Hoje, o limite de figuras repetidas é o bom senso, mas os efeitos de se procurar normalizar esse aspecto foi tal que mudou o sistema heráldico.
Do Tratado Prinsault (1444):
Le sixiesme chapitre démonstre jusques à quel nombre on doit nombrer toutes choses qui sont en armes et quand on doit dire sans nombre ou semé, comme s'ensuit.
Tourteaux, besants et cotices se nombrent jusques à huit. Losanges, fusées, eschequier se nombrent jusques à vingt-et-cinq. Bestes, oiseaux, fleurs, poissons et toutes autres choses qui sont en armes se nombrent jusques à seize. Et se elles passent lesdits nombres, on blasonne sans nombre ou semé, comme ès armes de Laval (1), où l'on dit « d'or à seize aigles d'azur » (2), et en celles de Pully (3), où l'on dit « d'or, semé d'aigles d'azur » ou « d'or à aigles d'azur sans nombre », ainsi que par les deux escus ci-après figurés appert.
D'or à seize aigles d'azur. (4) |
D'or semé d'aigles d'azur. (4) |
O sexto capítulo demonstra o número até o qual se devem contar todas as coisas que estão nas armas e quando se deve dizer sem número ou semeado, como se segue.
As arruelas, os besantes e as coticas contam-se até oito. As lisonjas, os fusos e o xadrez contam-se até vinte e cinco. As bestas, os pássaros, as flores, os peixes e todas as outras coisas que estão nas armas contam-se até dezesseis. Se passam desses números, brasona-se sem número ou semeado, como nas armas de Laval (1), de que se diz "de ouro com dezesseis águias de azul" (2), e nas de Pully (3), de que se diz "de ouro, semeado de águias de azul" ou "de ouro com águias de azul sem número", como pelos dois escudos figurados a seguir se evidencia.
De ouro com dezesseis águias de azul. |
De ouro, semeado de águias de azul. |
Comentário:
Afinal, cinco, dez, onze, quinze ou dezesseis besantes? Seis, sete, oito, nove, dez, doze, treze ou catorze castelos? Estes são os números que Anselmo Braamcamp Freire registra na sua Armaria portuguesa (1908) ao descrever a evolução das armas reais portuguesas. Semelhantemente, as palas das armas reais aragonesas variavam de três a seis e ainda concorriam com o palado, também de número variável de peças. Convém, pois, recuperar a referência a um estudo de Alberto Montaner Frutos, que citei na postagem de 19/01.
Com efeito, depois de uma cuidadosa análise, esse pesquisador conclui que no sistema clássico da heráldica a pluralização era similar ao número gramatical em certas línguas. Graças à minha formação linguística e atuação em filologia, sei que a oposição um / mais de um, ou seja, singular e plural, é muito comum nas línguas, talvez o mecanismo mais comum de número, mas não o único. Assim, há línguas que têm três números, pois além do singular e plural, distinguem o dual, isto é, um par de seres ou coisas, como o grego antigo e outras línguas indo-europeias, várias das antigas e poucas das modernas. Além desses três números, o árabe, por exemplo, possui um paucal, que exprime um conjunto pequeno, convencionalmente entre três e dez. Tudo isto pode ser ilustrado pela palavra árvore:
- latim: arbor (singular) / arbores (plural);
- grego antigo: δένδρον (déndron, singular) / δένδρω (déndrō, dual) / δένδρα (déndra, plural);
- árabe: شجر (šajar, coletivo) / شجرة (šajara, singulativo) / شجرتان (šajaratān, dual) / شجرات (šajarāt, paucal) / أشجار (ʾašjār, plural).
Montaner Frutos menciona essas línguas no seu artigo, mas lhe escapa que as suas conclusões são estranhamente correlatas com o número gramatical nas línguas célticas britônicas. Tomando o bretão por exemplo, para referir a certos pares de partes dos seres vivos emprega-se um prefixo que funciona como um dual residual: lagad é um olho, daoulagad são dois olhos (do mesmo ser) e lagadoù são olhos. Ademais, alguns substantivos são plurais coletivos e deles deriva um singular, chamado singulativo, referente a uma unidade da coleção: gwez são árvores incontáveis (mais ou menos como um bosque), gwezenn é uma dessas árvores e gwezennoù são árvores, mais de duas e contáveis. Imaginando armas quaisquer com árvores, a comparação da abstração de Montaner Frutos com o bretão pode ser esquematizada assim:
Abstração
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Bretão
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Português
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um
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e wezenn
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com uma árvore
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dois
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e ziv wezenn
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com duas árvores
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mais de dois, mas contáveis
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gant gwezennoù
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com árvores
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incontáveis
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hadet gant gwez
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semeado de árvores
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Mera coincidência? Não sei, mas o peso político do ducado da Bretanha e o peso cultural da matéria de Bretanha são incontestáveis, sem falar que, segundo alguns, o Joannes de Bado Aureo que escreveu o Tractatus de armis em 1395, um dos mais antigos depois do de Bártolo, era John Trevor/Ieuan Trefor, bispo de St Asaph/Llanelwy, no País de Gales, quem o teria traduzido para o seu idioma. Essa tradução é conhecida como Llyfr dysgread arfau. O galês é outra língua britônica.
Portanto, os besantes das armas reais portuguesas e as palas das aragonesas eram conceituados no número maior que dois, mas contável, análogo ao plural não coletivo das línguas britônicas. Como se podia reproduzir o brasão em objetos dos mais variados tamanhos, inclusive sem o escudo, ou melhor, como se a superfície do objeto fosse o campo, esse mecanismo permitia ao artista adequar a reprodução ao espaço disponível.
Contudo, o Tratado Prinsault demonstra que em meados do século XV a possibilidade do plural não fixo estava desaparecendo. Nas armas reais portuguesas, por exemplo, fixou-se que os besantes seriam cinco a partir da segunda dinastia, a de Avis, ou seja, desde 1385 (a fixação dos castelos em sete demorou mais: 1555, sob Dom João III). Efetivamente, o presente capítulo testemunha um momento de exagero normativo que hoje já não se aplica, se é que alguma vez se aplicou: não se conta nenhuma figura até certo número; esse limite fica a cargo do bom senso. Não obstante, dessa normalização resulta que a cada conjunto de figuras repetidas, de dois a seis, corresponde uma situação ordinária, que não é preciso brasonar. Na armaria portuguesa, essas situações são as seguintes:
- duas figuras: alinham-se em faixa, ou seja, lado a lado;
- três figuras: alinham-se duas no alto e uma no baixo, ou seja, como um triângulo invertido;
- quatro figuras: alinham-se cantonadas, ou seja, duas no alto e duas no baixo;
- cinco figuras: alinham-se em aspa, ou seja, duas no alto, uma no meio e duas no baixo; (5)
- seis figuras: alinham-se duas no alto, duas no meio e duas no baixo (6).
- nove figuras: alinham-se três no alto, três no meio e três no baixo.
Se a situação for diferente, é preciso brasoná-la, o que também se aplica aos conjuntos de sete, de oito e de dez em diante. Para tanto, suprimem-se as locuções no alto, no meio e no baixo. Por exemplo, sete figuras podem ser postas três, três, uma ou três, duas, duas.
Enfim, quanto ao semeado, distinguem-no dois caracteres: o número das figuras é indefinido; as figuras que estão nos extremos costumam ficar cortadas pelos bordos do escudo. Isso acontece porque o semeado consiste, de fato, numa repetição simétrica.
(1) Na verdade, as armas da Casa de Montmorency é que são de ouro com uma cruz de vermelho, cantonada de dezesseis aleriões de azul. A Casa de Laval uniu-se à de Montmorency em 1264. Um alerião (alérion em francês) é uma aguieta sem bico nem pés.
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