14/02/21

COMO SE HÃO DE TRAZER AS ARMAS EM ESCUDOS E GUALDRAPAS

A heráldica tornou-se a dimensão estética da cavalaria quando esta se converteu num código ético, e isso foi decisivo para a sua difusão social.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(31) Quandoque dicta arma depinguntur in clypeo, et tunc similiter pars clypei quæ secundum modum communem portandi respicit latus dextrum hominis, illa est assumenda ut potior, ut patet ex his quæ dicta sunt.

(32) Quandoque portantur et depinguntur in cooperturis equorum, et tunc sive a parte dextra sive a parte sinistra, debet inspicere pars nobilior armæ caput equi, sicut si plures irent ad servitium equi vel equitis, quidam a dextris, quidam a sinistris, quilibet respiceret caput equi. Monstruosum enim esset quod unus respiceret caput et alius caudam. Hæc autem quæ nulli lateri magis accedunt, ut si deberet stare in anteriori vel in groppa, tunc debet latus dextrum inspicere, secundum ea quæ dicta sunt.

(31) Às vezes pintam-se as ditas armas no escudo, então, de modo semelhante, a parte do escudo que, segundo o uso comum de trazê-lo olha o lado direito do homem, é a que se deve assumir como preferível, como está claro a partir do que se disse.

(32) Às vezes trazem-se e pintam-se nas gualdrapas dos cavalos. Seja pela parte direita ou pela parte esquerda, a parte mais nobre das armas deve voltar-se, então, para a cabeça do cavalo, como se vários andassem a serviço do cavalo ou do cavaleiro, uns pela direita, outros pela esquerda: qualquer um estaria voltado para a cabeça do cavalo. Com efeito, seria bizarro que um estivesse voltado para a cabeça do cavalo e outro, para o rabo. Isso de modo a não se acrescentar mais a nenhum lado, pois se houver de estar na dianteira ou na garupa, deve voltar-se, então, para o lado direito, segundo o que se disse.

Comentário:

O rei de Portugal no fólio 105r do Armorial de l'Europe et de la Toison d'Or (Bibliothèque de l'Arsenal, Ms. 4790).
O rei de Portugal no fólio 105r do Armorial de l'Europe et de la Toison d'Or (Bibliothèque de l'Arsenal, Ms. 4790).

O Tractatus de insigniis et armis aproxima-se do fim e, por fim, o texto completa a imagem do cavaleiro identificado pelo seu brasão: ele o traz na gualdrapa do seu cavalo, na sua cota e no seu escudo. Por mais que ao longo da obra tenha ficado claro que se podiam reproduzir as armas sobre várias superfícies, não deixa de surpreender ao leitor hodierno que o escudo tenha merecido não mais que um parágrafo de 32 palavras, mesmo levando em conta que o trabalho ficou inacabado, devido à morte súbita do autor. Como o escudo se tornou o campo por excelência, a ponto de designar, por metonímia, o próprio brasão em espanhol (escudo) e catalão (escut)?

Segundo selo de Raul I, conde de Vermandois. Imagem disponível na base Sigilla.
Segundo selo de Raul I, conde de Vermandois. Imagem disponível na base Sigilla.

Em primeiro lugar, convém reconhecer que o escudo se faz presente desde a origem da heráldica. Na postagem de 31/01, dei o selo de Raul I de Vermandois como o remanescente mais antigo em que se discerne um objeto armoriado, no caso uma bandeira, mas omiti que esse conde moldou um segundo selo, testemunhado desde 1146. Nele, já se vê o tipo que tanto sucesso faria em seguida: o cavaleiro com a espada numa mão e o escudo na outra.

Segundo se depreende de um artigo de Laurent Hablot, publicado em 2012, o escudo pode, na verdade, ter contribuído com a primeira virada da heráldica, do sistema primitivo para o clássico. Esse estudioso objeta que a bandeira era uma insígnia senhorial, daí se segue que originariamente o brasão não distinguia um guerreiro, mas o conjunto dos vassalos que lutavam sob tal bandeira. Assim, se o campo de batalha não foi o lugar onde nasceu o brasão, que outra prática bélica explica a escolha do escudo e o próprio termo armas?

Com efeito, assim como a influência dos tecidos, o torneio há muito tempo tem sido apontado pelos estudiosos mais perspicazes como a arena que continha todas as condições condizentes com o sistema heráldico clássico: o escudo era a arma comum a todos os participantes, independentemente das suas extrações sociais, cujas individualidades eram, ademais, ressaltadas pelas modalidades de participação.

Reverso do selo de Dona Matilde de Portugal, filha do rei Dom Afonso Henriques e condessa de Flandres, c. 1189 (moldagem guardada nos Archives nationales de France, reproduzida em artigo de Maria do Rosário Morujão, 2018).
Reverso do selo de Dona Matilde de Portugal, filha do rei Dom Afonso Henriques e condessa de Flandres, c. 1189 (moldagem guardada nos Archives nationales de France, reproduzida em artigo de Maria do Rosário Morujão, 2018).

Ao mesmo tempo, a prática social foi reforçada por uma construção ideológica que excedeu em muito os limites daquela: a própria cavalaria tornou-se um código ético e a heráldica converteu-se na sua dimensão estética. Particularmente, o escudo, arma defensiva antiquíssima, repleto de memórias históricas e míticas, foi idealizado como símbolo de proteção, paz e justiça. A gualdrapa armoriada acabou inteirando a imagem do cavaleiro perfeito. Daí para o escudo se destacar do conjunto, como alegoria do próprio portador, foi um pulo, uma abstração que certamente foi decisiva para a adoção da armaria pelas mulheres e, um pouco mais tarde, pelos clérigos.

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