01/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: O CORTEJO

A pompa fúnebre de Carlos V foi, de fato, tão magnífica que as gravuras do livro não a retratam por inteiro.

Após a imagem da capela-ardente, La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... descreve, ao longo de quatro folhas de texto com um belo friso, o cortejo desde o início até os gentis-homens.

Primeira folha de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar na BnF).
Primeira folha de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar na BnF).

A magnífica e suntuosa pompa fúnebre feita nas exéquias e funeral do máximo e vitoriosíssimo Imperador Carlos V, celebradas na cidade de Bruxelas aos 29 dias do mês de dezembro de 1558, por Filipe, Rei Católico da Espanha, seu filho

O Rei, advertido do óbito do Imperador, seu pai, falecido na Espanha, e com isso muito pesaroso e triste, mandou que na sua cidade de Bruxelas se preparasse e pusesse em ordem com toda a diligência o que era conveniente e requerido para celebrar as suas exéquias e funeral, o que foi feito de modo que a pompa fúnebre aqui representada testemunha suficientemente a grande magnificência e suntuosidade feita nelas.

Entre outras coisas, montaram-se aos dois lados das ruas por onde passou a sobredita pompa fúnebre fortes vedações de madeira, entre as quais podia haver o espaço de vinte pés de largura, igual no comprimento às ditas ruas, para manter a ordem dessa pompa franca e livre da multidão do povo, que estava na dita Bruxelas em máximo número. Começavam as vedações anteditas a partir do paço, correndo ao longo da Grand' Rue em direção ao meio da cidade; depois voltavam pela rua chamada Bergstraat até Santa Gúdula, igreja principal dessa cidade, onde foram solenizadas as exéquias supramencionadas.

Segunda folha de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar na BnF).
Segunda folha de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar na BnF).

E por fora, ao longo das ditas vedações, estavam alinhados por ordem, junto a elas, cerca de dois mil burgueses e oficiais dos misteres jurados da dita Bruxelas, todos em vestes de luto, cada um segurando um facho ardente, armoriado com as armas do Imperador finado.

Assim, aos 29 do mês de dezembro de 1558 — dia da vigília dessas exéquias — tendo vindo ao paço, por volta das duas horas da tarde, os príncipes, senhores, gentis-homens e outros da Casa do Rei, juntamente com os pensionários que foram daquela do Imperador, seu pai, e, de outra parte, os da Chancelaria de Brabante, da Câmara dos Contos e do Concelho da Cidade, todos em seguida nominados em particular. Semelhantemente, o clero dos colégios, paróquias, ordens mendicantes e outros religiosos dos mosteiros dessa cidade de Bruxelas. Tosão de Ouro, rei de armas, tendo sido encarregado do ordenamento e cerimônias das sobreditas exéquias, primeiro pôs em ordem a pompa fúnebre como segue.

Primeiramente, o clero da cidade começou a andar e, depois, os cantores da capela do Rei, todos vestidos de luto, com as suas sobrepelizes por cima. Depois, os seus capelães ordinários, revestidos de capas muito ricas. E na sequência, os prelados, abades e bispos nas suas ordens e hábitos pontificais, entre os quais estava o reverendíssimo bispo de Liège, que oficiou a vigília dessas exéquias e celebrou no dia seguinte a última grande missa. Aí também estavam os reverendíssimos bispos de Arras, o eleito de Cambraia e vários outros bispos, tanto da Espanha como da Itália e dos demais reinos e países do Rei, que tinham esperado o clero da cidade na capela do paço.

Terceira folha de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar na BnF).
Terceira folha de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar na BnF).

Depois dos ditos eclesiásticos, caminharam os oficiais, secretários, jurados, escabinos, burgomestres e o amman da cidade de Bruxelas e, com eles, vários conselheiros, pensionários das cidades e outros deputados dos estados dos Países de Baixo, todos trajados de luto; outros oficiais, como meirinhos, escrivães, contadores e o presidente da Câmara dos Contos de Brabante e de Luxemburgo; o preboste da Casa do Rei e o drossart de Brabante. Depois, o chanceler de Brabante (1) e os conselheiros, secretários e outros oficiais da chancelaria do dito Brabante.

Aqui, junto aos dois lados das vedações sobreditas e dentro delas, seguiam, um após o outro, duzentos pobres vestidos de luto, cada um trazendo um facho ardente, armoriado com escudos duplos das armas desse bom imperador. E depois deles, os alabardeiros da guarda do Rei, espanhóis e alemães. No meio desses pobres e alabardeiros, caminharam, dois a dois, os da Casa Real, juntamente com os servidores e gentis-homens pensionários daquela do Imperador, seu pai, cada um na sua categoria e segundo a sua qualidade. Depois, as peças de honra e cerimônias da pompa, na ordem que segue.

Quarta folha de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar na BnF).
Quarta folha de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar na BnF).

Os primeiros eram os estribeiros da cavalariça do Rei e os demais oficiais dela, como aposentadores e seus moços. Depois, os moços de ofícios da Casa; os porteiros e meirinhos; os aguazis e escrivães (chamados escribanos) do alcalde de Corte; os aposentadores da Casa e o do paço; os oficiais-mores da Casa; os médicos, cirurgiães e boticários da Casa; outros médicos da pessoa do Rei e os gentis-homens de sua Câmara, juntamente com os guarda-roupas e guarda-joias; os pajens do Rei, conduzidos pelo seu governante; os varlets servants e gentis-homens coutiliers; outros gentis-homens, chamados continos; os gentis-homens da Casa e, depois, os gentis-homens da Boca. Todos em grande número.

Seguem as figuras.

Como eu disse na postagem de 25/04, quando Carlos V morreu, Filipe II ainda estava nos Países Baixos, mais precisamente em Arras, a capital do condado do Artois. No texto, diz-se Pays d'en-Bas, isto é, 'Países de Baixo'. Essa locução surgiu na corte ducal para distinguir os dois complexos territoriais dos estados borguinhões: en bas ('embaixo', na costa ou perto dela), os ducados de Brabante, Limburgo e Luxemburgo, a marca do Sacro Império, os condados de Flandres, Artois, Hainaut, Holanda, Zelândia, Namur e Zutphen, o senhorio de Mechelen; en haut ('em cima', no interior), o ducado e o condado da Borgonha, os condados do Charolais, Auxerre e Mâcon. Os duques acumularam esse poderio ao longo de quatro gerações, desde 1364 até 1477, principalmente por casamentos, mas também por disputas (2). Além disso, esses domínios eram divididos em sentido longitudinal pela fronteira entre o Sacro Império e a França.

Portanto, o chamado "estado borguinhão" era, na verdade, uma união dinástica e o seu dinasta, por mais poderoso que se alçasse e por vezes independente que agisse, devia vassalagem ao imperador de um lado e ao rei da França do outro. A sua corte, a mais faustosa do Ocidente no século XV, deslocava-se segundo as necessidades do governo aqui e ali, mas havia duas residências principais: o paço dos duques da Borgonha em Dijon e o paço dos duques de Brabante em Bruxelas. Mas à morte de Carlos o Temerário no dito ano de 1477, Luís XI ocupou os territórios franceses que tinham pertencido ao duque e o condado da Borgonha. Embora o Tratado de Senlis (1493) tenha assegurado a devolução dos condados da Borgonha, Artois e Charolais à Casa de Habsburgo, o ducado da Borgonha foi definitivamente perdido, o que fez de Bruxelas a capital da monarquia borguinhona (3).

O paço ducal de Bruxelas, destruído por um incêndio em 1731, ficava no Coudenberg ('Monte Frio' em neerlandês). Pela frente do paço, passava o Steenweg ou Chaussée ('Calçada'), a Grand' Rue a que o texto refere, hoje Mont des Arts/Kunstberg e Rue de la Madeleine/Magdalenasteenweg. A Bergstraat, que sobe de volta até a Colegial de Santa Gúdula, chama-se Rue de la Montagne em francês. Esse trajeto mede pouco mais de um quilômetro e pode ser bem discernido no mapa da cidade publicado por Georg Braun e Frans Hogenberg em 1572. A heráldica não só se fez superpresente ao longo do cortejo, mas demarcava o começo e o fim do caminho, pois tanto acima do pórtico do paço como daquele da igreja pendiam, por fora e por dentro, uma peça grande de veludo negro com as armas do imperador em madeira.

Filipe II presidiu ao cortejo, mas o rei de armas Tosão de Ouro (naquele tempo, Antoine de Beaulaincourt, senhor de Bellenville) chefiou o cerimonial; Robert de Berghes, bispo de Liège, celebrou a vigília e a missa; François Richardot, bispo auxiliar de Arras, pregou o sermão em língua francesa. Ninguém ficou de fora: os burgueses e oficiais dos misteres jurados  equivalentes aproximadamente aos cidadãos e às confrarias em Portugal  formaram o público junto às vedações das ruas e havia até mesmo duzentos "pobres", enfileirados um atrás do outro, escoltando lado a lado os criados da Casa do Rei e daquela de seu pai. A esses pobres seguiam os alabardeiros. Todos participaram, porém, segundo os seus estamentos, de pleno acordo com a mundivisão do Antigo Regime.

Com efeito, discernem-se bem seis grupos: o clero, a magistratura, a Casa Real, os cavaleiros do Tosão de Ouro, a administração dos reinos e senhorios e o corpo de archeiros do rei. Em meio ao primeiro grupo, distinguem-se os clérigos da cidade e os da Casa Real, todos presentes, e alguns prelados de fora, mormente abades. O segundo grupo era composto pelos magistrados de Bruxelas e pelos principais dos Países Baixos.

Em particular, é difícil traduzir os nomes de certos ofícios, a começar por huissier. Esse vocábulo vem do latim ostiarius, que quer dizer 'porteiro' (ostium é uma das palavras latinas para porta). Em francês, pode ter esse significado, mas também é um oficial de justiça mais ou menos equivalente ao antigo meirinho em Portugal. Nem sempre é fácil distinguir esses dois sentidos. Outro termo ambíguo é pensionnaire 'pensionário', mas nesse caso se entende bem quando refere ao criado da Casa Real e quando refere ao secretário de um concelho ou estado dos Países Baixos. Certos ofícios têm denominações aportuguesadas, como burgomestre e escabino (bourgmestre e échevin), correspondentes ao presidente da câmara e ao vereador no município português do Antigo Regime. Outros não dispõem nem de tradução nem de correspondência, como o amman de Bruxelas (então Jean de Locquenhien, senhor de Koekelberg) e o drossart de Brabante (então Thomas Nagels), ambos vicários do duque com poderes policiais, assim como o preboste (prévôt) da Corte. Ao se passar à Casa Real, parcialmente hispana, a dificuldade não diminui propriamente: o alcalde de Corte e o contino eram próprios da Coroa de Castela. Já o coutilier, tinha esse nome porque portava uma faca chamada coutille (costilla em espanhol).

O cortejo da Casa Real obedecia a uma sequência de fora para dentro até o rei. Primeiro, os oficiais mecânicos e os da estrebaria com os seus moços; depois, os oficiais da casa com os seus moços: os porteiros, os aguazis com o juiz cortesão (o dito alcalde de Corte), os aposentadores, os oficiais-mores, os oficiais de saúde, os moços da Câmara, os pajens com o seu governante; enfim, os oficiais da Câmara: os gentis-homens, que se dividiam em varlets servants, coutiliers, continos, da Casa, da Boca e da Câmara. Como a nomenclatura deixa ver, essas honrarias tinham origem borguinhona (coutilier foi castelhanizado como costiller). Comum a todos esses graus era a função de assistir ao monarca em público segundo a aproximação à pessoa dele que cada grau conferia.

Apesar do cuidado em colocar cada participante segundo a sua categoria, a piedade da ocasião igualou todos pelas vestes de luto, longas e escuras, salvo os clérigos, que trajaram as suas vestes litúrgicas. Não obstante, pode-se afirmar que os gentis-homens — comparáveis em grandes linhas aos fidalgos filhados portugueses  protagonizam o livro La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., precisamente pelo conteúdo heráldico, pois são eles que trazem os cavalos de gualdrapas armoriadas e carregam as bandeiras do finado e dos seus domínios e foram retratados nas gravuras.

Notas:
(1) Então Jean Scheyfve.
(2) O próprio Carlos V aumentou esse patrimônio anexando o ducado de Gueldres e os senhorios da Frísia, Utrecht, Overijssel e Groningen.
(3) Bruxelas tornou-se a referência para outras locuções que distinguiam os dois complexos territoriais: os pays de par-deçà ('países de cá'), isto é, os Países Baixos, e os pays de par-delà ('países de lá'), isto é, os condados da Borgonha e do Charolais.

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