28/11/21

A ARTE HERÁLDICA (VIII)

O trabalho heráldico não é só técnico, mas também estético, o que sempre o sujeitará ao gosto.

O bispado de Natal foi criado em 1909 pela bula Apostolicam in singulis, do papa São Pio X. A diocese foi desmembrada daquela da Paraíba e abrangia o estado do Rio Grande do Norte. Em 1934, o papa Pio XI, por meio da bula Pro ecclesiarum omnium, desmembrou-lhe a região oeste do estado, compreendida no vale do Açu e na bacia do rio Apodi, para criar a diocese de Mossoró, e em 1939 o papa Pio XII, por meio da bula E diœcesibus, desmembrou-lhe a região do Seridó para criar a diocese de Caicó. Em 1952, foi elevada a arquidiocese pela bula Arduum onus, do mesmo pontífice, abrangendo essas duas dioceses. A sua sé está na Catedral de Nossa Senhora da Apresentação, em Natal, e o seu arcebispo é Dom Jaime Vieira da Rocha.

Armas da arquidiocese de Natal: talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata, brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe.
Armas da arquidiocese de Natal: talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata, brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe.

O brasão da arquidiocese de Natal é mais um caso sobre o qual não se acham informações. É mesmo muito ingrato o trabalho dos bons heraldistas: a obra fica, mas a autoria é esquecida. De todo modo, tenho-as brasonado assim neste blog: talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata, brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe. Digo "bons heraldistas", porque suponho que tenha sido criado por Víctor Hugo Carneiro Lopes, passavante do Ir. Paulo Lachenmayer. Pessoalmente, não me agradam: não gosto da partição combinando cor com cor; não acho a flor de lis cruzada uma figura bonita; parece-me lamentável que a estrela não seja aquela que é o símbolo da cidade: a caudata. Apesar dessas ponderações, é um brasão perfeitamente aceitável.

Desenho do brasão da arquidiocese de Natal usado pela instituição (imagem disponível no seu perfil no Facebook).
Desenho do brasão da arquidiocese de Natal usado pela instituição (imagem disponível no seu perfil no Facebook).

Com efeito, a combinação de azul e vermelho tem-se repetido à exaustão na heráldica eclesiástica recente. O azul é a cor mariana por excelência e o vermelho é a litúrgica da Paixão e do martírio. No entanto, o clero precisa aprender esta regra fundamental da armaria: o azul, o vermelho ou qualquer outra das cores combina-se com o ouro ou a prata (metais) ou com o arminho ou os veiros (peles).

Quanto à flor de lis, trata-se de uma figura heráldica de origem incerta. De certo, somente que lis ou lys em francês significa 'lírio'; isso indica o entendimento tradicional de que consiste numa estilização dessa flor. Ao fim e ao cabo, são figuras diferentes, o que em português é reforçado pela palavra açucena, preferível na linguagem do brasão para designar a flor. Em todo o caso, foi essa analogia que tornou a flor de lis um símbolo mariano, pois metáforas florais desde a Antiguidade tardia são evocadas pelos Padres da Igreja para abordar diversas questões mariológicas, como o fez São Pedro Damião (1007-1072) no seu terceiro sermão sobre a Natividade de Nossa Senhora:

Hodie impleta est prophetia illa, quam eximius Prophetarum Isaias, quasi præco factus ad adventum reginæ mundi, magna voce clamabat dicens: "Egredietur virga de radice Jesse, et flos de radice ejus ascendet". Et bene hæc incomparabilis Virgo virga dicitur, quæ per intensionem desiderii ad superna emicuit, non per siccitatem boni operis distortæ nodositatis vitium incurrit. De qua virga redemptor noster, quasi flos ascendit, qui martyribus et confessoribus suis totius orbis campos, velut rosis et liliis decoravit. Singularis namque flos sanctæ Ecclesiæ ipse est, sicut de semetipso in Cantico canticorum loquitur, dicens: "Ego flos campi et lilium convallium". Hoc lilium non in montibus, sed in convallibus nascitur, quia superbis Deus resistens, in humilium cordibus invenitur. Lilium vocatur Christus, lilium dicitur et Mater Christi, sicut in eodem Cantico subinfertur: "Sicut lilium inter spinas, sic amica mea inter filias". Sicut lilium inter spinas, sic beatissima Virgo Maria enituit inter filias, quæ de spinosa propagine Judæorum nata, candescebat munditia virgineæ castitatis in corpore, flammescebat autem ardore geminæ caritatis in mente, fragrabat passim odore boni operis, tendebat ad sublimia intentione continua cordis.

 Em vernáculo:

Hoje se cumpriu aquela profecia, que Isaías, o mais assinalado dos profetas, de certo modo feito arauto para o advento da rainha do mundo, em alta voz clamava, dizendo: "Um broto vai surgir do tronco seco de Jessé; das velhas raízes um ramo brotará". É justo que essa incomparável Virgem seja chamada de talo, que pela intensidade do anseio se elevou ao mais alto, e não por sequidão de boas obras se abateu o vício de distorcida nodosidade. Desse talo surgiu o nosso redentor como se fosse uma flor, que com os mártires e confessores ornou os campos do mundo todo como com rosas e lírios. De fato, ele é a flor singular da santa Igreja, tal como fala de si mesmo no Cântico dos Cânticos, dizendo: "Eu sou a flor do campo e o lírio dos vales". Esse lírio não nasce nos montes, mas nos vales, porque Deus, que se opõe aos soberbos, se acha nos corações dos humildes. Cristo é chamado de lírio, também a Mãe de Cristo, como se acrescenta no mesmo Cântico: "Como o lírio entre espinhos, assim é minha amada, entre as moças". Assim como o lírio entre os espinhos, a bem-aventurada Virgem Maria brilhou entre as moças, a qual, nascida do espinhoso rebento dos judeus, alvejava pela pureza da virgínea castidade no corpo, flamejava pelo ardor de parelha caridade na mente, cheirava por toda a parte a boas obras, visava ao alto com contínuo esforço de coração. (tradução minha)

Efetivamente, a flor de lis como símbolo mariano antecede o brasão mais famoso que a carrega: de 1146 conserva-se um selo do cabido da catedral de Paris que traz Nossa Senhora sentada, segurando uma flor de lis com a mão direita e tendo outra sob os pés, ao passo que o testemunho remanescente mais antigo das armas do rei francês (de azul, semeado de flores de lis de ouro) remonta a 1211, ainda que como motivo ornamental ligado à realeza viesse de longa data.

Em particular, a flor de lis cruzada ou crucífera parece uma inovação de Víctor Hugo Carneiro Lopes, pois, ao que me consta, ocorre apenas na armaria eclesiástica brasileira e das outras quatro ocorrências em brasões diocesanos, de uma encontrei a sua autoria declarada: o brasão da diocese de Oliveira. Os demais são da arquidiocese de Belém do Pará e das dioceses de Miracema e de Sobral. Esse indício é reforçado pela semelhança do estilo, salvo o de Sobral. O significado da figura é de fácil inteligência, mas, como já disse, não acho que seja bonita. Em tempo, o desenho usado pela arquidiocese natalense mostra uma cruz acabada em fusos curvilíneos. Em francês, esse predicativo denomina-se retranché, mas como sequer tem denominação consagrada em português, parece excessivo brasoná-lo.

A essa crítica muito subjetiva adito que a flor de lis cruzada pouco ou nada diz sobre a advocação mariana que tutela a arquidiocese: Nossa Senhora da Apresentação. Na verdade, a imagem que se venera na catedral tem os atributos de Nossa Senhora do Rosário. Conta-se que foi encontrada dentro dum caixote, encalhado junto a uma pedra à margem do rio Potenji, onde hoje se ergue o monumento denominado Pedra do Rosário. Tal prodígio terá acontecido na manhã de 21 de novembro de 1753, que o calendário litúrgico dedica à memória da Apresentação de Nossa Senhora. Seja como for, consta que a igreja matriz da cidade, que retrocede aos primeiros anos do século XVII, sempre esteve dedicada sob o título de Nossa Senhora da Apresentação. Como a comunidade era pequenina e muito pobre, talvez carecesse de um ícone que atraísse a devoção popular, até que o achamento providencial do vulto de Nossa Senhora do Rosário preencheu esse vazio:  acompanhava-o a mensagem "onde esta imagem aportar, nenhuma desgraça acontecerá".

Até a Idade Moderna, a Apresentação de Nossa Senhora era uma festa própria da liturgia bizantina: só em 1585 o papa Sixto V incluiu-a definitivamente no calendário romano. A sua origem remonta à dedicação da Basílica de Santa Maria Nova em 21 de novembro de 543. Construída pelo imperador Justiniano o Grande em Jerusalém, foi devastada pelos persas quando conquistaram a cidade em 634 e destruída por um terremoto em 746. Segundo a fonte mais fidedigna, o chamado Protoevangelho de Tiago, a Menina Maria entrou no templo aos três anos de idade:

Et facta est triennis puella. Et dixit Joachim: "Vocate puellas Hebræorum immaculatas et accipiant singillatim lampades et sint accensæ, ne convertatur puella in posteriora et abducatur mens ejus ex templo Dei. Et fecerunt sic donec ingressæ sunt templum. Et recepit eam princeps sacerdotum et osculatus est eam et dixit: "Mariam, magnificavit Dominus nomen tuum in cunctis generationibus et in ultimis diebus manifestabit Dominus in te pretium redemptionis suæ filiis Israel". Et constituit illam super tertium gradum altaris et immisit Dominus Deus gratiam super ipsam, exsultabatque resiliendo pedibus suis, et dilexit eam tota domus Israel.

Em vernáculo: 

E a menina fez três anos. Joaquim disse: "Chamai as moças imaculadas dos hebreus e que uma a uma recebam lâmpadas e sejam acesas, para que a menina não se vire para trás e a sua mente se afaste do templo de Deus". Fizeram assim até que entraram no templo. O sumo sacerdote recebeu-a, beijou-a e disse: "Maria, o Senhor engrandeceu o teu nome em todas as gerações e nos últimos dias o Senhor manifestará em ti o preço da sua redenção para os filhos de Israel". Colocou-a sobre o terceiro degrau do altar e o Senhor Deus infundiu a sua graça sobre ela, e ela exultava saltitando com os seus pés, e amou-a toda a casa de Israel. (tradução minha)

Esse relato foi atribuído ao apóstolo Tiago o Menor, mas foi escrito provavelmente por um gentio converso em meados do século II. Sempre foi lido nas igrejas orientais, mas só foi difundido no Ocidente após a tradução de Guillaume Postel e edição de Theodor Bibliander em 1552, da qual tirei a citação acima. Apesar de apócrifo, a sua importância para o culto mariano foi reconhecida implicitamente por São Paulo VI (exortação apóstola Marialis cultus, 1974) e explicitamente por São João Paulo II (catequese de 15 de outubro de 1997).

Enfim, a estrela. Como a flor de lis cruzada já representa a padroeira, penso que essa estrela não seja um segundo símbolo mariano, mas que aluda ao nome da cidade e aos seus copadroeiros: os Santos Reis. Com efeito, é a figura das armas municipais de Natal. Como expus na postagem anterior, fortaleza e povoação faziam parte do mesmo plano para assegurar o domínio português sobre a Paraíba e o Rio Grande, que os franceses ameaçavam. A construção da fortaleza começou em 6 de janeiro de 1598 e a povoação foi fundada em 25 de dezembro de 1599, daí os seus nomes: Forte dos Reis Magos e cidade do Natal.

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