14/11/21

A ARTE HERÁLDICA (I)

Arte, ciência, técnica: esses caracteres da heráldica tornam-na fascinante, mas também desafiadora.

Na primeira vez que mostrei aqui uma montagem de cliparts e fotos, como o emblema do Cardeal Ramazzini, disse que a heráldica é uma ars e uma tékhnē, mas não desenvolvi essa afirmação. Ars é latim e tékhnē (τέχνη) é grego. Ambas as palavras significam 'arte' (1). Arte vem do latim (ars,artis), ao passo que da raiz tékhn- derivam vocábulos como técnico e tecnologia.

Até o romantismo, ou seja, o século XIX, o entendimento do que seja arte era muito próximo do que hoje entendemos por técnica e tecnologia: um saber fazer. Assim, a gramática era a arte de falar (ars loquendi) e a matemática, a arte de contar (ars numerandi). Como fixa o dístico medieval:

Gram. loquitur, Dia. vera docet, Rhet. verba colorat,
Mus. canit, Ar. numerat, Ge. ponderat, Ast. colit astra.

Isto é, "a gram(ática) fala, a dia(lética) ensina a verdade, a ret(órica) colore as palavras, a mús(ica) canta, a ar(itmética) conta, a ge(ometria) pesa, a ast(ronomia) cuida dos astros".

A difusão do conceito de belas-artes na Idade Moderna preparou a mudança. Hoje, sequer é necessário distinguir a pintura ou a escultura como belas-artes, porque as liberais deram lugar às ciências, as mecânicas às tecnologias e com o nome de arte ficaram aquelas que têm fins estéticos.

A heráldica conjuga um pouco de tudo isto. Na verdade, o próprio vocábulo heráldica foi cunhado a partir do modelo ars grammatica, ars arithmetica etc. Ora, como é um sistema semiótico, o seu estudo assume uma forma muito semelhante à de uma gramática, semelhança percebida há muito tempo pelos estudiosos, diga-se de passagem. Quando se avança do estudo para a criação, parece uma técnica, pois ainda que de modo abstrato, ordenar um brasão é como um trabalho têxtil, em que se vão costurando, bordando ou aplicando os componentes do fundo para a superfície. Enfim, quando da abstração se chega à concreção, isto é, do brasonamento em linguagem verbal à reprodução em linguagem visual, torna-se uma arte no sentido contemporâneo do termo.

Sem dúvida, isso é fascinante, mas também é desafiador. Implica que o heraldista completo há de saber fazer tudo: conhecer o sistema, ordenar armas novas e reproduzi-las. Obviamente, tal completude rareia. As próprias autoridades heráldicas têm quadros competentes na criação de bons brasões, mas costumam contar com artistas para executá-los. Daí que hoje se achem tantos designers que dominam a sua arte visual, mas deixam ver um conhecimento do sistema heráldico não mais que básico. Digo isto porque a comunidade se alvoroça quando topa com uma bricolagem como o emblema do Cardeal Ramazzini, mas a cada semana me deparo com escudos terciados em mantel carregados de cálices, monogramas marianos, livros abertos, que podem não ser uma "heráldica de terror", como um comentarista titulou o emblema do cardeal, mas são, é forçoso reconhecê-lo, uma "heráldica de clichê".

A partir desta postagem, trarei uma série de cinco brasões: a proposta de Tristão de Alencar Araripe para o município de Fortaleza, o que esse município assumiu, o da arquidiocese de Fortaleza, o da Universidade Federal do Ceará e o da 10.ª Região Militar do Exército Brasileiro. Com elas quero demonstrar como do mesmo mote — o próprio nome de Fortaleza — se criaram diferentes brasões em áreas diversas da heráldica (municipal, eclesiástica, corporativa e militar) com boa qualidade, porque os seus autores souberam explorar vários recursos que o sistema proporciona. O objetivo final é estimular os heraldistas de hoje a aperfeiçoar a sua competência na matéria. Ressalto: a competência heráldica, não a habilidade de desenhar.

Proposta de brasão para Fortaleza (por Tristão de Alencar Araripe): de vermelho com um castelo de ouro.
Proposta de brasão para Fortaleza (por Tristão de Alencar Araripe): de vermelho com um castelo de ouro.

Começando, pois, pela proposta de Tristão de Alencar Araripe, falei dela na postagem de 15/08. Está contida num artigo que publicou pouco depois da instauração da República no tomo LIV (1891) da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em que propôs brasões para todos os estados e as suas capitais. Eis aquela para Fortaleza: "Em campo de goles, um castelo de ouro, com três torres do mesmo metal, sobranceiras, das quais a do meio é mais alta; com a coroa mural por cima. Mote: Fortitudine". Nunca é excessivo frisar que goles, sable, sinople e os horrorosos jalne e blau são uma nomenclatura espúria na nossa língua. Além disso, na armaria portuguesa o castelo tem por defeito três torreões, o do meio, ou torre de menagem, mais alto, de modo que o estadista cearense propôs simplesmente um castelo de ouro em campo de vermelho ou, de outro modo, de vermelho com um castelo de ouro.

O que dizer? Que é simples demais? Surpreenderá que em heráldica isso não é um pecado, mas uma virtude. O emblema do Ceará, mostrando a enseada do Mucuripe ante o sol nascente, certamente é belo e representativo, mas sofre dessa dificuldade insuperável: como brasoná-lo? E já sabemos: o que não é brasonável brasão não deve de ser. Por outro lado, quem ousará reprochar as armas falantes de Castela por causa da sua simplicidade? Com efeito, a indesejável semelhança com essas armas é o ponto fraco da proposta. Não obstante, repisando que em matéria de brasão menos é mais, começa muito bem a série.

Nota: 
(1) Daí que na academia se nomeie estado da arte a revisão da literatura técnica acerca de certo objeto. 

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