19/04/22

A HERÁLDICA E A MORTE (I)

Um brasão identifica o seu portador na vida e conserva a sua memória na morte.

Quando acabei a derradeira série de postagens em 2021, já entrando nos primeiros dias deste ano, pretendia, de fato, repousar um pouco antes de retomar a escrita do blog. Contudo, no dia 20 de janeiro minha mãe testou positivo para Covid-19 e em 25 de março não resistiu mais às complicações decorrentes dessa doença e faleceu. Apesar de ter recebido as três doses da vacina, a fibrose pulmonar que a acometia desde 2018, bem como os remédios para tratá-la, suprimiam a sua imunidade e contra a variante ômicron pessoas nessa condição tiveram poucas chances de evitar o contágio.

Um brasão é um identificador pessoal, transmissível aos descendentes. Daí que desde as origens as armas figurem no selo, mas também sobre o túmulo de quem identificam. Com efeito, a heráldica desempenha uma função relevante na conservação da memória individual e coletiva, como as próprias cartas de brasão o reconhecem: antes de enunciar a concessão, diz-se que o interessado a suplicou "para a memória de seus progenitores se não perder"; depois de concedidas, que ele pode deixá-las "gravadas sobre sua própria sepultura".

Portanto, enquanto a heráldica gentilícia foi habitual, houve aqui e ali e com maior ou menor força a presença do brasão tanto no funeral como durante o luto. Obviamente, quanto mais se remonta ao período clássico da heráldica, maior força. Assim, já Raimundo Lúlio no Romanç d'Evast e Blaquerna (c. 1283) dá um exemplum sobre o sepultamento de um cavaleiro:

Murí un cavaller en aquella ciutat. E con lo portaven soterrar a l'esgleia, anava sa muller e sos parents ab lo cors; e eren vestits de negre e ploraven molt fortment e faïen gran dol, tirants llurs cabells e esquinçants llurs cares e llurs vestiments. En un gran cavall guarnit cavalcava un escuder armat, qui cridava e plorava la mort de son senyor e les armes a envers portava. Lo canonge de persecució s'encontrà ab lo cors e viu, enfre aquells qui ploraven, deshonrada la volentat de nostre Senyor Déus, qui volia que·l cavaller fos passat d'aquest segle. A treballar covenc lo canonge per justícia e recorrec al canonge de pobretat e al canonge de plors e pregà'ls que li ajudassen a salvar l'honor qui covenia ésser feta a la volentat de Déu. Tots tres los canonges anaren al príncep e al bisbe e preposaren estes paraules devant lo príncep e·l bisbe:
— Senyors, en vosaltres dos és representada la divinal senyoria — dix lo canonge de persecució —. Deman-vos que·m sia jutjat si aquells qui ploren per lo cavaller que Déus ha volgut auciure fan deshonor a la volentat de Déu. E si és jutjat per dret que ells ofenen Déu, deman-ne aital satisfació: que d'aquí en avant no vaja ab lo cors nulla persona qui plor ni qui do semblant de tristícia de ço que vol la volentat divinal ni per llurs plors lo divinal ofici de la missa no haja null embargament.
Aprés parlà lo canonge de plors, dient que plorar és per haver contricció e devoció:
— On, con aquells qui seguesquen lo cors ploren per vanaglòria e per hipocresia, e contra la volentat de Déu sien llurs plors, per açò me clam dels qui fan deshonor a l'ufici qui m'és comenat, en quant no ploren per la raó per la qual hom deja plorar.
Lo canonge de pobretat parlà enaprés e dix que aquells diners qui eren despeses en les vestedures negres eren robats als pobres e a l'ànima del defunt e per açò volia'ls cobrar; e que d'aquí en avant ço que deurien despendre en les vestedures negres fos donat als pobres e que null home, per la mort d'altre, no fos vestit de negre. Lo príncep e·l bisbe hagren consell ab los pròmens de la ciutat sobre les paraules que llur eren dites per los tres canonges e volgren que fos feta constitució segons la volentat dels canonges en aquella ciutat per totstemps, sobre les coses demunt dites. (1)

O exemplum (eixempro ou enxempro no português antigo) era um gênero literário que visava ao ensinamento de um preceito moral por meio de um conto. No citado, o autor não pretendeu condenar de todo os ritos sociais em torno da morte, mas admoestar os costumes que beiravam o espetáculo teatral e tinham, sabidamente, origens pagãs, como o atesta o sínodo de Juan Cabeza de Vaca, bispo de Burgos, em 1412:

[...] reprovamos el malo e aborrescido uso que cuando alguno muere, los homes e las mujeres van por los barrios e por las plaças aullando e dando bozes espantables en las iglesias e otros lugares, tañiendo bozinas e faziendo aullar los perros, e rascando las caras e mesando las crines e los cabellos de las cabeças, e quebrando escudos e faziendo otras cosas que no convienen. E esto fazían los gentiles, no creyendo la dicha resurreción. (2)

Apesar da oposição eclesiástica, a quebra dos escudos (quebrantamiento de escudos em espanhol e córrer les armes em catalão) foi observada nos ritos funerários dos reis portugueses até a monarquia constitucional. Consta do chamado Livro carmesim, de regimentos dos vereadores e oficiais de Lisboa, promulgado por Dom Manuel I em 1503, e foi executada pela derradeira vez aquando da morte de Dom Pedro V em 1861:

CAPÍTOLO DO PRANTO
Item. No dia seguinte, porque nom haverá tempo pera se todo fazer em um dia, logo naquela noite tornarão a dobrar tôdolos sinos, como da primeira, até o outro dia, depois de missa. E os vereadores e fidalgos-cavaleiros juntos na Câmara, todos com seu doo. E sairão fora com seu alférez a cavalo, com ũu pendom preto, metido em ũa haste preta, levado ao pescoço, derribado por detrás, que lhe vá arrastando pelo chão ũu pedaço. E o cavalo, cubertado de preto, que rocee pelo chão. E diante do alférez irão os juízes do crime e ũu dos do cível com três escudos, todos pretos, postos na cabeça a pee, indo os do crime diante e o do cível detrás. E os vereadores e precurador com suas varas pretas nas mãos a pee e tôdolos outros fidalgos-cavaleiros, oficiaes e pessoas e póvoo atrás eles. E logo à porta da See, o juiz do cível dos degraos da See derribará seu escudo da cabeça nos degraos e ali se quebrará e farão seu pranto. E dali abalarão e no meio da Rua Nova estará ũu banco preto e ali subirá ũu dos juízes do crime com outro escudo e derribará da cabeça e o quebrará no banco e farão seu pranto sobre ele pela dita guisa. E dali abalarão com seu alférez e pendões pera o Ressio, onde estará outro banco preto e quebrarão o outro escudo com seu pranto pela dita maneira. E se tornarão à Câmara com seu alférez e pendão e dali seirão pera a See ouvir sua missa de réquiem por sua alma, com toda sua solenidade a dita missa e outras rezadas quantas por ele se aquele dia poderem dizer. E por tôdalas outras igrejas e moesteiros da dita cidade. E desta maneira farão suas vésporas, como a missa do dia, e tôdolos sinos dobrados como dito é. E do enterramento se nom fala porque se fará naquele tempo, dia, hora que for ordenado e assi no lugar ou levado à Batalha etc.

Portanto, pode-se concluir que as imagens a seguir representam uma típica demonstração de luto pelo passamento de um cavaleiro na península Ibérica:

Sepulcro de Pere de Queralt, senhor de Santa Coloma, falecido em 1348. Foi construído por encomenda de seu filho, Dalmau, em 1370 e é conservado na igreja de Santa Maria de Bell-lloc, em Santa Coloma de Queralt (Espanha) (imagem disponível no blog Anem a pams).
Sepulcro de Pere de Queralt, senhor de Santa Coloma, falecido em 1348. Foi construído por encomenda de seu filho, Dalmau, em 1370 e é conservado na igreja de Santa Maria de Bell-lloc, em Santa Coloma de Queralt, Espanha (imagem disponível no blog Anem a pams).

Detalhe do mesmo sepulcro. As armas da Casa de Queralt veem-se no escudo invertido e no pendão arrastado pelo cavaleiro: de vermelho com um leopardo aleonado de ouro, coroado do mesmo (imagem disponível no blog Anem a pams).
Detalhe do mesmo sepulcro. As armas dos Queralts veem-se no escudo invertido e no pendão arrastado pelo cavaleiro: de vermelho com um leopardo aleonado de ouro, coroado do mesmo (imagem disponível no blog Anem a pams).

Notas:
(1) "Morreu um cavaleiro naquela cidade. E quando o levavam para enterrar na igreja, sua mulher e seus parentes iam com o corpo e estavam vestidos de preto e choravam muito fortemente e faziam grande pranto, puxando os seus cabelos e rasgando as suas caras e as suas vestes. Em um grande cavalo guarnecido, cavalgava um escudeiro armado, que gritava e chorava a morte de seu senhor e as armas ao revés trazia. O cônego de perseguição encontrou-se com o corpo e viu, entre aqueles que choravam, desonrada a vontade de nosso Senhor Deus, quem queria que o cavaleiro passasse deste século. A trabalhar por justiça conveio ao cônego e recorreu ao cônego de pobreza e ao cônego de prantos e rogou-lhes que o ajudassem a salvar a honra que convinha ser feita à vontade de Deus. Todos os três cônegos foram ao príncipe e ao bispo e propuseram estas palavras ante o príncipe e o bispo: — Senhores, em vós dois está representado o divino senhorio — diz o cônego de perseguição —. Peço-vos que me seja julgado se aqueles que choram pelo cavaleiro que Deus quis matar fazem desonra à vontade de Deus. E se for julgado por direito que eles ofendem a Deus, peço tal satisfação: que daqui em diante não vá com o corpo nenhuma pessoa que chore nem que faça cara de tristeza do que quer a vontade divina nem pelos seus prantos o divino ofício da missa tenha estorvo algum. Depois falou o cônego de prantos, dizendo que chorar é para ter contrição e devoção: — Daí que, quando aqueles que seguem o corpo choram por vanglória e por hipocrisia, e contra a vontade de Deus sejam os seus prantos, por isso queixo-me de quem faz desonra ao ofício que me é encomendado, porquanto não choram pela razão pela qual se deva chorar. O cônego de pobreza falou depois e disse que aquele dinheiro que era despendido nas vestes pretas era roubado dos pobres e da alma do defunto e, por isso, queria cobrá-lo, e que daí em diante o que deveriam despender nas vestes pretas fosse doado aos pobres e que nenhum homem, pela morte de outro, se vestisse de preto. O príncipe e o bispo tomaram conselho aos homens-bons da cidade sobre as palavras que lhes eram ditas pelos três cônegos e quiseram que fosse feita uma constituição segundo a vontade dos cônegos naquela cidade para sempre, sobre as coisas acima ditas." (tradução minha)
(2) "Reprovamos o mau e detestado uso de que quando algum morre, os homens e as mulheres vão pelos bairros e pelas praças uivando e dando berros assustadores nas igrejas e noutros lugares, tocando buzinas e fazendo os cães uivarem, e arranhando as caras puxando as crinas e os cabelos das cabeças, e quebrando escudos e fazendo outras coisas que não convêm. E isto faziam os gentis, não crendo na dita ressurreição." (tradução minha)

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