24/02/21

AS ARMAS DO RIO GRANDE DO NORTE

Alguns brasões são bons, mas aperfeiçoáveis. O brasão do Rio Grande do Norte é um desses casos.

No estudo do Tractatus de insigniis et armis, de Bártolo de Sassoferrato, por várias vezes (especialmente em 11/01 17/01) ressaltei que o controle estatal se tornou um traço singular da heráldica gentilícia luso-brasileira. Em contrapartida, a heráldica municipal escapava desse controle: em Portugal e nos seus domínios, que um concelho assumisse armas para si de moto próprio era a regra e que o rei concedesse armas a um concelho era a exceção. Ao contrário do que daí possa parecer, apenas uma minoria dos municípios usava de brasões, seja por assunção, seja por concessão.

Com efeito, o primeiro recenseamento geral da população portuguesa dá conta de que em 1864 em Portugal havia 300 concelhos e o armorial intitulado As cidades e vilas da monarquia portuguesa que têm brasão d'armas, publicado por Inácio de Vilhena Barbosa de 1860 a 1862, contém 126 brasões municipais. No Brasil, essa discrepância agigantava-se: dos 187 concelhos existentes quando da independência, somente seis tinham brasões: as quatro cidades que foram capitais dos estados coloniais, ou seja, Salvador, Rio de Janeiro, São Luís e Belém, e  muito curiosamente  duas das vilas mais isoladas, Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade.

Isso nos leva a uma imensa ironia. Em ambas as margens lusófonas do Atlântico, as repúblicas desconheceram os foros de nobreza. Com isso, o uso de armas gentilícias, "provas de nobreza e honra", segundo as Ordenações filipinas (1603), passaram à vida privada de cada cidadão. Ao mesmo tempo, floresceu um interesse novo por parte das pessoas jurídicas de direito público em adotar símbolos oficiais, seja vexilares, heráldicos, sigilares ou de outra espécie. No Brasil, é algo que chega a ser chocante, porque o Império desenvolveu uma heráldica gentilícia nativa, em certos aspectos bastante criticável, noutros bastante interessante, porém nenhuma província ou município recebeu do imperador nem criou para si bandeira ou brasão durante esse período. No caso das províncias, é compreensível que numa nação em plena construção não conviessem símbolos que pudessem encorajar eventuais separatismos, mas por que as cidades e vilas negligenciaram essa expressão consagrada da sua autonomia?

Se focarmos a cronologia, só aumenta o mistério. A constituição republicana foi promulgada no começo de 1891 e já nos meses seguintes o Rio Grande do Sul e Minas Gerais abriram o caminho, respectivamente tomando o brasão da República Rio-Grandense, de 1836, e adotando um selo estadual. Ao cabo de seis anos, treze dos vinte estados que formavam, então, a União, já tinham emblemas: brasões, "insignoides" (1) ou selos. A criação de emblemas municipais seguiu um ritmo mais lento: Clóvis Ribeiro recenseia 67 no livro Brasões e bandeiras do Brasil, de 1933, ao passo que o censo de 1940 conta 1.574 municípios. De todo modo, parece que sob a monarquia o senso comum reputava que, em geral, a heráldica era matéria privativa da Coroa.

As armas do Rio Grande do Norte foram criadas nesse ambiente. Como tantos outros, não foram ordenadas por um heraldista, mas desenhadas por um artista: Corbiniano Vilaça (1873-1967) era um cantor lírico. Nascido no Pará e formado na França, apresentava-se em várias cidades, dentre elas Natal, onde tomou parte da efervescência intelectual fomentada por Alberto Maranhão, governador do estado durante dois mandatos: de 1900 a 1904 e de 1908 a 1914. A julgar pelo fato de que, além do brasão, também projetou um busto do governador Pedro Velho (1909), um medalhão com a efígie da escritora Nísia Floresta (1911) e uma estátua do aeronauta Augusto Severo (1913), Vilaça era um bom desenhista (2).

Raramente se conta isso, mas o projeto de Vilaça não foi aprovado sumariamente. Alberto Maranhão submeteu-o ao Instituto Histórico e Geográfico (IHGRN), de cuja fundação em 1902 ele mesmo participara. Na sessão de 19 de abril de 1908, leu-se o ofício do governo estadual e constituiu-se uma comissão para examinar o assunto e emitir um parecer. Este foi lido na sessão de 24 de junho de 1909 e em seguida remetido ao governo. Finalmente, em 1.º de julho do mesmo ano, o governador decretou a sua criação:

DECRETO N.º 201, DE 1.º DE JULHO DE 1909
Cria o brasão d'armas do Estado do Rio Grande do Norte.
O GOVERNADOR DO RIO GRANDE DO NORTE, tendo ouvido a respeito o Instituto Histórico e Geográfico, decreta:
Art. 1.º O brasão d'armas do Rio Grande do Norte é um escudo de campo aberto, dividido a dois terços de altura, tendo no plano inferior o mar, onde navega uma jangada de pescadores, que representam as indústrias do sal e da pesca. No terço superior, em campo de prata, duas flores aos lados e ao centro dois capulhos de algodoeiro. Ladeiam o escudo, em toda a sua altura, um coqueiro à direita e uma carnaúba à esquerda, tendo os troncos ligados por duas canas-de-açúcar, presas por um laço com as cores nacionais. Tanto os móveis do escudo como os emblemas, em cores naturais, representam a flora principal do Estado. Cobre o escudo uma estrela branca, simbolizando o Rio Grande do Norte na União brasileira.
Art. 2.º O desenho original deste brasão d'armas, executado pelo Senhor Corbiniano Vilaça, será arquivado na Secretaria do Governo e dele se tirará uma cópia autêntica para o arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Estado.
Art. 3.º Revogam-se as disposições em contrário.
Palácio do Governo do Estado do Rio Grande do Norte, 1.º de julho de 1909; 21.º da República.
ALBERTO MARANHÃO
Henrique Castriciano de Sousa

Essa cópia autêntica andava perdida, mas em 2016, em meio a uma reforma do arquivo, foi encontrada. Como relatei na postagem de 25/01, em 2019 a governadora Fátima Bezerra resolveu usar o desenho recuperado pelo IHGRN na identidade visual da sua gestão, porém o que se noticiou foi um "resgate", como se esse desenho fosse o "correto", o que objetei não só nessa postagem, mas também na anterior a ela. O brasão é um conceito fixado em linguagem verbal, ainda que, como neste caso o texto falha, se faça necessário consultar o desenho original.

Com efeito, o citado decreto demonstra que nem o autor do brasão nem a comissão que o apreciou tinha mínimo conhecimento de heráldica, mas cometeram o maior dos acertos nessa matéria: a simplicidade. Daí que tenham merecido um predicatório parágrafo no citado livro de Clóvis Ribeiro:

Alguns dos nossos brasões modernos, por sua vez, não ficariam desmerecidos num confronto com os antigos. O do Rio Grande do Norte é talvez o mais notável dentre todos pela sua viva cor local e o seu alto poder sugestivo. Irrepreensível sob qualquer aspecto, magnificamente composto, tem um cunho brasileiro bem marcado. Onde quer que se mostre, evocará o nosso Nordeste e somente ele, inconfundivelmente. É um modelo de brasão composto com elementos característicos da paisagem regional e dos usos locais, a evocar, ao mesmo tempo, a terra e o povo.

Ora, as figuras escolhidas não têm nada de extraordinário em relação a outros emblemas que eram criados no Brasil por então: uma paisagem e plantas que aludem às espécies dominantes ou às culturas principais. Embora essa característica da nossa heráldica estatal volta e meia fira certos pruridos colonialistas, como os do próprio Clóvis Ribeiro nesse capítulo da obra, a verdade é que assim como os castelos, as torres e as muralhas se repetem à exaustão nas armas municipais europeias, é consequente que no Novo Mundo, onde as cidades e vilas não costumavam ser fortificadas, prevaleça a natureza. Ao fim e ao cabo, não é a paisagem que a heráldica repele, mas a complexidade.

Assim, ao contrário do "insignoide" do Ceará, cuja multiplicidade de elementos obsta qualquer tentativa de brasonamento, as armas estaduais norte-rio-grandenses não só são perfeitamente brasonáveis, mas são, ainda, sob o ponto de vista heráldico, aperfeiçoáveis. A partir da descrição legal e do desenho original, na postagem de 03/01 ensaiei o ordenamento seguinte: de azul com uma jangada guarnecida de dois pescadores, navegando no mar, tudo de sua cor; chefe de prata com dois capulhos de algodão passados em aspa, entre duas flores de algodoeiro, a da destra posta em banda e a da sinistra, em barra, tudo de sua cor.

Desenho original do brasão do Rio Grande do Norte, recuperado pelo IHGRN e adotado pelo governo estadual.
Desenho original do brasão do Rio Grande do Norte, recuperado pelo IHGRN e adotado pelo governo estadual.

O problema é que o recurso às figuras "de sua cor" ou "ao natural" deve ser excepcional ou, dito de outro modo, é preciso ater-se tanto quanto possível ao rol de dois metais, cinco cores e duas peles ao se ordenar um brasão. No caso que nos ocupa, o campo é de cor e há uma peça de metal, o chefe. Não é difícil iluminar as figuras com correção heráldica e sem adulteração do original.

A figura principal, a jangada, pode ficar de metal, com a mastreação e o massame de cor, o que é favorecido pelos fatos de que dessa embarcação pouco se vê o casco e em heráldica o velame normalmente é de prata. Ademais, também em heráldica, não é necessário que as embarcações sejam tripuladas, então são dispensáveis as figuras dos pescadores. Portanto, basta brasonar que a jangada é de prata, vestida do mesmo e aparelhada de negro. Cabe sempre recordar que o desenho heráldico não é naturalista, mas estilizado.

Quanto ao mar, convém advertir que há diversas maneiras de representar a água na heráldica. A mais tradicional é o ondado, isto é, faixas onduladas contíguas que alternam metal e cor ou o inverso. A menos tradicional é ao natural. Há uma forma intermediária: o aguado. Consiste em semear o campo, a peça ou a figura de ondulações de esmalte diferente, à semelhança de marolas. Na verdade, a afirmação que fiz no parágrafo anterior, sobre o caráter do desenho heráldico, demanda uma precisão: hoje é que se considera o estilo românico da heráldica clássica o mais genuíno, pois da Idade Moderna em diante veio ficando cada vez mais naturalista, até alcançar proporções verdadeiramente exageradas no começo do século passado. As armas de Lisboa ilustram bem essa transformação:

Pedra de armas do Chafariz de Arroios, 1360: à direita as armas reais e à esquerda a insígnia municipal. Conservada no Museu de Lisboa.
Pedra de armas do Chafariz de Arroios, 1360: à direita as armas reais e à esquerda a insígnia municipal. Conservada no Museu de Lisboa.

Brasão de Lisboa numa coleção de desenhos pertencentes ao antigo Cartório da Nobreza, segunda metade do século XIX. Conservada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Brasão de Lisboa numa coleção de desenhos pertencentes ao antigo Cartório da Nobreza, segunda metade do século XIX. Conservada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Brasão hodierno de Lisboa, ordenado em 1940: de ouro com um barco exteriormente de negro, realçado de prata, e interiormente de prata, realçado de negro, mastreado e encordoado de negro, com uma vela ferrada de cinco bolsas de prata; a popa e a proa rematadas por dois corvos de negro, afrontados; leme de negro, realçado de prata; o barco assente num mar de sete faixas ondadas, quatro de verde e três de prata. Coroa mural de ouro de cinco torres. Colar da Ordem da Torre e Espada. Listel branco com os dizeres "MUI NOBRE E SEMPRE LEAL CIDADE DE LISBOA ", de negro. Imagem disponível no Heraldry of the World.
Brasão hodierno de Lisboa, ordenado em 1940: de ouro com um barco exteriormente de negro, realçado de prata, e interiormente de prata, realçado de negro, mastreado e encordoado de negro, com uma vela ferrada de cinco bolsas de prata; a popa e a proa rematadas por dois corvos de negro, afrontados; leme de negro, realçado de prata; o barco assente num mar de sete faixas ondadas, quatro de verde e três de prata. Coroa mural de ouro de cinco torres. Colar da Ordem da Torre e Espada. Listel branco com os dizeres "MUI NOBRE E SEMPRE LEAL CIDADE DE LISBOA ", de negro. Imagem disponível no Heráldica Portuguesa de Domínio.

No Chafariz de Arroios, o desgaste da pedra não apagou de todo o mar sob o barco na forma de faixas ondadas, resgatado pelo ordenamento de 1940, em contraposição ao desenho extremamente naturalista da segunda metade do século XIX. Quando os estados e municípios brasileiros começaram a criar emblemas para si, esse ainda era o estilo normal. Por isso, quaisquer críticas que se lhes façam hoje deveriam levar em conta essa ponderação histórica. De fato, há quem faça da figuração da água pelo ondado um cavalo de batalha, como se fosse a única correta. Mas na segunda década do século passado, alguns dos trabalhos de Afonso de Dornelas  que depois evoluiu para uma reforma geral da heráldica municipal portuguesa  trazem a opção intermediária do aguado, como os brasões de Sesimbra e Portimão, para citar dois cujos pareceres foram publicados no Elucidário nobiliárquico (respectivamente nos números 5 e 7 do volume 1). Escolho, pois, ordenar o mar de verde, aguado de prata.

Enfim, os ramos de algodoeiro que carregam o chefe. Novamente, a própria forma natural da figura favorece a iluminura com metais e cores, pois o capulho é branco e a flor é amarela, ou seja, aquele pode ser brasonado de prata e esta, de ouro, ao passo que o talo e as folhas ficam de verde. Não obstante, resta um pormenor que a descrição legal omite: no desenho, os ramos com os capulhos são passados em aspa e os floridos, postos em banda e em barra.

Leitura do brasão do Rio Grande do Norte: de azul com uma jangada de prata, vestida do mesmo e aparelhada de negro, navegando num mar de verde, aguado de prata; chefe de prata, carregado de dois capulhos de algodão do mesmo, sustidos e folhados de verde, passados em aspa, entre duas flores de algodoeiro de ouro, sustidas e folhadas de verde, a da destra em banda e a da sinistra em barra.
Leitura do brasão do Rio Grande do Norte: de azul com uma jangada de prata, vestida do mesmo e aparelhada de negro, navegando num mar de verde, aguado de prata; chefe de prata, carregado de dois capulhos de algodão do mesmo, sustidos e folhados de verde, passados em aspa, entre duas flores de algodoeiro de ouro, sustidas e folhadas de verde, a da destra em banda e a da sinistra em barra.

Na qualidade de uma leitura mais rigorosa à luz da heráldica, proponho o ordenamento seguinte para o brasão do Rio Grande do Norte: de azul com uma jangada de prata, vestida do mesmo e aparelhada de negro, navegando num mar de verde, aguado de prata; chefe de prata, carregado de dois capulhos de algodão do mesmo, sustidos e folhados de verde, passados em aspa, entre duas flores de algodoeiro de ouro, sustidas e folhadas de verde, a da destra em banda e a da sinistra em barra.

Notas:
(1) Em nota à postagem de 29/01, levantei a questão de como classificar emblemas que parecem brasões, mas não são brasonáveis, e propus alguns neologismos: emblema heraldizado
pseudobrasão e insignoide. A primeira opção tem um conteúdo claro, mas uma forma perifrástica; o segundo contém um prefixo de carga normalmente negativa; enfim, o terceiro formei aplicando o sufixo de origem grega -oide, que exprime ideia de aparência, à raiz da palavra insigne, 'brasão' em latim (sobre esta, leia-se a postagem de 27/01).
(2) Essas obras foram esculpidas em bronze por um amigo seu, Edmond Badoche. O medalhão de Nísia Floresta foi roubado, mas o busto de Pedro Velho e a estátua de Augusto Severo ainda se acham nas praças que levam os nomes dos homenageados.

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