30/11/21

A ARTE HERÁLDICA (IX)

Em tese, o brasão em linguagem verbal, ou brasonamento, basta por si, mas não nos esqueçamos de que a heráldica também é visual.

O que há de ter a prioridade: o brasonamento ou uma reprodução? A resposta parece fácil: o brasonamento, já que as reproduções deveriam, teoricamente, partir dele. Mas já em 1696, o padre Claude-François Ménestrier objeta na sua Nouvelle méthode raisonnée du blason: "l'un des meilleurs avis que je vous puisse donner est de ne recevoir jamais d'armoiries d'aucune maison sans en avoir les figures, parce que autrement vous les renverseriez la plupart si vous en jugiez sur ces descriptions mal énoncées" ("um dos melhores conselhos que lhe possa dar é nunca aceitar as armas de nenhuma casa sem ter as suas figuras, porque de outro modo você desarranjaria a maioria se as julgasse a partir dessas descrições mal enunciadas"; tradução minha). Com efeito, eu diria que um brasonamento duvidoso demanda a consulta da reprodução mais autoritativa que se puder achar. O brasão da UFRN demonstra isto.

A Universidade Federal do Rio Grande do Norte foi criada por lei estadual em 25 de julho de 1958 com o nome de Universidade do Rio Grande do Norte e foi federalizada pela Lei n.º 3.849, de 18 de dezembro de 1960. A sua reitoria fica em Natal, onde está o campus central, mais os campi de Caicó, Currais Novos, Santa Cruz e a Escola Agrícola de Jundiaí. Oferece 85 cursos de graduação e 118 de pós-graduação stricto sensu, nos quais estavam matriculados 34.569 alunos em 2019. As suas armas são singelas, belas e representativas, mas o ordenamento deixa várias lacunas. Por sorte, no bojo das comemorações do seu sexagésimo aniversário, a instituição interessou-se em abordar essa parte da sua história, publicando um artigo sobre a assunção dessas armas.

O brasão da UFRN foi criado em julho de 1959 por Gustavo Barroso (1888-1959), que é um exemplo do intelectual da sua geração: bacharel em direito, atuava no serviço público e na política e produzia nas diversas humanidades e letras. Portanto, um homem de muitos livros, lidos e escritos, e entre os lidos, seguramente algum de heráldica. Essa leitura pode ter-lhe dado uma base para propor ideias boas nessa seara, mas suspeito de que não se aprofundava além disso, se não leiamos como descreve as armas que nos ocupam:

Escudo elíptico: verde com uma estrela de cinco pontas lançando cinco raios sobre um livro aberto, tudo de ouro; orla de ouro com legenda em verde UNIVERSIDADE DO RIO GRANDE DO NORTE ao alto e a divisa ACCIPIT UT DET em baixo. Apoios: dois ramos ao natural, um de oliveira à direita e um de louro à esquerda. Timbre: uma águia voante de ouro.

Sei que esse texto está perfeitamente compreensível, mas do ponto de vista heráldico  técnico , é um pequeno quebra-cabeças. Para começar, qual a figura principal? A estrela? O livro? Como se nomeia primeiro aquela, parece ser ela, mas conjuntos de figuras não se brasonam de cima para baixo, mas ao contrário. Assim, há um termo para exprimir que uma figura tem outra em cima (rematado) ou logo acima (encimado), mas não há equivalente para a situação logo abaixo. O que se pode indicar é que uma figura tem outra embaixo, como uma cruz alta firmada numa campanha, um castelo assente num penedo, uma árvore plantada num terrado, uma águia pousada sobre uma torre, um leão sustido por um monte. Assim, ao nível verbal, parece que o livro está encimado da estrela, mas isto o moveria para o centro do campo, o que nem se vê no desenho usado atualmente pela universidade nem no provável original. Para mim, a solução é prescindir de figura principal: as duas estão em pé de igualdade, na situação que se brasona como um sobre o outro.

Armas da UFRN: de verde com uma estrela caudata de cinco raios retilíneos de ouro e um livro aberto do mesmo, uma sobre o outro.
Armas da UFRN: de verde com uma estrela caudata de cinco raios retilíneos de ouro e um livro aberto do mesmo, uma sobre o outro.

Depois, ainda ao nível verbal, "uma estrela lançando raios" dá a entender que se trata de uma estrela radiante, termo que se emprega quando saem raios dentre as pontas da estrela, mas o desenho provavelmente original os mostra saindo diretamente dela, para baixo, o que faz uma estrela caudata e vai ao encontro da explicação do autor: "A estrela luminosa recorda a que guiou os Reis Magos a Belém, exprime a nossa tradição cristã e a cidade de Natal, protegida pela Fortaleza dos Reis Magos, sede da Universidade". Nesta perspectiva, a forma da estrela com os raios no desenho oficial atual está incorreta.

Armas da UFRN com a "orla" da descrição original interpretada como uma bordadura.
Armas da UFRN com a "orla" da descrição original interpretada como uma bordadura.

Tudo isto me leva a reproduzir as armas da UFRN como o prezado leitor terá visto mais acima — de verde com uma estrela caudata de cinco raios retilíneos de ouro e um livro aberto do mesmo, uma sobre o outro —, no que terá percebido a omissão da "orla". É o terceiro problema na descrição de Barroso. Ora, uma orla é uma peça que mede um doze avos da largura do escudo e o contorna a uma distância igual do bordo, diferentemente da bordadura, que tem um sexto da largura do escudo e faz o mesmo contorno firmada no bordo. Portanto, o autor escreveu "orla" e desenhou algo que semelha uma bordadura. Se for mesmo essa segunda peça, a qualidade infelizmente cai, porque já não é de ótima heráldica pôr o nome do armígero em listel, muito menos isto mais a divisa numa bordadura.

Desenho provavelmente original do brasão da UFRN.
Desenho provavelmente original do brasão da UFRN (imagem disponível em artigo publicado pela instituição).

Antes de conhecer o texto do autor, eu já intuía que esse elemento não fizesse parte do escudo, mas depois de ler aí que a forma oval visa a "servir de selo e sinete" e que "[se lançou] mão do menor número possível de símbolos e dispondo-os adequadamente, de acordo com o postulado que diz que quanto mais atributos enchem um brasão menos nobre o tornam", convenci-me mais ainda de que consiste de um ornamento externo análogo a um listel, exatamente como no brasão do Conselho de Estado da Espanha.

Desenho do brasão da UFRN usado pela instituição.
Desenho do brasão da UFRN usado pela instituição.

Além de ter alterado a estrela de caudata para radiante, na sua identidade visual vigente a universidade emprega nada menos que catorze matizes de cores. É até compreensível que haja diversos matizes de verde porque os ramos estão brasonados ao natural, mas o que justifica cinco matizes de amarelo, a ponto de o livro semelhar iluminado de sua cor? Como não se trata de dar um efeito de brilho, forçoso é julgar que faltou perícia heráldica aos autores do manual de identidade visual, pois, como sabemos, o artista pode escolher a palheta dos esmaltes, mas deve aplicá-la coerentemente.

Em suma, o brasão da UFRN encerra uma pequena aula de heráldica: patenteia o quanto brasonamento e reprodução dependem um do outro ou, noutras palavras, como a natureza da heráldica é multimodal, verbal e visual.

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