10/01/24

FALSOS AMIGOS

O inglês tornou-se a língua mais acessível ao aprendiz de armista, mas a armaria britânica não é um padrão universal.

Pouca gente sabe, mas desde a conquista de 1066 e durante a dinastia Plantageneta (1154-1485) a língua da realeza e da nobreza inglesas foi o francês, como atestado pela crônica de Roberto de Gloucester (versos 7.537-7.547), que viveu na segunda metade do século XIII:

Thus com, lo, Engelond into Normandies hond.
And the Normans ne couthe speke tho, bote hor owe speche,
And speke French as hii dude at om and hor children dude also teche,
So that heiemen of this lond, that of hor blod come,
Holdeth alle thulke speche that hii of hom nome;
Vor bote a man conne Frenss, me telth of him lute.
Ac lowe men holdeth to Engliss and to hor owe speche yute.
Ich wene ther ne beth in al the world contreyes none
That ne holdeth to hor owe speche, bote Engelond one.
Ac wel me wot vor to conne bothe wel it is,
Vor the more that a mon can, the more wurthe he is.

Em prosa vernácula, pode-se traduzir este testemunho como segue:

Eis que assim veio a Inglaterra às mãos da Normandia. E os normandos não podiam falar senão o seu próprio idioma. E falam francês, como o faziam em casa, e a seus filhos também o ensinam, para que os homens nobres desta terra, que vêm do seu sangue, todos mantenham o idioma que deles tomaram, pois a não ser que um homem saiba francês, os homens pouco caso dele fazem. Porém, os plebeus ainda se atêm ao inglês e ao seu próprio idioma. Acho que não há nenhum em todos os países do mundo que não se atenha ao seu próprio idioma, a não ser a Inglaterra, somente. Porém, bem se sabe que é bom conhecer ambos, pois quanto mais um homem conhece, mais vale.

Como os arautos desenvolveram o seu ofício ao serviço da realeza e da nobreza (leia-se a postagem de 14/03/21), entende-se por que só em 1446 os reis da Inglaterra começaram a assinar cartas de armas em inglês, quando se vinha concedendo essa espécie de mercê desde Eduardo III, em 1335. O mesmo na literatura técnica: o primeiro tratado nessa língua, o de John Dade, também data de meados do século XV, quando o mais antigo foi feito precisamente na Inglaterra: provém da Abadia de Santo Albano (St Albans Abbey), em Hertfordshire. Conhecido pelo seu incipit De héraudie — e pelo nome da sua editora — Ruth Dean —, foi escrito presumivelmente entre 1341 e 1345, portanto antecede até mesmo o De insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato. (1)

Armas reais da Inglaterra. Em inglês: Gules, three lions passant guardant in pale Or armed and langued Azure. Em português: De vermelho com três leopardos de ouro, armados e lampassados de azul, alinhados em pala.
Armas reais da Inglaterra. Em inglês: Gules, three lions passant guardant in pale Or armed and langued Azure. Em português: De vermelho com três leopardos de ouro, armados e lampassados de azul, alinhados em pala.

Com efeito, o De héraudie ilustra outro fato curioso: o francês usado nos domínios do rei inglês durante esse período não era o padrão, até porque este não existia, mas nem sequer o dialeto da Ilha de França, que viria servir-lhe de base, e sim o da Normandia. Daí que se tenha, pelas suas particularidades, convindo denominá-lo anglo-normando. Eis o início do tratado:

De héraudie le mestier
Si est les armes diviser,
Les colours et les propretées
Qu'en armes sount trovez.

Traduzindo: "Da heráldica o mister é as armas divisar, as cores e as propriedades que nas armas são achadas". Aqui, os vocábulos colours e sount divergem das formas no dialeto parisiense: coleurs e sont. O primeiro mostra a evolução das vogais latinas ō e ŭque explica a divergência entre gueules, no francês padrão, e gules, em inglês, do anglo-normando goules. O segundo, a do o nasalizado, que também contrasta rondeau, no francês padrão, a roundel, em inglês, do anglo-normando.

Armas da Casa de Lennox. Em inglês: Argent, a saltire engrailed between four roses Gules barbed and seeded Proper. Em português: De prata com uma aspa espiguilhada de vermelho, cantonada de quatro rosas do mesmo, apontadas e abotoadas de sua cor.
Armas da Casa de Lennox. Em inglês: Argent, a saltire engrailed between four roses Gules barbed and seeded Proper. Em português: De prata com uma aspa espiguilhada de vermelho, cantonada de quatro rosas do mesmo, apontadas e abotoadas de sua cor.

Na verdade, rondeau (adaptado como rondó em português) é hoje a denominação de certas composições musicais e literárias, já que por arruela se diz tourteau. Isso aponta a outra particularidade da armaria inglesa: a sua elaboração começou em francês, mas se tornou independente da armaria francesa. Por exemplo, quando vert e vair, isto é, 'verde' e 'veiro', ficaram homófonos, adotou-se o termo sinople para a cor no continente, enquanto no outro lado do Canal nada mudou. (2)

Armas da Casa de Chetwynd. Em inglês: Azure, a chevron between three mullets Or. Em português: De azul com uma asna de ouro entre três estrelas do mesmo.
Armas da Casa de Chetwynd. Em inglês: Azure, a chevron between three mullets Or. Em português: De azul com uma asna de ouro entre três estrelas do mesmo.

Mais precisamente, não foi o anglo-normando que evitou a homofonia de vert e vair (afinal, o uso desse dialeto cedeu paulatinamente ante o prestígio do parisiense), mas o próprio inglês, cuja emergência produziu uma linguagem heráldica única. Nela, misturam-se elementos de vária espécie. Assim, ao nível do vocábulo, há formações nativas, como horned, e formações francesas, como battlement, mas é muito mais frequente a raiz francesa com um sufixo nativo, como alternately, canting, langued, paly (3). Ao nível da oração, não há concordância nominal, de acordo com a gramática nativa, mas se pospõe o especificador, o que se deve à influência francesa: three lions passant (calcado em trois lions passants), em vez de three passant lions.

Armas de Casa de Herbert. Em inglês: Per pale Azure and Gules, three lions rampant Argent. Em português: Partido de azul e vermelho com três leões de prata, o terceiro brocante sobre a partição.
Armas de Casa de Herbert. Em inglês: Per pale Azure and Gules, three lions rampant Argent. Em português: Partido de azul e vermelho com três leões de prata.

Seja como for, a literatura heráldica francesa continuou uma referência para todos os estudiosos da matéria até o começo do século XX, tanto que Anselmo Braamcamp Freire na Armaria portuguesa (1908) e Guilherme Luís dos Santos Ferreira no Armorial português (tomo 1, 1920; tomo 2, 1923) empregam o vernáculo e o francês no brasonamento. A ascensão do inglês como língua internacional decorre da ascensão dos Estados Unidos como superpotência após a Segunda Guerra Mundial.

Armas da Casa de Cecil. Em inglês: Barry of ten Argent and Azure, six escutcheons Sable, three, two and one, each charged with a lion rampant of the first. Em português: Burelado de prata e azul de dez peças com seis escudetes de negro, postos três, dois e um e brocantes, cada um carregado de um leão de prata.
Armas da Casa de Cecil. Em inglês: Barry of ten Argent and Azure, six escutcheons Sable, three, two and one, each charged with a lion rampant of the first. Em português: Burelado de prata e azul de dez peças com seis escudetes de negro, postos três, dois e um, cada um carregado de um leão do primeiro.

Num mundo onde as pessoas macaqueiam coisas como 'guépi' (por gap), quando dispõem de brecha, hiato, lacuna, falha etc.; 'istartá' (por start), quando dispõem de começar, iniciar, dar início etc.; ou, a pior de todas, 'avocádu' (por avocado), em vez do bom e velho abacate, definitivamente o francês já não é a língua de referência nem mesmo para os estudos heráldicos. O problema é que, por todo o razoado, o brasonamento inglês não só é muito particular, mas também está cheio de "falsos amigos".

Entre as particularidades, além das já enunciadas, há pelo menos uma palavra que não tem correspondente noutras línguas: achievement. Ainda que venha do francês antigo (no moderno, achèvement 'acabamento'), designa a reprodução completa de certas armas: escudo mais ornamentos externos. Em português, dizemos simplesmente brasão de armas ou brasão ou armasDe outras três palavras costuma-se abusar, como se não tivessem tradução: badge, hatchment e marshalling.

Por badge, a Canadian Heraldic Authority/Autorité héraldique du Canada usa o termo insigne em francês, portanto é perfeitamente aceitável dizer insígnia em português, ainda mais ao se levar em conta que é continuação da antiga empresa ou divisa, vocábulos que ganharam significados novos. Trata-se de um emblema vinculado ao universo heráldico, porém mais versátil, porque solto das regras da armaria.

Sobre o hatchment discorri na postagem de 21/04/2022 e lembro que a prática dessa honra fúnebre num país parcialmente francófono, a Bélgica, oferece outra vez solução para a nossa língua: obiit, latinismo que significa 'faleceu'.

Quanto a marshalling, quer dizer simplesmente 'composição', portanto marshalled arms são 'armas compostas', isto é, que se compõem de outras. Marechal de armas era um dos títulos dos oficiais de armas e o College of Arms, que governa a armaria inglesa desde 1484, é dirigido pelo conde-marechal (Earl Marshal), daí o verbo to marshal.

Armas da Casa de Gilbey. Em inglês: Gules, a fess nebuly Or, in chief a horse rampant between two estoiles and the like in the base all of the last. Em português: De vermelho com uma faixa nublada entre dois cavalos empinados, cada um entre duas estrelas flamejantes, tudo de ouro.
Armas da Casa de Gilbey. Em inglês: Gules, a fess nebuly Or, in chief a horse rampant between two estoiles and the like in the base all of the last. Em português: De vermelho com uma faixa nublada entre dois cavalos empinados, cada um entre duas estrelas flamejantes, tudo de ouro.

Enfim, os "falsos amigos" em heráldica nada diferem dos falsos cognatos noutras áreas: palavras cujas formas se assemelham em duas línguas, mas têm significados diferentes em cada uma. No caso do brasonamento inglês sob perspectiva lusófona, isso acontece porque, como eu disse, grande parte dos termos têm raízes francesas e, por mor da origem latina comum, parecem vocábulos da língua portuguesa, a tal ponto que, mesmo quando não existem, as pessoas os tomam por possíveis, como *guardante por guardant.

Há, ainda, alguns termos que descumprem o critério da semelhança formal, por terem raiz nativa, mas como em português há vocábulos análogos, podem confundir. Por exemplo: eyed é análogo a olhado, mas na armaria portuguesa se diz animado do animal cujo olho tem esmalte diferente.

Aplicando, pois, esses dois critérios, elaborei o vocabulário heráldico inglês-português que segue e arrola especificamente falsos cognatos. Em cada item, dou o vocábulo inglês, o semelhante em português, o habitual na armaria portuguesa e a sua acepção.

Affronty não é 'afrontado', e sim posto de frente, isto é, diz-se da figura cuja frente está voltada para o observador.

Alternately não é 'alternadamente', e sim contrabretessado, isto é, diz-se da peça cujas ameias se alinham alternadamente, em cima e em baixo.

Argent não é 'argento', e sim prata, porque os esmaltes têm nomes vernáculos na armaria portuguesa.

Arranged não é 'arranjado', e sim alinhado, isto é, diz-se do modo como duas ou mais figuras estão no campo, uma em relação à outra.

Augmentation não é 'aumento', e sim acrescentamento, isto é, diz-se das armas que receberam certa peça ou figura depois do seu ordenamento originário.

Banded não é 'bandado', e sim atado, isto é, diz-se da figura que contém um objeto que a amarra.

Bar não é 'barra', e sim faixeta, isto é, diz-se da faixa diminuída a um terço da sua largura.

Barbed não é 'barbado', e sim apontado, isto é, diz-se da rosa cujas folhas têm esmalte diferente.

Barry não é 'barrado', e sim faixado e, acima de oito peças, burelado, isto é, diz-se do campo, da peça ou da figura que se divide em número par de faixas ou burelas.

Base não é 'base', e sim campanha (ou contrachefe ou ), isto é, a peça honrosa que se firma na ponta do escudo.

Battle cry não é 'grito de batalha', e sim grito de guerra, isto é, diz-se do ornamento externo, consistente numa legenda, que costuma figurar acima do timbre.

Bearded não é 'barbado', e sim caudato, isto é, diz-se da estrela que tem uma cauda ondulada, também dita cometa.

Bendy, acima de oito peças, não é 'bandado', e sim coticado, isto é, diz-se do campo, da peça ou da figura que se divide em número par de coticas.

Blazon não é 'brasão', e sim brasonamento, isto é, a descrição de um brasão em linguagem heráldica.

Bottony não é 'abotoado', e sim trilobado, isto é, diz-se do objeto cujas extremidades acabam em três lóbulos unidos.

Cabled não é 'cabeado', e sim cordoado, isto é, diz-se da âncora cuja amarra tem esmalte diferente.

Cadency não é 'cadência', e sim diferença (ou brisura), isto é, a peça ou figura que distingue as armas de um cadete das armas direitas, que pertencem ao chefe da linhagem.

Canting arms não são 'armas cantantes', e sim armas falantes, isto é, diz-se das armas que aludem ao nome do armígero.

Combattant não é 'combatente', e sim afrontado (ou batalhante), isto é, diz-se de duas figuras que estão voltadas para si mesmas.

Common charge não é 'carga comum', e sim figura, isto é, um desenho do que há no céu, na terra, nas águas ou da obra humana.

Compartment não é 'compartimento', e sim terraço, isto é, diz-se do ornamento externo abaixo do escudo, onde este fica repousado, assim como os suportes, se houver.

Conjoined não é 'conjuntado', e sim unido, isto é, diz-se de duas ou mais figuras juntas.

Contourned não é 'contornado', e sim voltado (ou volvido), isto é, diz-se da figura que está voltada para a sinistra.

Crest não é 'crista', e sim timbre, isto é, um emblema adicional, geralmente uma figura tirada das próprias armas (mas não necessariamente), que se põe acima do escudo.

Cypher não é 'cifra', e sim monograma, isto é, diz-se da combinação de letras (com número ou figura ou sem isso) que serve de insígnia pessoal a alguém.

Decrescent não é 'decrescente', e sim minguante, isto é, diz-se do crescente cujas pontas estão voltadas para a sinistra.

Disjointed não é 'disjuntado', e sim quebrado, isto é, diz-se da peça à qual falta um pedaço.

Embattled não é 'batalhado', e sim ameado, isto é, diz-se da peça cujo bordo superior tem forma de ameias.

Enflamed não é 'inflamado', e sim aceso, isto é, diz-se da figura cuja chama ou luz tem esmalte diferente.

Enraged não é 'enraivecido', e sim furioso, isto é, diz-se do touro que se ergue sobre as suas patas traseiras, suspendendo as dianteiras.

Eradicated não é 'erradicado', e sim arrancado, isto é, diz-se da planta cujas raízes têm esmalte diferente.

Escartelled não é 'esquartelado', e sim encravado, isto é, diz-se da partição que tem um ou mais encaixes em forma de ameia.

Escutcheon é 'escudo', mas a figura se denomina escudete em português. Em contrapartida, a peça denomina-se inescutcheon em inglês.

Eyed não é 'olhado', e sim animado, isto é, diz-se do animal cujo olho tem esmalte diferente.

Fimbriated não é 'fimbriado', e sim perfilado, isto é, diz-se da peça ou figura que tem um contorno de esmalte diferente.

Flanche não é 'flanco' nem flanche sinister é 'flanco sinistro', e sim adestrado e sinistrado, isto é, diz-se da pala firmada em um dos flancos, destro ou sinistro.

Flaunches não são 'flancos', e sim flanqueado, isto é, diz-se do campo que contém duas palas, cada uma firmada num flanco, em geral curvilíneas.

Flory não é 'florido', e sim florenciado, isto é, diz-se do objeto cuja extremidade acaba como as pétalas de uma flor de lis.

Foliated não é 'foliado', e sim folhado, isto é, diz-se da planta cujas folhas têm esmalte diferente.

Guardant não é 'guardante' (termo inexistente), e sim olhando para frente, isto é, diz-se da figura cuja cabeça está voltada para o observador. É a postura ordinária do leopardo, daí que não se brasone e se diga aleopardado do leão que olha para frente.

Gules não é 'goles', e sim vermelho, porque os esmaltes têm nomes vernáculos na armaria portuguesa.

Horned não é 'chifrudo', e sim armado, isto é, diz-se da figura cujos chifres têm esmalte diferente.

Impalement não é 'empalamento', e sim composição, especialmente aquela de dois brasões num escudo partido.

Indented não é 'endentado', e sim dentelado, isto é, diz-se da partição ou peça que está traçada em forma de dentes de serra.

Irradiated não é 'irradiado', e sim reluzente, isto é, diz-se da figura que solta raios de luz.

Issuing não é 'saindo', e sim movente, isto é, diz-se da figura parcialmente oculta pelo bordo do campo, por uma peça ou por outra figura.

Langued é linguado, isto é, diz-se do animal cuja língua tem esmalte diferente, mas com a exceção das aves é preferível dizer lampassado.

Legged não é 'pernado', e sim membrado, isto é, diz-se da ave cujas pernas e pés têm esmalte diferente.

Lined não é 'alinhado', e sim forrado, isto é, diz-se da figura cujo forro tem esmalte diferente.

Lozenge não é 'losango', e sim lisonja, isto é, a peça de terceira ordem que tem forma de losango.

Mantled não é 'mantelado', e sim paquife, isto é, o pano esvoaçante que cobre parcialmente o elmo.

Mullet é estrela, embora a estrela com um furo redondo se chame efetivamente moleta.

Nebuly não é 'nebulado', e sim nublado, isto é, diz-se da partição ou peça traçada em forma de entrâncias e reentrâncias onduladas, formando um padrão estilizado de nuvens.

Ordinary não é 'ordinário', e sim peça (honrosa ou de primeira ordem), isto é, certa figura geométrica, assim como subordinary é peça de segunda ordem.

Paly, acima de oito peças, não é 'palado', e sim verguetado, isto é, diz-se do campo, da peça ou da figura que se divide em número par de verguetas.

Parted não é 'partido', e sim geminado, isto é, diz-se da cruz formada por gêmeas.

Per bend é '(partido) em banda', mas é preferível dizer fendido, assim como talhado por per bend sinister, e não '(partido) em contrabanda'.

Per fess é '(partido) em faixa', mas é preferível dizer cortado.

Per pale é '(partido) em pala', mas é preferível dizer partido.

Per saltire é '(partido) em sautor', mas é preferível dizer franchado.

Piece of battlement não é 'peça de batalhamento', e sim pano de muralha (ou lanço de muralha), isto é, um desenho do trecho de uma muralha com as suas ameias.

Pily não é 'pilado', e sim emalhetado, isto é, diz-se da partição ou peça que está traçada em ziguezague, formando pontas cujo número é preciso expressar.

Plain não é 'plano', e sim liso (ou pleno), isto é, diz-se do campo que não contém nenhuma peça ou figura.

Point não é 'ponta', e sim pendente, isto é, diz-se das figuras que com a travessa formam o lambel, cujo número é preciso expressar.

Pointed não é 'pontudo', e sim aguçado, isto é, diz-se da figura cuja extremidade acaba em forma de ponta aguda.

Potent não é 'potente', e sim potenteia, isto é, diz-se da cruz cujas extremidades acabam em forma de tê.

Potenty não é 'potentado', e sim potenciado, isto é, diz-se da partição ou peça traçada em forma de tês.

Proper não é 'próprio', e sim de sua cor (ou ao natural), isto é, diz-se da figura pintada na sua cor natural.

Property não é 'propriedade', e sim atributo, isto é, um qualificador que muda a forma ordinária de certa partição, peça ou figura.

Quarter é 'quartel', mas a peça é o franco-quartel.

Recrossed não é 'recruzado', e sim recruzetada, isto é, diz-se da cruz cujas extremidades acabam em forma de cruz.

Regardant não é 'reguardante' (termo inexistente), e sim em fugida, isto é, diz-se da figura cuja cabeça está voltada para a sinistra.

Reversed não é 'revertido', e sim invertido, isto é, diz-se da peça ou figura voltada para o baixo.

Ribbon não é 'fita', e sim cotica (ou bastão), isto é, uma banda diminuta, assim como ribbon sinister não é 'fita sinistra', e sim travessa.

Ringed não é 'anelado', e sim argolado, isto é, diz-se do animal que traz arganel no seu focinho.

Roundel não é 'rodela', e sim arruela, isto é, a peça de terceira ordem que tem forma de círculo, pintado de cor.

Sable não é 'sable', e sim negro, porque os esmaltes têm nomes vernáculos na armaria portuguesa.

Salient não é 'saliente', e sim saltante, isto é, diz-se do bovídeo (bode, carneiro etc., exceto os bovinos, como o boi ou o búfalo, dos quais se diz espantado) que se ergue sobre as suas patas traseiras, suspendendo as dianteiras.

Seeded não é 'semeado', e sim abotoado, isto é, diz-se da rosa cujo botão tem esmalte diferente.

Sejant não é 'sejante' (termo inexistente), e sim sentado, isto é, diz-se da figura que está sentada.

Sexed não é 'sexuado', e sim vilenado, isto é, diz-se do animal cujos genitais têm esmalte diferente.

Statant não é 'estatante' (termo inexistente), e sim parado, isto é, diz-se do quadrúpede cujas patas estão no chão.

Terrace não é 'terraço', e sim terrado, isto é, a campanha que tem forma acidentada, à semelhança de um terreno natural.

Tincture não é 'tintura', e sim esmalte, isto é, a cor e o metal heráldicos.

Variation não é 'variação', e sim atributo, isto é, um qualificador que muda a forma ordinária de certa partição, peça ou figura.

Contudo, se a pessoa quer usar motto, em vez de motedivisalema etc., ou quer inventar coronete, em vez de coronel, não há o que fazer. Cabe reconhecer que o anglicismo tem uma força muito poderosa porque transmite uma imagem de modernidade para uma grande parte das pessoas, mesmo que o seu usuário não saiba falar inglês.

Notas:
(1) O De héraudie ou Tratado de Dean (Dean Tract) é um texto curto, de umas 1.350 palavras, que começa em verso e, depois do 53.º, segue e acaba em prosa. Como o códice (Cambridge, Univ. Lib, Ee.4.20) em que se conserva a única cópia contém outros tratados sobre várias matérias e provém da referida abadia, é provável que tenha sido elaborado para a instrução dos próprios monges. A citada editora o publicou em: HOLMES, Urban (ed.). Romance studies in memory of Edward Billings Ham. Hayward: California State College Publications, 1967, p. 21-29.
(2) Na história da língua francesa, quanto mais se remonta ao passado, mais a escrita reflete a fala. Assim, houve um tempo em que vert e vair se pronunciavam tal como se escrevem, mas a evolução da língua os tornou homófonos, isto é, /vɛʁ/.
(3) O sufixo -y é nativo, mas a sua produtividade no brasonamento inglês se deve claramente à semelhança com o do particípio passado francês, provavelmente por analogia com o sufixo -ty, de -té (-dade em português). Assim, de palé ('palado'), paly, como de propre ('propriedade'), property. Corrobora isto a raridade dos cognatos de -y nas demais armarias germânicas (por exemplo, em alemão: bogenförmig 'arqueado'; archy ou arched em inglês), nas quais se emprega habitualmente o particípio passado (outro exemplo em alemão: geschacht 'xadrezado'; mas checky em inglês).

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