A necessidade de celebrar a aclamação o mais depressa levou a adiar a pompa monárquica para uma cerimônia de sagração e coroação.
Há duzentos anos, Dom Pedro I foi sagrado e coroado imperador do Brasil. Na verdade, o seu império começou em 12 de outubro de 1822, quando o Senado da Câmara do Rio de Janeiro e os procuradores das câmaras da província homônima o aclamaram. As demais câmaras do país foram-no fazendo no tempo que a distância e a comunicação propiciaram. Ainda assim, Salvador permaneceu sob ocupação portuguesa até o memorável 2 de julho de 1823. Como eu disse na postagem de 12/10, a conjuntura orientava que não se postergasse a aclamação e, por isso, foi celebrada de forma simplicíssima.
A coroação de Dom Pedro I, pintura de Jean-Baptiste Debret (1828), pertencente ao acervo do Palácio Itamaraty. Observe-se que há dois estandartes na cena: mais à frente e à esquerda o imperial, empunhado pelo alferes-mor, e mais ao fundo e ao centro o da câmara carioca, que tremulara na aclamação (imagem disponível no portal do Ministério das Relações Exteriores). |
Entende-se, pois, que a pouca majestade da aclamação tenha levado à celebração de uma sagração e coroação, ainda que ao arrepio da tradição portuguesa, se bem que se escolheu o dia 1.º de dezembro, o mesmo em que Dom João IV foi aclamado rei em 1640, restaurando a independência de Portugal, novamente vinculando a separação do Brasil às façanhas da Casa de Bragança. Por isso mesmo, é admirável que, não só à falta das insígnias monárquicas concretas, mas também de um cerimonial nativo, se tenha conseguido celebrar uma cerimônia satisfatória sob qualquer aspecto dentro de tão pouco tempo: o anexo à Decisão n.º 138, de 20 de novembro, demonstra que então a comissão encarregada já o tinha elaborado (vide a coleção das leis de 1822). Isso foi possível graças ao senso prático de aproveitar com equilíbrio o que estava disponível mais a tradição e inovar no que fosse necessário.
Com efeito, para a liturgia adotou-se a celebração De benedictione et coronatione Regis, disponível no Pontificale Romanum (edição de 1752, sob Bento XIV), isto é, o livro que contém as celebrações que devem ser presididas por um bispo. A ela apendeu-se uma cerimônia civil que claramente recobrou os atos da tradição portuguesa da aclamação que se tinham omitido em 12 de outubro. E em tudo operaram-se adaptações, seja porque a dignidade não era a de rei, mas a de imperador, seja porque era preciso elidir o que remetesse ao Antigo Regime.
Centro Cultural Paço Imperial, Rio de Janeiro. A restauração de 1985 devolveu-lhe o estilo colonial original (imagem disponível no portal do IPHAN). |
A sagração e coroação de Dom Pedro I tiveram lugar na Igreja da Sé e Capela Imperial (hoje Antiga Sé), mas a cerimônia começou e acabou no Paço Imperial (hoje Centro Cultural Paço Imperial). Além das condignas decorações desses edifícios, no entorno montou-se o que chamamos hoje de esquema de segurança: fechamento de certas vias, desvio do tráfego por outras e policiamento das entradas e saídas.
Insígnias imperiais de Dom Pedro I. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital). |
O cortejo saiu do paço por volta das dez horas da manhã. Um guarda dos archeiros encabeçava-o e atrás dele os timbaleiros e charamelas; seguiam-nos alas de pessoas de alta categoria; os oficiais de armas; os moços da Câmara, os oficiais da Casa e os ajudantes do mestre de cerimônias; alas dos cortesãos, entre as quais os portadores das insígnias imperiais, a saber:
- O Cônego Antônio Vieira da Soledade, procurador-geral (1) do Rio Grande do Sul, e Manuel Clemente de Cavalcanti Albuquerque, procurador-geral da Paraíba, traziam a espada, o bastão e as luvas;
- Manuel Ferreira da Câmara, procurador-geral de Minas Gerais, e Lucas José Obes, procurador-geral da Cisplatina, traziam o manto;
- Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira, procurador-geral de São Paulo, trazia o cetro;
- José Mariano de Azeredo Coutinho, procurador-geral do Rio de Janeiro, trazia a coroa.
Atrás das insígnias ia José Egídio Álvares de Almeida, barão de Santo Amaro e mestre de cerimônias. Vinha, então o imperador sob um pálio de oito varas, sustentadas por procuradores e membros das juntas de governo provisório, a saber:
- A primeira direita, por Manuel Martins do Couto Reis, procurador-geral de São Paulo;
- a primeira esquerda, por Estêvão Ribeiro de Resende, procurador-geral de Minas Gerais e depois marquês de Valença;
- a segunda direita, por José Vieira de Matos, procurador-geral do Espírito Santo;
- a segunda esquerda, por José Antônio dos Santos Xavier, procurador da Câmara do Rio de Janeiro;
- a terceira direita, por Francisco Gomes Brandão Montezuma, procurador do Conselho Interino de Governo da Bahia e depois visconde de Jequitinhonha;
- a terceira esquerda, por João de Bittencourt Pereira, deputado da Junta de Governo Provisório de Santa Catarina;
- a quarta direita, por José de Sousa e Melo, deputado da Junta de Governo Provisório de Alagoas;
- a quarta esquerda, por José Francisco de Andrada e Almeida Monjardim, deputado da Junta de Governo Provisório do Espírito Santo.
Aos lados do pálio iam Manuel Inácio de Andrade, barão de Itanhaém e alferes-mor, com o estandarte imperial enrolado; Francisco de Assis Mascarenhas, conde da Palma e condestável, com o estoque em riste; José Bonifácio de Andrada e Silva, mordomo-mor; Francisco da Costa de Sousa de Macedo, camarista e depois marquês da Cunha, e João José de Andrade Pinto, capitão da Guarda, todos pela direita; Pedro Dias Pais Leme, barão de São João Marcos e camareiro-mor, e Luís de Saldanha da Gama, reposteiro-mor e depois marquês de Taubaté, pela esquerda (2). Atrás do pálio seguia o Senado da Câmara do Rio de Janeiro e, fechando o cortejo, um guarda dos archeiros, os quais também flanqueavam a Corte e o pálio.
Tendo o cortejo atravessado o Largo do Paço (hoje Praça XV de Novembro) ao longo de uma teia especialmente preparada, os archeiros que vieram adiante formaram-se a um lado e ao outro da Capela Imperial, por fora, e à porta foi recebido o imperador pelo clero: Dom José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro, capelão-mor e celebrante; Dom Frei José da Santíssima Trindade, bispo de Mariana; o bispo de Kerman (3) e o cabido da catedral carioca. Após a aspersão, todos se encaminharam à Capela do Santíssimo Sacramento para fazer uma oração.
Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, Rio de Janeiro. Ao contrário do exterior, muito alterado sob o pastoreio do Cardeal Arcoverde (1897-1930), o interior preserva o estilo rococó original, do fim do século XVIII (imagem disponível na Wikimedia Commons). |
Dentro da igreja, os timbaleiros e charamelas ficaram junto à porta, por dentro; os archeiros que tinham flanqueado o cortejo formaram duas alas rente à nave e nela a Corte tomou assento do lado do Evangelho e o Senado da Câmara e os procuradores do lado da Epístola, uns defronte aos outros (4). O manto foi levado para a sacristia, reservada ao imperador como camarim, e as demais insígnias imperiais foram depositadas na capela-mor: a coroa, o cetro e a espada sobre o altar; o bastão e as luvas sobre uma credência do lado da Epístola, a qual também sustinha o vaso da oferenda e estava sob a guarda do esmoler-mor e do copeiro-menor. Os oficiais de armas puseram-se à entrada da capela-mor, do lado da Epístola. As tribunas foram ocupadas a convite do monarca.
Feita a oração perante o Santíssimo Sacramento, o imperador endereçou-se à capela-mor, caminhando devagar para que os bispos se adiantassem até os seus lugares no presbitério. Seguiram-no pelo lado do Evangelho o mestre de cerimônias, o camareiro-mor, o camarista, o ministro da Justiça e o capitão da Guarda; pelo lado da Epístola o condestável, o mordomo-mor e o reposteiro-mor. Obedecendo à mesma ordem, esses oficiais também o acompanhavam sempre que andava, exceto o ministro da Justiça.
Na capela-mor, o imperador parou entre os bispos assistentes e diante do celebrante. O bispo de Mariana iniciou a liturgia postulando-o em nome da igreja ao celebrante para que este o alçasse à dignidade imperial. Ele perguntou-lhe, então, se o postulante era idôneo e após a resposta afirmativa deu graças a Deus. O imperador sentou-se numa cadeira que o reposteiro-mor lhe achegara e ouviu a admoestação que começa Cum hodie, após a qual se lhe retirou a cadeira para que, ajoelhado sobre uma almofada, prestasse o juramento litúrgico, que lhe leu Caetano Pinto de Miranda Montenegro, ministro da Justiça e depois marquês de Vila Real da Praia Grande, e rematou com ambas as mãos sobre o evangeliário, dizendo "Sic me Deus adjuvet et hæc sancta Dei Evangelia". A oração que começa Omnipotens sempiterne Deus concluiu a primeira parte.
Para a sagração, o imperador recolheu-se ao seu camarim, onde vestiu uma camisa apropriada à cerimônia. Tendo retornado à capela-mor, prostrou-se sobre uma alcatifa e almofadas ante o altar e nessa posição ouviu a ladainha de todos os santos e algumas preces. Após a oração que começa Actiones nostras, quæsumus, Domine, levantou-se e o reposteiro-mor retirou as almofadas e pôs outra, sobre a qual o imperador se ajoelhou para receber as unções. O camarista desatou, então, os cordões da camisa e pelas aberturas o celebrante ungiu os braços e o peito do imperador, dizendo a oração que começa Deus, Dei Filius. O presbítero assistente limpou as unções com algodão e o camarista reatou os cordões, mas o imperador permaneceu de joelhos até o fim da oração que começa Omnipotens sempiterne Deus, qui Hazael, a qual concluiu a segunda parte.
Sagrado, o imperador recolheu-se outra vez ao camarim, de onde voltou revestido do manto imperial, cuja cauda o camareiro-mor sustentava sempre que o monarca andava e a soltava quando ele parava. Subiu, então, o estrado do trono e em pé ouviu a missa até o penúltimo verso do gradual (5). Esse estrado foi montado junto à parede da capela-mor do lado do Evangelho e no seu ângulo direito estava a cadeira rasa do condestável, detrás de quem se postou em pé o capitão da Guarda. As cadeiras rasas dos demais oficiais — mordomo-mor, camareiro-mor, camarista, reposteiro-mor, ministro da Justiça e mestre de cerimônias — alinhavam-se ao longo do estrado. O alferes-mor ficou defronte ao trono, ao lado do esmoler-mor. Acima, na tribuna, estavam a imperatriz Dona Leopoldina e a princesa Dona Maria da Glória.
Quando o coro acabou o dito verso, o imperador desceu e andou até o presbitério, à entrada do qual os bispos assistentes o receberam e o levaram aos pés do celebrante, onde o reposteiro-mor acomodou a almofada para que se ajoelhasse. O celebrante entregou primeiro a espada desembainhada ao imperador, dizendo a oração que começa Accipe gladium, e em seguida o diácono que a trouxera do altar a embainhou e o celebrante cingiu com ela o imperador, dizendo a oração que começa Accingere gladio tuo. Então o imperador se levantou, sacou a espada, a brandiu, novamente a embainhou e se ajoelhou. Depois o celebrante tomou a coroa do altar e, com a ajuda dos bispos assistentes, a pôs sobre a cabeça do imperador, dizendo a oração que começa Accipe coronam imperii. Finalmente, o diácono trouxe o cetro, que o celebrante entregou ao imperador dizendo a oração que começa Accipe virgam virtutis. Em completa pompa, o celebrante com o bispo de Mariana conduziu o imperador até o alto do estrado e o entronizou, dizendo a oração que começa Sta et retine, depois da qual depôs a mitra, se virou para o altar e entoou o hino Te Deum, que o coro prosseguiu e todos ouviram em pé, salvo o monarca. As preces e orações que se fazem após esse hino concluíram a terceira parte.
Moeda de 6.400 réis conhecida como peça da coroação. Exemplar do Museu da Casa da Moeda de Portugal (imagem disponível no Collect Prime). |
Continuou o celebrante a missa, mas o sermão foi proferido pelo pregador Frei Francisco de Sampaio, que tomou por tema 1 Reis, 1, 34. No momento do ofertório, Frei Severino de Santo Antônio, esmoler-mor, tomou o vaso da oferenda e, acompanhado de Joaquim José de Magalhães Coutinho, copeiro-menor, precederam o imperador, que desceu do trono, caminhou até o altar e diante dele sobre almofada se ajoelhou. Então o camarista lhe tirou a coroa e o esmoler-mor lhe entregou a oferenda, que ele apresentou ao celebrante. Eram moedas de ouro do novíssimo cunho nacional. Em seguida, retomou a coroa e voltou ao trono, mas o camarista lha tirou mais duas vezes: nos momentos da elevação e da comunhão. Coube ao bispo de Mariana dar-lhe o abraço da paz e ao celebrante ministrar-lhe a eucaristia, a qual recebeu no primeiro degrau do altar, onde se ajoelhara. Daí se recolheu ao trono para fazer a sua ação de graças. Com o fim da missa acabou a celebração constante do Pontificale Romanum.
Dom Pedro I na pompa imperial. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital). |
Não obstante, permanecendo o imperador na sua pompa, estendeu-se uma quinta e derradeira parte: o juramento civil. Para tanto, o reposteiro-mor pôs uma mesinha aos pés do imperador, um tanto afastada à direita, e sobre ela o livro dos Evangelhos. Subiu aí o ministro da Justiça e leu o dito juramento:
Ego, Petrus Primus, Deo annuente unanimique populi voluntate factus Brasiliæ Imperator ac etiam ejusdem Defensor Perpetuus, profiteor ac promitto Religionem Catholicam Apostolicam Romanam observare et sustinere; promitto Imperii leges observare, easque sustinere juxta ordinem constitutionalem; promitto Imperii integritatem, totis viribus defendere ac conservare. Sic me Deus adjuvet et hæc sancta Dei Evangelia. (6)
Quatro archeiros, os oficiais de armas e o alferes-mor saíram e subiram à pequena varanda no adro da igreja. Félix José da Silva, rei de armas do Império, bradou o "Ouvide! Ouvide! Ouvide! Estai atentos!" e o alferes-mor, desenrolando o estandarte imperial, aclamou: "O muito Augusto Imperador Pedro I, Imperador Constitucional, Perpétuo Defensor do Império do Brasil, está coroado e entronizado. Viva o Imperador!". Em seguida, a queima de uma girândola deu o sinal para os repiques dos sinos e as salvas de artilharia.
Enquanto isso, o ministro da Justiça leu o juramento que os procuradores-gerais das províncias, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro e os procuradores das demais câmaras deviam prestar:
Por nós e em nome do povo que representamos, juramos observar e guardar a nossa Santa Religião Católica Apostólica Romana; juramos obediência às leis; juramos obedecer ao nosso legítimo Imperador Constitucional e Perpétuo Defensor do Império do Brasil, Pedro Primeiro, e da mesma maneira reconhecer como tais todos os seus sucessores e da sua dinastia, na forma da sucessão que for regulada pela Constituição do Império. (5)
Cada um subiu o estrado, se ajoelhou, com a mão direita sobre o Evangelho disse "Assim o juro", se levantou e fez duas reverências ao imperador, uma aí e a outra no pavimento ao pé do estrado.
Prestado o derradeiro juramento, o clero agregou-se ao cortejo de volta ao paço. Na Sala do Trono, o ministro da Justiça leu a ata do juramento do imperador, que a assinou, e o presidente da câmara carioca leu a ata do seu juramento, que assinou com o seu senado e os procuradores na Sala do Dossel. Uma salva de artilharia marcou o encerramento da cerimônia.
(1) O termo procurador referia a um delegado: os procuradores-gerais eram os delegados das províncias brasileiras no conselho que Dom Pedro criou pelo Decreto de 16 de fevereiro de 1821; os procuradores das câmaras municipais eram os delegados que as representavam em missão.
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