18/01/24

METONÍMIAS

A metonímia é mais que uma figura de linguagem e a heráldica demonstra isso.

A escola ensina-nos que metonímia é a figura de linguagem pela qual se toma certo termo por outro mediante uma relação de contiguidade, por exemplo: "a escola ensina" é, em si, uma metonímia, pois o professor é quem ensina, portanto se toma o espaço pelo profissional que aí atua. Não obstante, a metonímia é mais que isso: é um fenômeno constitutivo da própria linguagem. Com efeito, muitas palavras evoluíram a partir de metonímias, como o verbo trazer, tão frequente na heráldica ("fulano traz tais armas"), que vem do latim trahere, cujo sentido primitivo é 'puxar'. Portanto, tomou-se um aspecto da ação por tudo que ela abrange.

Na heráldica, a metonímia tem sido especialmente produtiva, a começar pelo termo armas. Em latim, arma é um plurale tantum, isto é, um vocábulo que só se usa no plural. Assim como outros neutros plurais, foi entendido como feminino singular nas línguas românicas, ao qual se deu um plural novo: arma ~ armas. É notável a repetição do fenômeno em italiano: pela maior frequência, arme foi entendido como singular, daí armi, que hoje é o plural de arma. Seja como for, tanto na heráldica primitiva, quando os brasões mais antigos apareceram sobre gonfalões senhoriais (cf. a postagem de 31/01/2021), como também na heráldica clássica, quando o escudo se tornou o campo por antonomásia (cf. a postagem de 14/02/2021), há metonímia: o todo pela parte. Mas mesmo ante o cavaleiro montado, que traz o timbre em cima do elmo e o brasão sobre a sua cota e a gualdrapa do cavalo, toma-se o conteúdo pelo continente.

Armas reais da França (antigas): de azul, semeado de flores de lis de ouro. Atestadas desde 1209 (selo do príncipe Luís, futuro Luís VIII).
Armas reais da França (antigas): de azul, semeado de flores de lis de ouro. Atestadas desde 1209 (selo do príncipe Luís, futuro Luís VIII).

Em francês, a língua original da heráldica, do substantivo armes deriva o verbo armoyer, que exprimia a ação de reproduzir certas armas nalgum lugar. O sufixo -oyer vem do latim vulgar -idiare (pelo literário -izare, de origem grega), que em português deu -ear (ondear 'fazer ondas') e -ejar (alvejar 'tornar alvo'). À sua vez, de armoyer deriva o substantivo armoyerie, o que é insólito nas demais línguas românicas, pois esse sufixo (-aria em português) normalmente se liga a raízes nominais. Certas condições propiciaram essa possibilidade em francês, o que evitou confusão com armurerie, a arte de fabricar armas ou uma coleção delas. Depois, armoyerie evoluiu para armoirie e desta forma derivam o verbo armorier, que suplantou armoyer, e o adjetivo armorial, que por substantivação designa uma coleção de brasões. Enfim, armoiries, no plural, acabou tornando-se o termo mais comum para 'brasão' no francês contemporâneo, portanto outra metonímia: a arte pelo artefato.

Armas reais de Aragão, hoje da Catalunha: de ouro com quatro palas de vermelho. Atestadas desde 1150 (selo de Raimundo Berengário IV, conde de Barcelona e príncipe de Aragão).
Armas reais de Aragão, hoje da Catalunha: de ouro com quatro palas de vermelho. Atestadas desde 1150 (selo de Raimundo Berengário IV, conde de Barcelona e príncipe de Aragão).

Em português, armaria significa 'arsenal' e também 'heráldica'. Do francês importaram-se o verbo armoriar e o nome armorial. Curiosamente, a terminação -iar foi confundida com o sufixo -ear, daí o sinônimo menos frequente armorejar. O mesmo em espanhol quanto a armería, mas o Diccionario de la lengua española da Real Academia Española não registra importação de armoirie nem dos seus derivados, embora se constate a influência dessa língua no uso do plural armerías com o sentido de 'brasão'. Os dicionários italianos admitem armoriale, porém não consta que armeria possa referir à heráldica. Assim, a língua românica que mais se aproxima ao português nesta matéria é o catalão, que dispõe não só do particípio armoriat e do nome armorial, mas também de armoria ('heráldica'), diferente de armeria ('arsenal'), se bem que, talvez mais por hispanismo que por galicismo, se empregue o plural armeries por 'brasão'.

Armas imperiais (primitivas), hoje federais da Alemanha: de ouro com uma águia de negro, bicada e membrada de vermelho. Atestadas por volta de 1180 (moeda de Frederico Barba-Ruiva).
Armas imperiais (primitivas), hoje federais da Alemanha: de ouro com uma águia de negro, bicada e membrada de vermelho. Atestadas por volta de 1180 (moeda de Frederico Barba-Ruiva).

A metonímia comparece igualmente nas línguas germânicas: do protogermânico *wēpną vêm o holandês wapen, o dinamarquês våben e o sueco vapen (1). Todos esses vocábulos querem dizer tanto 'arma' como 'brasão'. Em alemão, Wappen foi emprestado do baixo-alemão, pois na norma-padrão (que se baseia no alto-alemão) o protogermânico deu Waffe. Graças a essa particularidade, distinguem-se 'arma' (Waffe) e 'brasão' (Wappen). A armaria é Wappenkunde e o armorial, Wappenbuch, literalmente 'ciência das armas' e 'livro das armas', o que ilustra a formação de palavras por composição, tão característica dessas línguas. Em inglês, bem se poderia dizer weapon, *weaponcraft e *weaponbook, mas essa língua é um caso à parte.

Armas reais da Inglaterra: de vermelho com três leopardos de ouro, armados e lampassados de azul, alinhados em pala. Atestadas desde 1198 (selo de Ricardo Coração de Leão).
Armas reais da Inglaterra: de vermelho com três leopardos de ouro, armados e lampassados de azul, alinhados em pala. Atestadas desde 1198 (selo de Ricardo Coração de Leão).

Com efeito, por causa do prestígio da língua francesa na Inglaterra após a conquista normanda (cf. a postagem anterior), em inglês estão presentes quase todos os vocábulos da raiz arm-, entre eles arms (plural de arm 'arma', também 'brasão'), de armes, e armoury ('arsenal' e 'heráldica'), de armurerie e armoyerie. Todavia, o verbo é emblazon, que significa 'armoriar' e 'reproduzir certo brasão' e demonstra outra particularidade inglesa: um uso independente do francês, pois tanto o prefixo en- como o substantivo blazon vêm dessa língua, mas nela não existe o verbo *emblasonner.

Armas ducais de Brabante, hoje reais da Bélgica: de negro com um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho. Atestadas desde 1195 (selo de Henrique I).
Armas ducais de Brabante, hoje reais da Bélgica: de negro com um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho. Atestadas desde 1195 (selo de Henrique I).

Por certo, blason sintetiza essas duas esferas do Ocidente medieval: é provável que tenha origem germânica, mas foi da França que se difundiu para todo o entorno. Daí blazon em inglês, blazoen em holandês, Blason em alemão, blasone em italiano, blasó em catalão, blasón em espanhol e brasão em português. E isto é tudo que se sabe sobre a etimologia dessa palavra, portanto as hipóteses que a retrocedem a esta ou àquela raiz conhecida carecem de fundamentação, como a bastante repetida que a vincula ao alemão blasen 'soprar (corneta)'.

Desde as ocorrências mais antigas, blason denomina o signo heráldico, logo sinônimo de armas. Esse sentido permanece nas línguas mencionadas, mas hoje só em alemão, holandês, italiano e português continua o mais usual, se bem que a frequência do uso varia grandemente entre uma língua e outra. É que no próprio francês novamente agiu a metonímia: blason passou a referir também à própria heráldica, ou seja, o artefato pela arte. O catalão blasó e o espanhol blasón seguem essa mudança. Mais uma vez, o inglês acaba por ser um caso à parte: blazon veio designar a descrição das armas em linguagem heráldica.

Efetivamente, de blason deriva o verbo blasonner, que se transmitiu às línguas mencionadas — blasonieren em alemão, blasonar em catalão e em espanhol, blazoeneren em holandês, blasonare em italiano, brasonar em português — e em todas conserva o sentido de descrever as armas em linguagem heráldica. Do agir, a ação: blasonnement em francês, Blasonierung em alemão, blasonament em catalão, blasonamiento em espanhol, blazoenering em holandês, blasonatura em italiano e brasonamento em português. Quanto ao inglês, acontece que essa língua perdeu muito da flexão, daí que o vocábulo transite mais livremente de uma classe a outra, restando à sintaxe determiná-las: the blazon (substantivo), I blazon (verbo).

Armas reais de Portugal (primitivas): de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo e postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro. Atestadas desde 1187 (selo de Dom Sancho I).
Armas reais de Portugal (primitivas): de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo e postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro. Atestadas desde 1187 (selo de Dom Sancho I).

Essa série de metonímias desencadeou várias outras para nomear o próprio artefato. Atualmente, apenas no nosso idioma esse termo é frequente. Dizemos, pois, brasão, armas ou, juntando ambos os termos, brasão de armas. A menor frequência nas línguas germânicas deu lugar aos compostos Wappenschild em alemão e wapenschild em holandês (2), precisamente a mesma solução que se acha em catalão e espanhol pela causa referida mais acima: escut d'armes e escudo de armas ou, simplesmente, escut e escudo. Em inglês, poderia ser *weaponshield, mas se diz coat of arms, mais um galicismo: vem de cotte d'armes (cf. a postagem de 21/11/2022). Seja o escudo seja a cota, há metonímia: a parte pelo todo e o continente pelo conteúdo. Aqui, o italiano afasta-se do campo semântico do armamento.

Armas da Casa de Saboia: de vermelho com uma cruz de prata. Atestadas desde 1143 (selo do conde Amadeu III).
Armas da Casa de Saboia: de vermelho com uma cruz de prata. Atestadas desde 1143 (selo do conde Amadeu III).

Com efeito, em italiano o termo habitual para 'brasão' é stemma, que tem origem grega. Nessa língua, significa 'coroa'. Os romanos importaram-no para denominar a coroa ou grinalda que cingia a imagem de um antepassado. Foi, pois, em latim que, por metáfora, passou a referir à linhagem. Esta foi, então, tomada pelo sinal que a representa. Metonímia.

Armas reais da Polônia, hoje estatais: de vermelho com uma águia de prata, bicada, armada e coroada de ouro. Atestadas desde 1226 (selo do duque Casimiro de Opole).
Armas reais da Polônia, hoje estatais: de vermelho com uma águia de prata, bicada, armada e coroada de ouro. Atestadas desde 1226 (selo do duque Casimiro de Opole).

Perspectiva similar acha-se no vocábulo habitual das línguas eslavas. O surgimento da heráldica no norte da França propiciou a sua difusão imediata por todo o Ocidente, mas na Europa oriental se difundiu mais tarde, a partir do Sacro Império. Assim, foi do alemão Erbe 'herança' que os tchecos emprestaram a palavra erb. Tomou-se, pois, um aspecto do brasão, a transmissão, por ele mesmo. A palavra viajou, então, mais ao oeste: herb em polonês e ruteno (3) e gerb em russo. Depois pelo sul: a mesma forma em búlgaro e grb em servo-croata e em esloveno. Nessas línguas, a flexão é um mecanismo forte — de gerb derivam gerbovedenie (a armaria), gerbovnik (o armorial) e gerbovyj (armoriado) —, mas também houve afição ao galicismo, daí geral'dika e armorial.

Heráldica é mesmo a palavra mais estável. Por quê? Porque é uma invenção culta. A raiz foi tirada de heraldus, latinização do francês héraut, e a ela ajuntou-se o sufixo -ica, à semelhança de aritmética, gramática, lógica etc. Formou-se, assim, um vocábulo adaptável à maioria das línguas europeias: Heraldik em alemão, heràldica em catalão, heraldik em dinamarquês e sueco, heráldica em espanhol e português, héraldique em francês, heraldiek em holandês, araldica em italiano, heraldyka em polonês, heraldika em tcheco etc. Em inglês, heraldic funciona apenas como adjetivo, já que o substantivo é heraldry, do francês hérauderie, isto é, héraut mais o sufixo -erie, referido no início desta postagem. (4)

Portanto, da perspectiva etimológica a heráldica é a arte dos arautos. A palavra arauto vem, precisamente, de héraut, mais uma do francês antigo que foi exportada tanto para a esfera românica — araldo em italiano, herald em catalão, heraldo em espanhol — como para a germânica — herald em inglês, heraut em holandês, Herold em alemão — e deste para o norte e o leste do continente. Tem origem frâncica: *heriwald, composto de *heri 'exército' e *wald 'dirigente'. Por certo, antes de se encarregar de insígnias nobiliárias, o arauto fora um especialista em honra cavalheiresca, conceito resultante da idealização da guerra (cf. as postagens de 13/01/21 e 14/03/21). (5)

Notas:
(1) Por brevidade, cinjo-me às línguas padronizadas na Idade Moderna, nas quais se escreveu literatura heráldica.
(2) Nas línguas nórdicas, segue-se geralmente a nomenclatura alemã: blasonere, blasonering e våbenskjold em dinamarquês; blasonnera, blasonnering e vapenskjöld em sueco.
(3) O ruteno é a forma anterior das línguas bielorrussa e ucraniana, empregada na Polônia-Lituânia e depois na Áustria-Hungria (cf. as postagens de 06/10 e 09/12/2023).
(4) Nas línguas românicas, conserva-se a noção de que uma palavra como heráldica é a substantivação de um adjetivo acabado com o sufixo greco-latino -icus: heràldic/heràldica em catalão, heráldico/heráldica em espanhol e português, héraldique em francês, araldico/araldica em italiano. Noutras línguas, o adjetivo é formado por afixo nativo à raiz latina, como heraldisch em alemão e geral'dičeskij em russo.
(5) O étimo protogermânico, *Herjawaldaz, era também um nome de pessoa. Deu Harold em inglês e Harald nas línguas nórdicas. Daí, mediante as suas latinizações, Heraldo Haroldo em português.

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