22/11/21

A ARTE HERÁLDICA (V)

Como um brasão não é um desenho, uma reprodução criticável não tira o mérito da ideia que se depreende de um bom brasão.

Em geral, a armaria do Exército Brasileiro é muito ruim, o que é uma lástima, pois se há corporações que poderiam instituir órgãos assessores em matéria heráldica para gerir as suas necessidades de brasões e patrocinar membros para estudar a matéria e assumir tais órgãos, são as forças armadas, como acontece em Portugal, onde cada uma Exército, Marinha e Força Aérea  tem o seu gabinete e manual de heráldica, com resultados primorosos, como se pode conferir num dos sites que recomendo na seção de links: Unidades do Exército Português. Contudo, o brasão da 10.ª RM é uma exceção boa.

A 10.ª Região Militar subordina-se ao Comando Militar do Nordeste. Foi organizada em 1942, abrange os estados do Ceará e do Piauí e o seu comando está instalado na Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, em Fortaleza. Respondem-lhe quinze organizações militares, das quais destaco o Colégio Militar e o Hospital Geral de Fortaleza. Infelizmente, não acho nenhuma informação sobre o seu brasão, mas é fácil apreender que consiste num escudo de prata com a planta de uma fortaleza quadrada, realçada de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago.

Sempre que falo das armas municipais de Fortaleza, evoco inevitavelmente a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, porque foi pela povoação no entorno dela que a cidade começou, a vila tomou o seu nome e ambos os fatos ensejaram a escolha de armas falantes, o mote desta série de postagens. Todavia, não foi a primeira fortificação para a conquista da região. Em 1604, quase setenta anos após a criação da capitania do Ceará, nunca assegurada, Pero Coelho de Sousa, ao voltar da serra da Ibiapaba, onde aniquilara o corso francês, ergueu junto à barra do rio Ceará o Fortim de Santiago, porém o flagelo da seca e a hostilidade dos índios levaram ao abandono da posição no ano seguinte. Em 2004, comemorando o quarto centenário dessa empresa, a Xunta de Galicia, o governo autônomo dessa comunidade autônoma espanhola, doou um cruzeiro de pedra a Fortaleza, chantado no lugar que desde então se denomina Praça de Santiago da Barra do Ceará, também conhecida como Marco Zero. Em 1612, Martim Soares Moreno, que tomara parte na primeira e malograda bandeira, voltou aí e levantou o Fortim de São Sebastião. Foi tomado pelos holandeses em 1637, mas em 1644 os índios trucidaram a guarnição e o arruinaram. Deve-se a Matthias Beck, às ordens da Companhia das Índias Ocidentais, a escolha da margem esquerda do riacho Pajeú para firmar uma nova posição  o Forte Schoonenborch  que ele mesmo entregou aos portugueses em 1654, após a capitulação holandesa no Brasil.

Essa síntese histórica explica por que a 10.ª RM traz a cruz de Santiago no seu brasão e recebeu o nome de Martim Soares Moreno em 1993. No entanto, o desenho usado pelo comando denuncia imperícia heráldica. Primeiro, porque tenta reproduzir a planta de Antônio José da Silva Paulet. A propósito, o fato de ter nomeado a vila, depois cidade, dá a ideia de uma edificação imponente. Nunca o foi. A atual, projetada e dirigida por Silva Paulet, começou em 1812 e jamais foi concluída. Na verdade, mais que uma fortaleza, consiste de uma muralha entre dois baluartes, voltados para o mar, e do prédio que abriga o comando da 10.ª RM, este ainda mais tardio: meados do século XIX. Digressão à parte, a segunda falta de perícia está em realçar a figura de ouro sobre campo de prata.

Na postagem anterior, eu disse que qualquer substantivo comum pode entrar na armaria, mas é de má heráldica pôr substantivos próprios. Eis um exemplo ilustrativo: plantas de fortalezas estão presentes nas heráldicas militares portuguesa e espanhola. Trata-se de uma figura perfeitamente brasonável: basta dizer que forma geométrica tem e quem lê há de saber que os ângulos são abaluartados e o interior é vazio, se deixa ver o esmalte do campo, ou cheio, se está iluminado de outro.

Leitura das armas da 10.ª Região Militar do Exército Brasileiro: de prata com uma planta de uma fortaleza quadrada de azul, orlada e cheia de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago.
Leitura das armas da 10.ª Região Militar do Exército Brasileiro: de prata com uma planta de uma fortaleza quadrada de azul, orlada e cheia de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago.

Assim, mais que as armas da 10.ª RM, cuja descrição desconheço, darei a seguir uma leitura delas. Essa leitura pode-se brasonar assim: de prata com uma planta de uma fortaleza quadrada de azul, orlada e cheia de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago. Por orlado digo o que em francês é expresso pelo termo resarcelé: uma peça ou figura que contém um contorno que não toca os seus bordos, à feição da peça denominada orla. Junto com o atributo cheio, conserva o ouro do desenho atual sem infringir a regra de iluminura. Ademais, omiti essa espécie de "chefe do Exército" (cortado de vermelho e azul com a iniciais da organização em ouro, sobrepostas) e o debrum dourado, porque são mais próprios de um distintivo de bolso que de um brasão.

Desenho do brasão da 10.ª RG usado pelo seu comando.
Desenho do brasão da 10.ª RG usado pelo seu comando.

Apesar dos defeitos na execução, a ideia que preside a essas armas mostra como do mesmo mote (uma cidade que se chama Fortaleza porque surgiu do povoado no entorno de uma fortaleza) se fez mais um emblema singelo, belo e representativo, o derradeiro desta série.

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