá, Russas e Sobral. Oferece 86 cursos de graduação e 120 de pós-graduação stricto sensu, nos quais estavam matriculados 29.620 alunos em 2018. Nas suas armas leio que as ameias da banda referem a Fortaleza, o centro da sua atuação, e as folhas de carnaúba, ao Ceará. Parece confirmar essa leitura a coincidência dos esmaltes do campo e da banda com os do campo e da torre nas armas municipais fortalezenses e a curiosa antecipação em décadas à declaração da carnaúba como árvore-símbolo do estado (2004) e à inclusão dela no emblema estadual (2007). Não obstante, sempre se pode fazer uma interpretação alegórica: pelas ameias a construção do conhecimento e pela carnaúba, de que tudo se aproveita, uma espécie de "árvore da vida".

Seja como for, a lição é: o heraldista que domina o sistema não fica, por exemplo, restrito à representação de uma fortificação sempre pela figura de uma, pois sabe que pode guarnecer uma peça de ameias, seja um bordo, o outro ou ambos. Também não se prende ao repertório das figuras mais repetidas, porque sabe inovar dentro das regras.

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