07/01/21

INSÍGNIAS E ARMAS

Bártolo de Sassoferrato escreveu o primeiro tratado sobre a heráldica amplamente difuso: De insigniis et armis, publicado em 1358.

Quando dou aulas de filologia hispânica, costumo ensinar que é injusto qualificar a Idade Média como das trevas, mas nem tanto, pois há duas idades médias. Com efeito, a primeira metade é mesmo um tempo de rudeza, carestia e insegurança. Ora, o latim evoluiu rapidamente para as línguas românicas durante esse período simplesmente porque ruiu o edifício do conhecimento que os gregos levantaram e os romanos tomaram, mantiveram e aumentaram, de tal modo que o renascimento carolíngio, em vez de estancar essa evolução, acabou acelerando a mudança. Já a segunda metade, nela as cidades voltaram a florescer, fundaram-se as universidades, ergueram-se as catedrais góticas, a cavalaria tornou-se um código ético e, da sua dimensão estética, surgiu a heráldica.

Em meados do século XIV, esse sistema semiótico estava plenamente consolidado e integrado nas relações sociais da Europa ocidental. Mas, curiosamente, foi fora dos âmbitos social e geográfico onde surgiu — a guerra e o desporto bélico no norte da França — que pela primeira vez (1) se tratou de discernir os seus constituintes: em 1358 publicou-se o Tractatus de insigniis et armis, escrito por Bártolo de Sassoferrato, professor de direito na Universidade de Perúsia (ou Perugia), Itália.

Armas antigas da Universidade de Perúsia: Partido, o primeiro de azul com um bispo de carnação, nimbado de ouro, com mitra de prata, ornada de ouro, barbado de negro, vestido de púrpura, com sobrepeliz de prata, casula de ouro, pálio de prata, carregado de cruzes de negro, abençoando com a mão direita e segurando com a esquerda um báculo de prata e uma palma de verde, acompanhado da legenda SANCTVS HERCVLANVS com letras de ouro no cantão destro do chefe; o segundo de vermelho com um grifo de prata, coroado de ouro (brasonamento meu).
Armas antigas da Universidade de Perúsia: Partido, o primeiro de azul com um bispo de carnação, nimbado de ouro, com mitra de prata, ornada de ouro, barbado de negro, vestido de púrpura, com sobrepeliz de prata, casula de ouro, pálio de prata, carregado de cruzes de negro, abençoando com a mão direita e segurando com a esquerda um báculo de prata e uma palma de verde, acompanhado da legenda SANCTVS HERCVLANVS com letras de ouro no cantão destro do chefe; o segundo de vermelho com um grifo de prata, coroado de ouro (brasonamento meu). (2)

Bártolo, que nunca usou de sobrenome, nasceu perto de Sassoferrato, na Marca Anconitana, em 1313 ou 1314. Doutorou-se aos 21 anos pela Universidade de Bolonha, depois exerceu alguns cargos forenses em diferentes lugares, desde 1339 lecionou na Universidade de Pisa e em 1343 passou para a de Perúsia, onde permaneceu até a sua precoce morte, em 1357.

Para os lusófonos, a prova mais reveladora da dimensão que toda a obra de Bártolo alcançou é a seguinte citação:

E se o caso de que se trauta em prática nom fosse determinado per lei do Reino ou estilo ou custume suso dito, ou leis imperiaes ou santos cânones, entom mandamos que se guardem as grosas d'Acúrsio, encorporadas nas ditas leis. E quando pelas ditas grosas o caso nom for determinado, mandamos que se guarde a opiniom de Bártolo, nom embargante que os outros doutores digam o contrairo, porque somos bem certo que assi foi sempre usado e praticado em tempo dos Reis, meu avoo e padre, da gloriosa memória, e ainda nos parece polo que já algũas vezes vimos e ouvimos a muitos leterados, que sua opiniom comunalmente é mais conforme aa razom que a de nenhũu outro doutor, e em outra guisa seguir-s'ia grande confusom aos desembargadores, segundo se mostra per clara experiência. E acontecendo caso ao qual per nenhũu dos ditos modos nom fosse previsto, mandamos que o notefiquem a nós, pera o determinarmos, porque nom tam somente taes determinações som desembargo daquele feito que se trauta, mais som lei pera desembargarem outro semelhante.

Isso é um excerto das Ordenações promulgadas pelo rei Dom Afonso V de 1446 a 1448, daí ditas Afonsinas, mais precisamente do livro 2, título 9, parágrafo 2. Apesar do arcaísmo, fica claro que depois do também italiano Acúrsio (1181/1185-1259/1263), a opinião de Bártolo tornou-se a interpretação oficial do direito romano em Portugal. E ainda que as Ordenações promulgadas pelo rei Dom Manuel I em 1521, daí Manuelinas, tenham graduado essa autoridade ("salvo se a comum opinião dos doutores, que despois dele escreveram, for contraira", liv. 2, t. 5, § 1), as Ordenações promulgadas por Filipe II (III de Castela) em 1603, daí Filipinas, conservaram-na com tal graduação (liv. 3, t. 64, § 1) e assim vigeu até que Dom José promulgou a chamada Lei da Boa Razão em 1769 (3).

Com efeito, o De insigniis et armis deixa ver por que o bartolismo se estendeu tanto no tempo e no espaço. Ora, por que um jurista se interessaria pela heráldica a ponto de escrever o primeiro tratado sobre a matéria amplamente difuso? Precisamente porque Bártolo tinha a capacidade de ensinar e dissertar sobre o direito romano, que vinha de um mundo há muito distante, à luz da vida coetânea. Tendo-se tornado o uso de brasões geral na sociedade a cujas demandas jurídicas o doutor de Sassoferrato estava atento, é de todo razoável que essa arte tenha feito parte da sua produção acadêmica.

Assim, se as lecturæ são o gênero próprio do magistério e as quæstiones e os consilia, os da ciência aplicada em distintas medidas, os tractatus são o apropriado à curiosidade de pesquisador, mais solto tanto na escolha do tema como na forma, permitindo-lhe não só discorrer de modo inovador sobre a heráldica, mas também sobre a capacidade sucessória dos franciscanos (Liber minoricarum decisionum), sobre o proveito das águas correntes (De fluminibus), sobre a disputa de facções que dividia as cidades italianas em apoio ou ao Império ou à Santa Sé (De Guelfis et Ghibellinis), sobre a forma de governo da cidade (De regimine civitatis), sobre o que hoje chamaríamos de autoritarismo (De tyrannia) e tantos outros cuja autenticidade a crítica desde cedo teve de julgar, dado o mau hábito de se atribuir a autoria de uma obra qualquer a um estudioso célebre da área. Giovanni Rosso, em artigo de Il contributo italiano alla storia del pensiero, disponível no portal da Treccani, resume:

L'opera di Bartolo ha rappresentato oggettivamente uno dei punti più alti del pensiero giuridico medievale, per la qualità e l'efficacia della riflessione offerta su un amplissimo novero di temi. La padronanza del metodo del commento e lo sviluppo delle sue potenzialità, la messa a frutto delle fonti romane, interrogate con perizia senza rimanerne tuttavia prigioniero, la capacità di dare sistemazioni di ampio respiro e teoricamente raffinate, il ricorso sapiente e creativo alla interpretatio, lo sguardo attento e spesso critico verso l'evoluzione politico-giuridica del 14.º sec., in una parola la capacità di tradurre egregiamente nel linguaggio formalizzato della scienza del diritto gli aspetti salienti della realtà politico-sociale propria delle città italiane d'inizio Trecento: questi i caratteri salienti di una personalità scientifica che ha lasciato un'impronta indelebile nel diritto comune europeo. (4)

Voltando ao De insigniis et armis, o leitor que tiver atentado ao ano da sua publicação e ao da morte do autor, terá percebido que é póstumo. De fato, foi escrito depois de 1355, mas publicado no citado ano de 1358 por Nicola Alessandri, genro de Bártolo. Francesco Calasso, em artigo do Dizionario biografico degli italiani, igualmente disponível no portal da Treccani, recenseia setenta manuscritos do tratado, espalhados por bibliotecas na Alemanha, Áustria, Espanha, França, Holanda, Inglaterra, Itália, Polônia, Suíça, Tchéquia e Vaticano, o que por si demonstra uma difusão extraordinária (5). Curiosamente, apesar do imenso prestígio do bartolismo em Portugal, se esse tratado circulou aí, não se chegou a guardar cópia manuscrita dele, talvez porque a codificação da armaria nesse país divergisse do que Bártolo propugnara, como abordarei noutra postagem. Por outro lado, na Espanha o texto atraiu tanto o público que dos quatro manuscritos aí conservados, dois são traduções para o castelhano, o que denota encomendas de leitores menos letrados (6).

Enfim, feitas as apresentações e considerações iniciais nas postagens precedentes, a partir desta começam propriamente os apontamentos de heráldica que são o objeto deste blog. Mais precisamente, tudo que teci acima sobre Bártolo de Sassoferrato e o Tractatus de insigniis et armis serve de introdução à série de postagens que farei proximamente: nela trarei a minha tradução dessa obra para a nossa língua portuguesa. Passo a acrescentar algo sobre esse trabalho.

Edição crítica de texto que teve transmissão manuscrita difusíssima é empresa para uma vida toda (7). No caso do De insigniis et armisa que mais se aproxima desse tipo foi publicada por Osvaldo Cavallar, Susanne Degenring e Julius Kirshner em 1994 (8): cotejaram 23 manuscritos e também dão uma tradução para o inglês. Antes, em 1883 e 1943, Felix Hauptmann (9) e Evan Jones (10) publicaram edições de menores envergaduras com traduções respectivamente para o alemão e o inglês. Depois, em 1998, saiu a edição mais recente, de Mario Cignoni (11), a partir de um único testemunho impresso (12), mas com o fac-símile e tradução para o italiano.

Por um lado, o lavor filológico de Cavallar et alii é admirável: sem dúvida, oferecem o melhor texto. No estudo, porém, perdem-se em questões francamente bizantinas, que mencionarei nos meus próprios comentários. Além disso, o seu foco é a história do direito, de modo que mal abordam o conteúdo heráldico da obra. Por outro lado, Cignoni é heraldista, mas sequer detalha as suas escolhas editoriais. No meio desses extremos, o texto estabelecido por Cavallar et alii foi o que preferi e o estudo, o de Cignoni, ainda que brevíssimo.

Enfim, quanto à tradução que dou, esta é toda minha. Obviamente, li as de Cavallar et alii e de Cignoni para conhecer como entenderam o texto, especialmente em passagens mais difíceis, mas as soluções que o leitor encontrará na minha compreensão são independentes desses autores. Mesmo o original latino apresentarei com uma das ortografias usuais na contemporaneidade, cujos pormenores irei trazendo mais adiante para não alongar esta postagem, já por demais longa.

Notas:
(1) Em 1967, Ruth Dean publicou um tratado de heráldica escrito presumivelmente entre 1341 e 1345 em anglo-normando (um dialeto do francês antigo). É um texto curto, de umas 1350 palavras, que começa em verso e, depois do 53.º, segue e acaba em prosa. Como o códice (Cambridge, Univ. Lib, Ee.4.20) em que se conserva a única cópia contém outros tratados sobre várias matérias e provém da Abadia de Santo Albano em Hertfordshire, Inglaterra, é provável que tenha sido elaborado para a instrução dos próprios monges. A publicação (HOLMES, Urban (ed.). Romance studies in memory of Edward Billings Ham. Hayward: California State College Publications, 1967, p. 21-29) se tornou tão rara que, além de ser intitulada pelo seu incipit De héraudie —, essa obra também é conhecida como Dean Tract. Note-se que a palavra héraudie, desusada no francês moderno, se compõe de héraud 'arauto' mais o sufixo -ie, que em português tem a forma -ia, como em ouvidoria, de ouvidor. Ou seja, héraudie já define a armaria como especialidade dos arautos, portanto precursora de heráldica.
(2) A Universidade de Perúsia usa atualmente de um selo heráldico. Além disso, a lei italiana é restritiva quanto à reprodução dos brasões que reconhece, mas entendo que aqui reproduzo armas antigas e mesmo que as figuras sejam as mesmas do selo atual, a minha ilustração não tem nenhum fim comercial. Para a sua elaboração, fundamentei-me na imagem do estandarte institucional, disponível na mesma webpage em que se trata do selo. Alguns elementos eu mesmo desenhei, outros tomei da Wikimedia Commons. Note-se, ainda, que um partido de azul e vermelho infringe, em princípio, a regra dos esmaltes, mas são armas compostas: o primeiro era o selo da universitas estudantil (Santo Herculano é o padroeiro da cidade); o segundo, é o brasão da comuna (município).
(3) Em 1751, a Relação do Rio de Janeiro estabeleceu no seu regulamento que o tribunal deveria dispor de "um jogo de bártolos" para o seu expediente. Para detalhamento, leiam-se os comentários de Cândido Mendes de Almeida, editor do exemplar disponível na Biblioteca Digital do Senado Federal.
(4)  "A obra de Bártolo representou objetivamente um dos pontos mais altos do pensamento jurídico medieval, pela qualidade e eficácia da reflexão oferecida sobre um amplíssimo número de temas. O domínio do método do comentário e o desenvolvimento das suas potencialidades, a exploração das fontes romanas, interrogadas com perícia sem permanecer, todavia, prisioneiro delas, a capacidade de dar sistematizações de grande envergadura e teoricamente refinadas, o recurso douto e criativo à interpretatio, o olhar atento e amiúde crítico para a evolução político-jurídica do século XIV, numa palavra, a capacidade de traduzir egregiamente na linguagem formalizada da ciência do direito os aspectos salientes da realidade político-social própria das cidades italianas do começo do século XIV: estes são os caracteres salientes de uma personalidade científica que deixou uma marca indelével no direito comum europeu." (tradução minha)
(5) Otto Vervaart no seu blog afirma ter listado aproximadamente 140 manuscritos.
(6) Para aprofundamento, recomendo a leitura do artigo de Jesús Rodríguez Velasco no número 2 da Emblemata (1996), em que publicou edição de uma dessas traduções. Há outras traduções antigas, uma para o francês (Londres, British Library, Stowe 668, f. 45) e outra para o inglês (Oxford, Bodleian Library, Rawlinson B. 120, f. 23).
(7) Denomina-se crítica a edição em que se procura discernir as adições, subtrações e modificações que certo texto sofreu ao longo da sua transmissão e restituí-lo à forma mais próxima da genuína.
(8) CAVALLAR, Osvaldo; DEGENRING, Susanne; KIRSHNER, Julius. A grammar of signs: Bartolo da Sassoferrato and his tract on insignia and coats of arms. Berkeley: Robbins Collection Publications, 1994.
(9) HAUPTMANN, Felix. Bartolus de Saxoferrato, Tractatus de insigniis et armis mit Hinzufügung einer Uebersetzung und der Citate. Bonn, 1883.
(10) SAXOFERRATO, Bartolus de. De insigniis et armis. In: JONES, Evan John. Medieval heraldry: some fourteenth century heraldic works. Cardiff: William Lewis, 1943, p. 224-52.
(11) SASSOFERRATO, Bartolo da. De insigniis et armis. Ed. Mario Cignoni. Florença: Giampiero Pagnini, 1998.
(12) Lamentavelmente, o autor informa apenas que se baseou na edição de Lyon de 1550. Não foi fácil, mas pela coincidência do lugar, do ano e da paginação, deve de ser o livro intitulado Joannis Fabri in Justiniani codicem breviarium (Accessit tractatus Domini Bartholi de insignibus et armis et repetitio in materia torturarum seu quæstionum), impresso por Pierre Fradin. Joannis Faber é o jurista francês Jean Faure (m. c. 1340). Não se sabe por que Cignoni elegeu essa edição em particular.

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