As armas nacionais que a República assumiu foram inspiradas nas insígnias da Ordem do Cruzeiro.
A inspiração das armas nacionais nas insígnias da Imperial Ordem do Cruzeiro. |
O Cruzeiro do Sul é o símbolo nacional do Brasil, entendido como a figura heráldica mais representativa, tal qual as quinas para Portugal, o leão para a Bélgica ou a águia para a Alemanha. Essa constelação está no zênite da esfera celeste da bandeira nacional ("ponteada por vinte e uma estrelas, entre as quais as da constelação do Cruzeiro", na redação do decreto que a criou), é cantada no hino nacional ("A imagem do Cruzeiro resplandece"), deu nome à moeda nacional durante longos períodos no século passado e, é claro, figura nas armas nacionais: de azul com cinco estrelas de prata postas como a constelação do Cruzeiro do Sul e uma bordadura de azul, perfilada de ouro, carregada de vinte e sete estrelas de prata.
Insígnia da Ordem Civil do Cruzeiro. A coroa imperial foi substituída por uma estrela vermelha dentro de uma coroa de cafeeiro e tabaco e a efígie e o nome de Dom Pedro I, pela efígie e pelo nome da República (vide a postagem de 24/09; imagem de exemplar à venda no Mercado Livre). |
Como eu disse na postagem de 18/09, os criadores da bandeira e das armas nacionais que o governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca adotou pelo Decreto n.º 4, de 19 de novembro de 1889, foram muito inteligentes ao trocarem a cruz da Ordem de Cristo pelo Cruzeiro do Sul, ou melhor, a insígnia de uma ordem pela de outra. Aquela contrariava o ideal de separar o estado e a igreja (vide a postagem de 09/09); esta era tão prezada pelos militares que, convertida em Ordem Civil do Cruzeiro, escapou à abolição de "todos os títulos, foros de nobreza e ordens honoríficas estabelecidos pelo antigo regime", que o mesmo governo operou pelo Decreto n.º 277-F, de 22 de março de 1890, embora não tenha resistido à nova constituição (art. 72, parágrafo 2.º), promulgada em fevereiro do ano seguinte. Com efeito, o Marechal Deodoro era dignitário da Imperial Ordem do Cruzeiro e chegou a despachar que as armas nacionais continuassem, substituindo-se a coroa pelo Cruzeiro (vide a postagem de 24/09)
Reverso de uma cédula de 5.000 mil cruzeiros (1990), em que se veem as armas nacionais, e moeda de 1 real (1998-atual), em que se vê o Cruzeiro do Sul. |
No entanto, a cruz da Ordem do Cruzeiro não era a constelação desse nome, mas se formava das dezenove estrelas que representavam as províncias nas armas nacionais. Bem entendida essa diferença, é surpreendente que na literatura heráldica brasileira não se tenha percebido a semelhança das armas assumidas pela República com a insígnia dessa ordem, a não ser vagamente por Tristão de Alencar Araripe no artigo Brasões do Brasil (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, número 83, 1891): "Este emblema parece antes a forma da venera de uma condecoração do que a de um brasão". Comparemo-las ponto por ponto:
- Como a medalha, o escudo é redondo e tem uma bordadura, para a qual se moveram as estrelas, enquanto no campo se pôs a constelação que dava nome à ordem;
- também como a medalha, o escudo está sobre uma estrela;
- tal como na insígnia, esse conjunto fica sobre uma coroa de cafeeiro e tabaco
- e como na placa, todo o conjunto repousa sobre um resplendor.
Conclusão: Artur Sauer inspirou-se fortemente nas insígnias da Imperial Ordem do Cruzeiro ao criar as armas que a República assumiu e perduram, tanto que o legislador caiu no exagero ao ordenar na Lei n.º 5.700, de 1.º de setembro de 1971, o campo de azul-celeste, cor que esmaltava a medalha da Ordem do Cruzeiro, porém inexistente na heráldica luso-brasileira. Corrobora-se, pois, a interpretação de que a espada era um afago aos militares, que derrubaram a monarquia e tutelavam o novo regime, e o listel com o topônimo e uma data magna é um elemento de heráldica duvidosa, como comentei na postagem de 24/09.
Insígnias da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. São iguais às da Ordem Civil do Cruzeiro, mas se retirou a estrela vermelha (imagem publicada pela Embaixada da Polônia em Brasília no Twitter). |
Em 1932, outro governo provisório, dessa vez sob a chefia de Getúlio Vargas, restabeleceu, pelo Decreto n.º 22.165, de 5 de dezembro, a Ordem do Cruzeiro com o nome de Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, cujo regulamento foi aprovado pelo Decreto n.º 22.610, de 4 de abril de 1933. No entanto, é lamentável que a mais antiga e mais alta das ordens honoríficas do Brasil, que premiou os próceres da Independência aquando da sua criação, tenha sido reduzida a "galardoar os estrangeiros, civis ou militares, que se tenham tornado dignos do reconhecimento da Nação Brasileira". A ordem que inspirou os nossos símbolos nacionais e hoje ostenta a figura principal deles deveria ter permanecido fiel ao seu estatuto, reconhecendo "distinto serviço militar, civil ou científico" do cidadão brasileiro, antes súdito do Império.
Na verdade, parece que o momento das ordens honoríficas passou. Hoje em dia recebem pouca atenção e menor crédito, principalmente em regimes presidencialistas como o nosso, em que o chefe do estado é o mesmo eleito para governar e amiúde honorifica não pelo mérito, mas pela política ordinária.
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