Como um brasão não é um desenho, uma reprodução criticável não tira o mérito da ideia que se depreende de um bom brasão.
Em geral, a armaria do Exército Brasileiro é muito ruim, o que é uma lástima, pois se há corporações que poderiam instituir órgãos assessores em matéria heráldica para gerir as suas necessidades de brasões e patrocinar membros para estudar a matéria e assumir tais órgãos, são as forças armadas, como acontece em Portugal, onde cada uma — Exército, Marinha e Força Aérea — tem o seu gabinete e manual de heráldica, com resultados primorosos, como se pode conferir num dos sites que recomendo na seção de links: Unidades do Exército Português. Contudo, o brasão da 10.ª RM é uma exceção boa.
A 10.ª Região Militar subordina-se ao Comando Militar do Nordeste. Foi organizada em 1942, abrange os estados do Ceará e do Piauí e o seu comando está instalado na Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, em Fortaleza. Respondem-lhe quinze organizações militares, das quais destaco o Colégio Militar e o Hospital Geral de Fortaleza. Infelizmente, não acho nenhuma informação sobre o seu brasão, mas é fácil apreender que consiste num escudo de prata com a planta de uma fortaleza quadrada, realçada de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago.
Sempre que falo das armas municipais de Fortaleza, evoco inevitavelmente a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, porque foi pela povoação no entorno dela que a cidade começou, a vila tomou o seu nome e ambos os fatos ensejaram a escolha de armas falantes, o mote desta série de postagens. Todavia, não foi a primeira fortificação para a conquista da região. Em 1604, quase setenta anos após a criação da capitania do Ceará, nunca assegurada, Pero Coelho de Sousa, ao voltar da serra da Ibiapaba, onde aniquilara o corso francês, ergueu junto à barra do rio Ceará o Fortim de Santiago, porém o flagelo da seca e a hostilidade dos índios levaram ao abandono da posição no ano seguinte. Em 2004, comemorando o quarto centenário dessa empresa, a Xunta de Galicia, o governo autônomo dessa comunidade autônoma espanhola, doou um cruzeiro de pedra a Fortaleza, chantado no lugar que desde então se denomina Praça de Santiago da Barra do Ceará, também conhecida como Marco Zero. Em 1612, Martim Soares Moreno, que tomara parte na primeira e malograda bandeira, voltou aí e levantou o Fortim de São Sebastião. Foi tomado pelos holandeses em 1637, mas em 1644 os índios trucidaram a guarnição e o arruinaram. Deve-se a Matthias Beck, às ordens da Companhia das Índias Ocidentais, a escolha da margem esquerda do riacho Pajeú para firmar uma nova posição — o Forte Schoonenborch — que ele mesmo entregou aos portugueses em 1654, após a capitulação holandesa no Brasil.
Essa síntese histórica explica por que a 10.ª RM traz a cruz de Santiago no seu brasão e recebeu o nome de Martim Soares Moreno em 1993. No entanto, o desenho usado pelo comando denuncia imperícia heráldica. Primeiro, porque tenta reproduzir a planta de Antônio José da Silva Paulet. A propósito, o fato de ter nomeado a vila, depois cidade, dá a ideia de uma edificação imponente. Nunca o foi. A atual, projetada e dirigida por Silva Paulet, começou em 1812 e jamais foi concluída. Na verdade, mais que uma fortaleza, consiste de uma muralha entre dois baluartes, voltados para o mar, e do prédio que abriga o comando da 10.ª RM, este ainda mais tardio: meados do século XIX. Digressão à parte, a segunda falta de perícia está em realçar a figura de ouro sobre campo de prata.
Na postagem anterior, eu disse que qualquer substantivo comum pode entrar na armaria, mas é de má heráldica pôr substantivos próprios. Eis um exemplo ilustrativo: plantas de fortalezas estão presentes nas heráldicas militares portuguesa e espanhola. Trata-se de uma figura perfeitamente brasonável: basta dizer que forma geométrica tem e quem lê há de saber que os ângulos são abaluartados e o interior é vazio, se deixa ver o esmalte do campo, ou cheio, se está iluminado de outro.
Leitura das armas da 10.ª Região Militar do Exército Brasileiro: de prata com uma planta de uma fortaleza quadrada de azul, orlada e cheia de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago. |
Assim, mais que as armas da 10.ª RM, cuja descrição desconheço, darei a seguir uma leitura delas. Essa leitura pode-se brasonar assim: de prata com uma planta de uma fortaleza quadrada de azul, orlada e cheia de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago. Por orlado digo o que em francês é expresso pelo termo resarcelé: uma peça ou figura que contém um contorno que não toca os seus bordos, à feição da peça denominada orla. Junto com o atributo cheio, conserva o ouro do desenho atual sem infringir a regra de iluminura. Ademais, omiti essa espécie de "chefe do Exército" (cortado de vermelho e azul com a iniciais da organização em ouro, sobrepostas) e o debrum dourado, porque são mais próprios de um distintivo de bolso que de um brasão.
Desenho do brasão da 10.ª RG usado pelo seu comando. |
Apesar dos defeitos na execução, a ideia que preside a essas armas mostra como do mesmo mote (uma cidade que se chama Fortaleza porque surgiu do povoado no entorno de uma fortaleza) se fez mais um emblema singelo, belo e representativo, o derradeiro desta série.
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