Há duzentos anos começava uma experiência ímpar de heráldica gentilícia no continente americano.
Há duzentos anos, Dom Pedro I criou a heráldica brasileira. O direito português nessa matéria seguiu, assim como toda a legislação não revogada, vigendo no país, mas para requerer a confirmação ou concessão de armas os brasileiros não precisavam mais endereçar-se ao rei de armas Portugal, pois agora o rei de armas do Império se encarregava de passar as competentes cartas em nome do imperador. Como referi na postagem de 18/11, um escrivão próprio vinha lavrando e registrando esses diplomas de forma independente do Cartório da Nobreza lisboeta desde 1811.
Desconhecendo nós as insígnias dos oficiais de armas brasileiros, como expus na postagem anterior, resolvi comemorar esta efeméride imaginando como poderiam ter sido. Curiosamente, nenhum dos dicionários mais prestigiosos do nosso idioma define bem o que seja tabardo, nem mesmo o venerável Vocabulário de Bluteau (1712-28). Tive, pois, de apelar à língua original da heráldica, consultando o Trésor de la Langue Française informatisé:
TABAR(D), subst. masc.HIST. DU COST. Manteau court et ample, à manches formant ailerons, à fentes latérales, porté au Moyen Âge par-dessus l'armure ou la cotte de maille.P. anal. Tunique brodée d'armoiries portée par les hérauts d'armes. Synon. dalmatique. (1)
Convinha buscar uma definição que dissesse sucintamente como seja um tabardo porque há vários modelos, tanto no que tange à costura como no que tange à heráldica.
Insígnia e tabardo imaginários do rei de armas do Império. |
Quanto à costura, a dianteira e a traseira podem consistir em uma só peça ou duas que se juntam sobre os ombros por costura ou laços de fitas. As mangas variam ainda mais: semicirculares, quadrangulares ou de ambas as formas, como escudos boleados de cabeça para baixo. Os tabardos dos oficiais de armas portugueses que estão conservados no Museu Nacional dos Coches têm clarissimamente o corte de uma dalmática romana, isto é, o paramento que o diácono vestia então no rito romano da Igreja Católica, hoje mais variável.
Quanto à heráldica, discirno quatro modelos. O primeiro é o medieval e original: as peças do tabardo servem de campo para a reprodução das armas, como praticam as corporações britânicas de oficiais de armas. O segundo é o moderno: o tabardo tem certa cor e em cada peça se reproduz o brasão, isto é, o escudo com os ornamentos externos, como é mais comum na Espanha. O terceiro é um tabardo de uma ou duas cores, em que se mesclam elementos heráldicos e decorativos, como o do Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada. O quarto é, propriamente, o caso de formas mistas, como os tabardos dos maceiros de Madrid e de Leão, na Espanha.
Tabardo do rei de armas Tosão de Ouro. Observe-se que a presença das armas reais portuguesas permite a datação de 1580 a 1668 (conservado no KHM). |
No exercício que ora apresento, preferi equilibrar um corte antigo e uma heráldica menos tradicional. Com efeito, preferi o corte outrora praticado nos Países Baixos sob o domínio dos Habsburgos (hoje Bélgica e Luxemburgo), cujos modos cortesãos influíram na península Ibérica por meio da união dinástica com a Coroa espanhola (1518-1714). Vê-se o uso desse modelo nos desenhos das honras fúnebres de Carlos V que Hieronymus Cock fez e Christophe Plantin editou em 1559. Melhor ainda: o Kunsthistorisches Museum (KHM), em Viena, conserva vários exemplares dos séculos XVII e XVIII. Caracteriza-se pelo alargamento das peças dianteira e traseira de cima para baixo e por mangas semicirculares. As quatro peças são costuradas.
No entanto, acho pouco desafiadora a reprodução das armas nas peças do tabardo a modo de campo. Desta feita, após debruar cada peça em ouro, como nos ditos exemplares borguinhões, impôs-se-me a escolha da cor. É probabilíssimo que os tabardos dos oficiais de armas brasileiros tenham sido verdes, a cor do escudo das armas nacionais, do pano da bandeira nacional, das insígnias imperiais, das librés da Casa Imperial etc.
Reproduções das armas nacionais nas insígnias imaginárias dos oficiais de armas. |
Em seguida, veio a escolha das figuras: orlei a dianteira e traseira de ramos ondeantes de cafeeiro e tabaco e carreguei o meio, pouco abaixo do peito de quem o veste, das armas: uma esfera armilar atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo e circulada por uma orla com vinte estrelas. Mas não quis repeti-las nas mangas; nelas pus a coroa imperial e, junto à barra, dez estrelas alternadas com esferas armilares e cruzes da Ordem de Cristo, de modo que as duas peças perfazem vinte estrelas. Escolhidas as figuras, ficaria pouco elegante, a meu ver, dar-lhes as suas cores ordinárias, de modo que preferi o dicromatismo "verde de primavera e amarelo de ouro" (cf. a postagem de 16/09), exceto na orladura de cafeeiro e tabaco, que ressaltei em verde-escuro.
Insígnias imaginárias dos oficiais de armas do Império do Brasil. |
Com relação à insígnia, gosto da fita azul-clara que menciona a Decisão n.º 12/1810 (leia-se a referida postagem anterior), mas se o rei de armas do Império não teve colar, teria sido digno de um. Não como o colar do rei de armas português, de arte abstrata; algo mais significativo, o que não me foi nada difícil encontrar: as vinte estrelas representativas das províncias. Como as encadear? Primeiro as vazando; depois, ligando-as com elos romboidais, isto é, com a forma da figura geométrica que distingue a bandeira nacional. Para ornar esses elos, remontei ao antiquíssimo costume de pôr letras iniciais em colares de dignidades: bês maiúsculos, de Brasil.
Isso descreve o colar. A corrente ou fita fecha-se sob o brasão imaginário da corporação dos oficiais de armas. Para simbolizar o ofício, engenhei um escudo de verde com três escudetes de ouro, referentes aos três graus (rei de armas, arauto e passavante), todos de ponta ogival, o formato clássico (cf. a postagem de 01/01/2021), e por suporte uma serpe estendida de ouro, armada e lampassada de vermelho, o timbre da Casa Imperial, a qual poderia aparecer cingida da coroa imperial.
Para distinguir cada grau do ofício, reproduzi as armas nacionais e imperiais de três maneiras, seguindo à larga o disposto na Decisão n.º 12/1810. Para o rei de armas, uma reprodução completa, mas como seria um trabalho de ourivesaria, meti o escudo numa tarja e passei os ramos de cafeeiro e tabaco pelas suas dobras. Para o arauto, um escudo oval sem a coroa, dentro de uma moldura a modo de bordadura, em cuja metade de baixo figurei com formas frondosas os ramos de cafeeiro e tabaco e em cuja metade de cima escrevi a divisa In hoc signo vinces (cf. a postagem de 09/09). Para o passavante, um escudo redondo, circulado pela dita divisa e, abaixo, o ano MDCCCXXII, tudo dentro de uma tarja.
Como a cor dourada abunda no tabardo, pareceu-me equilibrado fazer as insígnias de prata, exceto a fita azul-celeste.
Para acabar estes exercícios de imaginação, é verdade que os oficiais de armas brasileiros não precisavam ter nomes de lugar, já que havia um de cada grau. Ainda assim, poderiam ter recebido denominações de especial significação histórica, tal como o grito de guerra do rei da França deu nome ao rei de armas Montjoie; a ordem de cavalaria britânica principal, ao rei de armas Garter ou Jarreteira; importantes rios do Canadá, aos arautos desse país.
No Brasil, esses nomes poderiam ter sido, entre outros, rei de armas Cruzeiro do Sul, arauto Ipiranga e passavante Pirajá. O primeiro alude à ordem honorífica que já sob o Império se tornou um símbolo nacional. O segundo, ao riacho em cujas margens Dom Pedro I proclamou a Independência em 7 de setembro de 1822. O terceiro, ao riacho em cujas margens o Exército Pacificador da Bahia travou um combate decisivo (daí dito Batalha de Pirajá) em 8 de novembro do mesmo ano contra as forças portuguesas que ocupavam Salvador. Sem dúvida, nomes que satisfariam bem ao gosto nativista do século XIX.
(1) "TABAR(D), subst[antivo] masc[ulino]
Fantástico o trabalho heráldico e sua explicação, parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigado!
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