A Imperial Ordem do Cruzeiro foi a primeira ordem honorífica do Brasil.
"Ordens brasileiras": 1 – placa da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa; 2 e 3 – insígnia da Imperial Ordem do Cruzeiro; 4 e 5 – insígnias da Imperial Ordem de Pedro I; 6 – placa da Imperial Ordem do Cruzeiro; 7 – placa da Imperial Ordem de Pedro I. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital). |
Há pouco mais de duzentos anos, por ocasião da coroação de Dom Pedro I, criou-se a primeira ordem honorífica do Brasil: a Imperial Ordem do Cruzeiro. Nos livros de história, costuma-se mencionar tal fato como mera curiosidade, mas no campo da emblemática tem uma relevância muito maior do que aparenta. Como é neste campo que estamos, o leitor há de me perdoar a transcrição íntegra do Decreto de 1.º de dezembro de 1822.
DECRETO DO 1.º DE DEZEMBRO DE 1822
Cria a Imperial Ordem do Cruzeiro.
Desejando eu assinalar por um modo solene e memorável a época da minha aclamação, sagração e coroação como Imperador Constitucional do Brasil e seu Perpétuo Defensor, por ser a mais importante para esta Monarquia, acabando de firmar a sua independência, representação política e futura grandeza e prosperidade, manifestando-se assim ao mesmo tempo à face das nações o brio, amor e lealdade do grande povo que me elevou, por unânime espontaneidade, ao grau sublime de seu Imperador Constitucional, e sendo prática constante e justa dos augustos imperantes e particularmente dos senhores reis, meus predecessores, criar novas ordens de cavaleria para melhor perpetuarem as épocas memoráveis de seus governos e com especialidade de meu augusto pai, o Senhor Dom João VI, Rei de Portugal e Algarves, que pela sua feliz chegada às plagas deste Império renovou e ampliou a antiga Ordem da Torre e Espada em 13 de maio de 1808 e, alguns anos depois, criou no dia 6 de fevereiro de 1818, em que fora aclamado na sucessão da Coroa, a Ordem Militar da Conceição, por todos estes ponderosos motivos e por querer, outrossim, aumentar com a minha Imperial Munificência os meios de remunerar os serviços que me têm prestado e houverem de prestar os súditos do Império e os beneméritos estrangeiros, que preferem estas distinções honoríficas a quaisquer outras recompensas, e também para poder dar mais uma prova da minha alta consideração e amizade às personagens da maior jerarquia e merecimentos que folgarem com este meu sinal de estimação, hei por bem — em alusão à posição geográfica desta vasta e rica região da América austral que forma o Império do Brasil, onde se acha a grande constelação do Cruzeiro, e igualmente em memória do nome, que teve sempre este Império desde o seu descobrimento, de Terra de Santa Cruz — criar uma nova ordem honorífica, denominada Imperial Ordem do Cruzeiro, a qual será governada e regulada interinamente pelos artigos seguintes, que servirão de base aos estatutos gerais e permanentes que se hajam de fazer para o futuro.
1.º A mim e aos imperadores que me sucederem no Trono do Brasil pertence o título e autoridade de Grão-Mestre desta Ordem Imperial.
2.º O expediente dos negócios da Ordem é confiado a um chanceler, que despachará imediatamente comigo.
3.º A Ordem constará: primeiro, de cavaleiros, cujo número será ilimitado; segundo, de duzentos oficiais efetivos e cento e vinte honorários; terceiro, de dignitários, dos quais serão trinta efetivos e quinze honorários; quarto, de oito grão-cruzes (1) efetivos e quatro honorários.
4.º As pessoas da minha Imperial Família e os estrangeiros a quem, por sua alta jerarquia e merecimentos, eu houver por bem conferir as condecorações desta Ordem serão reputados supranumerários e não prestarão juramento.
5.º Os membros honorários da Ordem de qualquer dos graus não poderão passar ao grau superior antes de serem efetivos nos antecedentes.
6.º Depois da primeira promoção, cujas nomeações dependem da minha Imperial Escolha e Justiça, ninguém poderá ser admitido a cavaleiro sem provar ao menos vinte anos de distinto serviço militar, civil ou científico, exceto nos casos de serviços extraordinários e relevantíssimos que mereçam da minha Imperial Munificência dispensa neste artigo fundamental.
7.º Estabelecida regularmente a Ordem, nenhum cavaleiro poderá passar a oficial sem contar quatro anos de antiguidade no seu grau; para poder este ser promovido a dignitário, deverá ter três anos de oficial; e para grão-cruz (1), cinco anos de dignitários. Aos militares, porém, estando em campanha, cada ano de guerra lhes será contado por dous de serviço ordinário para este fim.
8.º A insígnia desta Ordem será, para os simples cavaleiros, uma estrela da forma que mostra o padrão que com este baixa, esmaltada de branco, decorada com coroa imperial e assentando sobre uma coroa emblemática das folhas de tabaco e café, esmaltadas de verde. Terá no centro, em campo azul-celeste, uma cruz formada de dezenove estrelas esmaltadas de branco e na circunferência deste campo, em círculo azul-ferrete, a legenda a Benemerentium præmium (2) em ouro polido. A medalha no reverso, em lugar da cruz, terá a minha Imperial Efígie em ouro e campo do mesmo metal, com a seguinte legenda no círculo azul-ferrete Petrus I, Brasiliæ Imperator (2). Os oficiais da Ordem, os dignitários e grãos-cruzes usarão também da chapa que se observará no padrão em n. 1 e da forma abaixo prescrita.
9.º Os cavaleiros usarão da insígnia ou venera enfiada em fita azul-celeste, atada em uma das casas do lado esquerdo do vestido ou farda de que usarem, como se pratica na Ordem de Cristo. Os oficiais usarão, além disto, da chapa ou bordado no lado esquerdo do vestido ou farda. Os dignitários, além da chapa no vestido ou farda, trarão a insígnia pendente de fita larga ao pescoço. Finalmente, os grãos-cruzes, além da chapa, trarão a tiracolo as bandas ou fitas largas de azul-celeste com a medalha da Ordem.
10. Nas funções solenes da Ordem, virão todos os membros dela ornados de manto branco, com cordões e alamares de cor azul-celeste e com a insígnia bordada sobre o ombro esquerdo no manto, conforme as suas graduações.
11. Esta Ordem gozará de todos os privilégios, foros e isenções de que goza a Ordem de Cristo no que não for contrário à Constituição do Império.
12. Aos grãos-cruzes da Ordem competirá o tratamento de Excelência quando já o não tenham pelas graduações em que estiverem, assim como aos dignitários o tratamento de Senhoria.
13. Aos grãos-cruzes que falecerem se farão as honras funerais militares que competem aos tenentes-generais; aos dignitários, as dos brigadeiros; aos oficiais, as dos coronéis; e finalmente aos cavaleiros, as dos capitães. E quando vivos, se lhes farão as continências militares correspondentes às graduações acima mencionadas.
14. No 1.º dia de dezembro, aniversário da minha coroação, haverá na Capela Imperial da Corte a Festa da Ordem e no mesmo dia se publicarão as novas promoções da mesma. A esta festa assistirão todos os membros da Ordem que se acharem dentro de três léguas da Corte.
15. Esta Ordem Imperial, para prêmio dos serviços dos seus membros e para conservação do seu esplendor e dignidade, terá uma dotação proporcionada aos seus nobres e importantes fins, estabelecendo-se um número certo de tenças e comendas de diversas lotações, na forma que deliberar a Assembleia Legislativa do Império do Brasil.
16. Todos os que forem promovidos aos diferentes graus desta Ordem prestarão juramento solene nas mãos do Chanceler da Ordem de serem fiéis ao Imperador e à Pátria, de que se fará assento em um livro destinado para este fim.
17. As nomeações serão feitas por decretos assinados pelo Grão-Mestre e referendados pelo Chanceler da Ordem, que expedirá depois o competente diploma para servir de título ao agraciado, o qual terá prestado previamente o juramento acima mencionado por si ou, no caso de legítimo impedimento, por seu bastante procurador, depois de obtida para isto a licença necessária, do que tudo se fará assento, tanto no livro da matrícula como no reverso do diploma.
18. Na Chancelaria da Ordem não se levarão emolumentos alguns mais do que o feitio e registro dos diplomas. Ficam, porém, obrigados os agraciados a dar uma joia qualquer, a seu arbítrio, para a dotação de uma caixa de piedade, destinada para mantença dos membros pobres da Ordem ou que por casos fortuitos ou desgraças caírem em pobreza.
19. Finalmente, todo e qualquer membro desta Ordem que cometer o que Deus não permita, algum crime contra a honra e contra o juramento prestado será expulso da Ordem, perderá todos os foros, privilégios e isenções e ficará inibido para sempre do uso da insígnia da mesma Ordem, havendo sentença condenatória pelo juiz competente.
O Chanceler da Ordem Imperial do Cruzeiro, os meus Ministros e Secretários de Estado das diferentes repartições e todas as autoridades constituídas, a quem o conhecimento e execução deste meu Imperial Decreto possa pertencer, assim o tenham entendido e façam cumprir e executar.
Palácio do Rio de Janeiro, em o 1.º de dezembro de 1822, 1.º da Independência e do Império.
Com a rubrica de Sua Majestade Imperial.
JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADE E SILVA
Logo no ano seguinte, imprimiu-se um panfleto intitulado Análise ao Decreto do 1 de dezembro de 1822, sobre a criação da nova Ordem do Cruzeiro, cuja autoria tem sido atribuída a Cipriano Barata, ex-deputado da Bahia às Cortes de Lisboa, deputado eleito pela mesma província à Assembleia Constituinte (porém nesta não tomou assento), editor da Sentinela da Liberdade no Recife e um dos nomeados a dignitário, mercê que recusou. Abstraindo os acérrimos ataques ao gabinete de Dom Pedro I, há argumentos ilustrativos das correntes de pensamento que concorriam então:
Por seguirmos o nosso plano de brevidade, ponhamos de parte tudo quanto dizem os outros artigos até o undécimo. Este, pela sua matéria, é certamente um dos que envolvem maiores agravos aos olhos dos brasileiros, o que manifestamente apresenta o mais escarnado arbítrio. Diz o artigo: "gozará de todos os privilégios, foros e isenções de que goza a Ordem de Cristo". Eis aqui uma miscelânea que tira toda a dúvida de pretenderem os ministros do Rio de Janeiro fundar um governo aristocrático, deslumbrando os olhos dos incautos brasileiros com ornatos de fitas e medalhas e os espíritos fracos com promessas de privilégios, foros, isenções etc. Lisonjear o coração humano sempre foi arma dos tiranos e a mais perigosa à pátria, mas felizmente o artifício não tem lugar no dia de hoje, em que o nosso corpo legislativo tudo pode prover, acautelar, pois que só a ele pertence decretar etc. Todavia, eu sempre perguntarei aos ministros, que deram à Sua Majestade Imperial a assinar sub-repticiamente este decreto sem o ler nem refletir, se não é espalhar um terrível fermento de nova revolução tocar em privilégios, foros e isenções neste tempo de luzes, em que se têm diante dos olhos mil sublimes instruções, reformas e leis da Constituição portuguesa, e nesta ocasião, em que se esperam outras semelhantes do nosso Congresso no Rio e em que se não podem sofrer e de fato se hão de extinguir privilégios, foros e isenções. Se todos são iguais perante a lei e deve haver responsabilidade segundo a mesma lei, como é que arrojadamente se fala em privilégios, foros e isenções? Eu não posso duvidar que, havendo padecido a antiga nação portuguesa (e nós com ela) grandes males por estes privilégios, foros e isenções, ninguém dará apoio no Brasil a tão corrupto sistema. Se Sua Majestade Imperial tivesse extinto as três ordens de Cristo, Avis e Santiago como ordens da nação portuguesa, que hoje nos é estranha; se conservasse as da Torre e Espada e Conceição, privativas do Brasil, por serem criadas no Rio de Janeiro, esperando que as nossas Cortes brasileiras instituíssem esta do Cruzeiro para distinção honorífica dos beneméritos da pátria exclusivamente com alguma insígnia que os cobrisse de glória, assim como em tempos antigos se premiavam as melhores ações dos heróis de Roma com uma coroa de loiro; se não se tomassem na boca estas palavras detestáveis — privilégios, foros e isenções — cada uma das quais prova com evidência a restauração do despotismo por meio de nova classe de cidadãos, que só servem para pesar sobre o resto da sociedade, neste caso daríamos talvez alguma desculpa aos ministros e esperaríamos que o semivivo monstro do despotismo não inficionasse com hálito pestilento as bem-aventuradas plagas brasileiras.
Portanto, não se combatia propriamente a criação de uma ordem honorífica nova, mas que o fons honorum fosse a Coroa, e não a nação. Efetivamente, esse pensamento demonstra que certos liberais entendiam a monarquia constitucional como uma espécie de república coroada. Por outro lado, a Constituição de 1824 provaria que todo o acusatório de restauração absolutista não passava de alarde retórico:
Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que têm por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império pela maneira seguinte.
[...]
XIII. A lei será igual para todos, quer proteja quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um.
XIV. Todo o cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos ou militares, sem outra diferença que não seja a dos seus talentos e virtudes.
XV. Ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção dos seus haveres.
XVI. Ficam abolidos todos os privilégios que não forem essencial e inteiramente ligados aos cargos, por utilidade pública.
XVII. À exceção das causas que por sua natureza pertencem a juízos particulares, na conformidade das leis, não haverá foro privilegiado nem comissões especiais nas causas cíveis ou crimes.
Com efeito, Dom Pedro I calcou a criação da Ordem do Cruzeiro na Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, que Dom João VI criara por ocasião da sua aclamação, aos 6 de fevereiro de 1818, e estatuíra pelo Alvará de 10 de setembro de 1819. Todavia, mesmo no ocaso do Antigo Regime, as grã-cruzes honorárias dessa ordem eram conferidas a pessoas que tinham títulos; as comendas, a fidalgos filhados; as mercês de cavaleiro, aos nobres e empregados que faziam serviços ao rei ou mereciam a sua "real contemplação" (art. 5.º) e todos deviam jurar "defender o mistério da Imaculada Conceição da Virgem Maria" (art. 17). Portanto, uma ordem aristocrática e, apesar de o artigo 16 esclarecer que era independente de profissão religiosa, apegava-se à ideia originária das ordens de cavalaria: a defesa da fé.
Dom Pedro I, retrato de Henrique José da Silva (1824), conservado no Museu Imperial (imagem disponível no repositório institucional). Dentre as insígnias de várias ordens, sobressai a placa da Imperial Ordem do Cruzeiro. |
Em contraposição, a Ordem do Cruzeiro comemorava a sagração e coroação de Dom Pedro I por ser o momento em que se firmou a independência do Brasil, remunerava serviços militares, civis ou científicos dos súditos do Império e de beneméritos estrangeiros, disciplinava a promoção de um grau ao mais alto cumprindo-se certo tempo de serviço, reduzido pela metade se em campanha, e impunha aos condecorados juramento de fidelidade ao imperador e à pátria, do que se isentavam a Família Imperial e os estrangeiros, por serem supranumerários. Portanto, o estatuto dessa ordem deixa ver o liberalismo moderado que guiou a construção do nosso estado nacional: era uma ordem explicitamente honorífica, mas a fonte dessa honra era a Coroa.
(1) Hoje se diz grã-cruz e o seu plural é grã-cruzes. Grão no masculino e grã no feminino são apócopes de grande.
(2) "Prêmio àqueles que bem-merecem" e "Pedro I, Imperador do Brasil".
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