23/04/22

A HERÁLDICA E A MORTE (III)

Hoje não cabe mais usar da armaria para engalanar a morte, mas certa homenagem heráldica ainda se mostra apropriada e bela.

Apesar de o uso do obiit ter decaído, como, de resto, aconteceu à armaria gentilícia no geral, a comunidade heráldica tem recobrado o seu uso, revigorando-o e expandindo-o além dos seus âmbitos originários. Assim, com os recursos de desenho e publicação que se têm hoje, já não é necessário que se faça uma placa de madeira ou outra matéria para se depositar numa igreja ou capela, mas pode ser um objeto digital para se expor e guardar na Internet. No mundo lusófono, a não interferência do estado na heráldica gentilícia facilita, ademais, essa espécie de homenagem. A seguir, pretendo, precisamente, homenagear minha mãe desenhando um obiit para ela.

Não obstante, para elaborar um obiit, é preciso, de antemão, que o falecido tenha trazido algum brasão. Não é o caso de minha mãe, então lhe vou criar um in memoriam. O seu nome era Maria Lúcia Linhares e, se fosse viva, completaria hoje 62 anos. Os Linhares não têm armas, porque esse sobrenome foi adotado no Brasil por colonos vindos da aldeia desse nome, no município de Paredes de Coura, Portugal, como expus na postagem de 03/02/21. Mas esse sobrenome é o paterno; minha avó, sua mãe, é Madalena Câmara e os Câmaras não só trazem armas, mas estas estão muito bem documentadas, já que foram concedidas a João Gonçalves por Dom Afonso V em 1460. A respeito dessa personagem, a própria carta de brasão, passada aos 4 de julho do dito ano, diz que foi:

cavaleiro, criado do Ifante Dom Hanrique, meu muito prezado e amado tio, há feitos em tempos dos reis, nosso avoo e padre, progenitores nossos, que Deus haja, assi em a dita cidade de Cepta como em Tânger, onde se ele houve mui grandemente em os feitos de armas contra os infiees.

No entanto, omite-se um grande feito seu: a exploração e o povoamento do arquipélago da Madeira, o que lhe valeu a capitania do Funchal desde 1450. Com efeito, foi numa baía da ilha maior que descobriu uma gruta habitada por muitos lobos-marinhos, daí que o lugar tenha ficado conhecido como Câmara de Lobos, hoje uma cidade. O sobrenome, cuja concessão régia a carta de brasão também documenta, foi, pois, tomado desse topônimo e depois abreviado para da Câmara pelos descendentes. Estes mantiveram a capitania e receberam o condado da Calheta por mercê de Dom Sebastião em 1576, até que João Gonçalves da Câmara, oitavo capitão e quarto conde, veio falecer em 1656 sem geração. As armas e os títulos passaram, então, para a Casa de Castelo Melhor.

Na carta de 1460, as armas dos Câmaras são brasonadas assim: "ũu escudo preto e ao pee ũa montanha verde, sobre a qual está fundada e edificada ũa torre de prata antre dous lobos d'ouro". Esse brasonamento pode-se atualizar como segue: de negro com uma torre de prata entre dois lobos trepantes de ouro, tudo assente sobre um monte de verde, firmado em ponta. A elas, sem diferença, somente faz jus o pretendente à chefia da dita Casa de Castelo Melhor. Mas mesmo para usá-las com diferença, não disponho de nenhuma prova genealógica de que minha avó descenda dessa linhagem fidalga. Na verdade, meu bisavô, Miguel Câmara, nunca viveu "à lei da nobreza", como se exigia sob a monarquia para a concessão de brasão, mas sempre foi um humilde lavrador e artesão.

Contudo, como já manifestei várias vezes neste blog, o rigor genealógico na heráldica gentilícia luso-brasileira era mais aparente do que efetivo (no fim das contas, o tal do viver à lei da nobreza era o que se impunha) e não acho que as armas das linhagens portuguesas sejam peças de museu, mas sim parte do patrimônio simbólico do mundo lusófono. Neste sentido, não há mal nem erro em tomar essas armas por inspiração para criar novas. É o que passo a fazer.

Como se trata de uma criação in memoriam, escolho o mais clássico dos métodos heráldicos: as armas falantes. Começo, pois, mudando o esmalte do campo para azul, a cor mariana por excelência, e preservo a torre clara sobre o monte, dado que uma das invocações da ladainha lauretana é "Turris eburnea" ou, em vernáculo, "Torre de marfim". Estas figuras dizem, portanto, Maria. Lúcia (assim como Luzia) vem do latim lux,lucis 'luz', e na armaria portuguesa há uma figura denominada luzeiro. Segundo o Vocabulário heráldico de Luís Stubbs Saldanha Monteiro (1985), é uma estrela de dez raios, a qual ponho no chefe. Faltam os lobos: nas armas dos Câmaras, referem ao lugar que deu origem ao sobrenome. Neste trabalho, troco-os por ramos floridos de caraúba (Tabebuia caraiba), a árvore nativa que nomeia a terra natal de minha mãe, a qual ela muito amava: a cidade de Caraúbas, Rio Grande do Norte, onde está sepultada. Chego, portanto, ao ordenamento seguinte: de azul com uma torre de prata, aberta e iluminada do campo, assente sobre um monte de verde, firmado em ponta, e acompanhada de dois ramos floridos de caraúba de sua cor nos flancos e de um luzeiro de prata em chefe.

Obiit para Maria Lúcia Linhares (1960-2022) com brasão criado in memoriam.
Obiit para Maria Lúcia Linhares (1960-2022) com brasão criado in memoriam.

Enfim, quanto ao obiit, prefiro o modelo belga por três razões: a primeira, porque é o que ainda se pratica; a segunda, porque é praticado por católicos; a terceira, porque é o mais austero. Ao escudo dei forma oval, na esteira de certa tradição portuguesa, que o vincula às senhoras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário