A criação do ofício de rei de armas do Império pode ser tida como o marco inicial da heráldica brasileira.
A partir de 1808, quando Dom João instalou a Corte no Rio de Janeiro, foram-se paulatinamente duplicando as instituições necessárias ao governo da monarquia, inclusive aquelas às quais competia conceder ou confirmar as diferentes formas de amerceamento régio: títulos de nobreza, foros de fidalguia, ordens de cavalaria, brasões de armas etc.
No que respeita à última das mercês mencionadas, consta que a Corporação dos Reis de Armas foi criada aos 8 de maio de 1810, claramente para funcionar no casamento do infante Dom Pedro Carlos, neto de Carlos III da Espanha, que crescera em Portugal e também viera para o Brasil, com a infanta Dona Maria Teresa, a primogênita do príncipe regente, o qual foi celebrado no dia 13 desse mês no Rio. As nomeações saíram, todavia, algum tempo depois: a Isidoro da Costa e Oliveira deu-se o ofício de rei de armas Portugal por alvará de 13 de setembro de 1814; a Tomás Antônio Carneiro, o de rei de armas Algarve por alvará de 18 de novembro do mesmo ano; a Luís Ribeiro de Carvalho, o de rei de armas América, Ásia e África por alvará da mesma data. Os efeitos desses documentos retroagiam a 19 de junho de 1810, quando se lavrou a Decisão n.º 12, declarando as insígnias dos oficiais de armas.
Para passar cartas de brasão e registrá-las, faltava, porém, prover o ofício de escrivão da Nobreza, o qual foi dado a Antônio Bernardo Cardoso Pessanha de Castelo Branco por alvará de 6 de fevereiro de 1811. Enquanto isso, Francisco de Paula Campos, escrivão da Nobreza por alvará de 18 de julho de 1803, e Antônio da Silva Rodrigues, rei de armas Portugal por alvará de 19 de julho de 1805, sucedido por José Teodoro de Seixas a partir de junho de 1811, permaneceram no Reino, passando e registrando tais cartas, de modo que houve desde então dois Cartórios da Nobreza: um em Lisboa e o outro no Rio.
Convém lembrar que a corporação dos oficiais de armas foi instituída por Dom Manuel I em 1512 (leia-se a postagem de 13/01/2021). Compunha-se de três reis de armas, três arautos e três passavantes. Os primeiros tinham os nomes dos dois reinos e do único estado ultramarino à época: rei de armas Portugal, rei de armas Algarve e rei de armas Índia. Os segundos, os nomes das cidades principais desses domínios: arauto Lisboa, arauto Ceuta (depois Silves) e arauto Goa. Os terceiros, das suas maiores vilas: passavante Santarém, passavante Tavira (depois Lagos) e passavante Cochim. Portugal era o oficial de armas principal desde 1476 e, como tal, competia-lhe exclusivamente passar brasões em nome do monarca (leia-se a postagem de 11/01/2021).
Portanto, o rei de armas América, Ásia e África foi uma inovação e em 1817, quando se aproximava a aclamação de Dom João VI (que se celebraria em fevereiro do ano seguinte), pleiteou a precedência para proferir o "Ouvide!", mas a Mesa do Desembargo do Paço preferiu salvaguardar a principalidade do rei de armas Portugal, julgando que o de Luís Ribeiro não era ofício novo, mas mera renomeação do rei de armas Índia, não mais alusivo a um dos estados, mas ao conjunto do império ultramarino, embora então houvesse alguém na posse desse ofício: José da Cunha Madeira, que serviu de rei de armas Portugal interinamente desde dezembro de 1817 junto ao cartório lisboeta.
Dom Pedro I, gravura de Pierre-Louis Grevedon, c. 1830 (imagem disponível na Brasiliana Iconográfica). |
Foi, pois, mais um fausto da monarquia que demandou a criação da corporação brasileira dos oficiais de armas em novembro de 1822: a sagração e coroação de Dom Pedro I. A corporação que funcionava no Rio partira com Dom João VI para Portugal em abril de 1821, exceto Félix José da Silva, que tinha o ofício de passavante desde 1817. Foi feito rei de armas do Império:
Eu, o Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Império do Brasil, faço saber a vós, José Bonifácio de Andrada e Silva, do meu Conselho de Estado, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império e que servis de meu Mordomo-Mor, que hei por bem e me praz fazer mercê a Feliz José da Silva do ofício de Rei d'Armas do Império, com o qual haverá mil e quinhentos réis de moradia por mês e um alqueire de cevada por dia, paga a vinte réis o alqueire, e sete mil cento e sessenta réis de vestiaria por ano e seiscentos réis de janeiras. Mando-vos o façais assentar no Livro da Matrícula dos Moradores da minha Casa em seu título, como dito é. E pagou de novos direitos cinco mil e seiscentos réis, que se carregaram ao Tesoureiro deles no Livro Primeiro da sua Receita, a folhas nove. Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1822. Imperador com guarda. José Bonifácio de Andrada e Silva. Praz a Vossa Majestade Imperial fazer mercê a Feliz José da Silva do ofício de Rei d'Armas do Império, como neste alvará se declara. Para Vossa Majestade Imperial ver. Por portaria do Ilustríssimo e Excelentíssimo José Bonifácio de Andrada e Silva, que serve de Mordomo-Mor, de 12 de novembro de 1822. O Visconde do Rio Seco o fez escrever. Do alvará, 12$800; aos oficiais, 1$600. Domingos José Ferreira o fez. (1)
Além do rei de armas, o cerimonial também previu o funcionamento de um arauto e um passavante, mas apenas o alvará transcrito saiu antes da cerimônia. O ofício de passavante do Império foi criado e dado a José Bernardes Monteiro Guimarães por alvará de 30 de dezembro de 1822 e o de arauto do Império, a Daniel José Pereira por alvará de 24 de maio de 1823. Como havia um oficial de cada categoria, não foi preciso dar-lhes nomes de lugar.
Carta de brasão de Augusto Leverger, barão de Melgaço e presidente do Mato Grosso, passada pelo rei de armas Manuel dos Santos Carramona e registrada pelo escrivão Luís Aleixo Boulanger em 1865. As suas armas são "em campo de goles um castelo de ouro, saindo pela porta uma [mão] destra ao natural, armada de uma espada de azul, posta em banda, acompanhado em chefe de uma estrela de prata entre as letras iniciais M–G de ouro e em ponta de um rio de prata, carregado de uma âncora de sable; divisa: SEMPRE PRONTO" (imagem disponível da Biblioteca Nacional Digital). |
O arauto era uma espécie de aprendiz do rei de armas e o passavante, uma espécie de aprendiz do arauto. Com efeito, Félix José da Silva foi sucedido no ofício de rei de armas por José Maria da Silva Rodrigues em 1846, quem o exerceu até 1859, sendo que ele mesmo assumira o ofício de arauto no lugar de Daniel José Pereira em 1826. Seguiu-se Manuel dos Santos Carramona de 1865 a 1885, depois de quem vagou, mas Ernesto Aleixo Boulanger serviu interinamente desde 1887 até o fim da monarquia. Portanto, o Brasil teve quatro reis de armas, tendo o primeiro funcionado nas sagrações e coroações dos dois imperadores.
Seja como for, os oficiais de armas estavam entre os menores da Casa Imperial: o próprio Félix José da Silva começou a sua carreira cortesã como apontador de carpinteiros e veio ascendendo a mestre das obras públicas, varredor dos paços reais e mestre carpinteiro da Fazenda Real de Santa Cruz antes da Independência; depois, além de rei de armas, foi da Guarda de Honra (onde chegou a capitão), cavaleiro da Ordem de Cristo e cavaleiro-fidalgo da Casa Imperial. Passou a vida queixando-se de insuficiência financeira e requerendo mercês à Coroa.
José Antônio da Silva Maia nos seus Apontamentos de legislação para uso dos procuradores da Coroa e Fazenda Nacional (1846, p. 146) revela que "[n]o Brasil há somente três destes oficiais — rei d'armas, arauto e passavante — e exercem funções semelhantes às que ficam expostas, sem terem a instrução que neles desejou o rei Dom Manuel". Mas esse defeito não surgiu aqui; desde o começo do século XVIII, o rei de armas Portugal fazia pouco mais que despachar ao escrivão da Nobreza que passasse ao suplicante "o brasão de armas dos seus apelidos", cobrar os seus direitos e assinar a carta de confirmação ou concessão. Dom João V convenceu-se até mesmo de designar em 1722 um frade paulista para reformar o Cartório da Nobreza, Frei José da Cruz, tarefa continuada por Frei Manuel de Santo Antônio e Silva até 1790.
Portanto, no Brasil, como em Portugal sob a monarquia constitucional, o grosso do trabalho no Cartório da Nobreza recaía sobre o seu escrivão, daí que o derradeiro rei de armas do Império, Ernesto Aleixo Boulanger, estivesse, na verdade, acumulando interinamente esse ofício com o seu, precisamente o de escrivão da Nobreza. O primeiro seguiu sendo Antônio Bernardo Cardoso Pessanha de Castelo Branco, que não voltara com Dom João VI para Lisboa; sucedeu-lhe seu filho, Joaquim de Azevedo Lobo Pessanha e Vilhegas Castelo Branco (1830-46); depois o barão Carlos Roberto de Planitz (1846-48), Possidônio Carneiro da Fonseca Costa (1848-54), Luís Garcia Soares de Bivar (1854-63) e Luís Aleixo Boulanger (1863-74), pai de Ernesto Aleixo (1874-89). Em suma, o Cartório da Nobreza do Império teve sete escrivães.
(1) As doações dos ofícios da Casa Real, depois Imperial, eram assentadas em livros próprios, guardados no Registro Geral das Mercês. Dou aqui a transcrição de Rui Vieira da Cunha em artigo de 1963, do qual também extraio parte das informações nesta postagem.
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