13/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: AS INSÍGNIAS IMPERIAIS (II)

Há uma relação dialética entre a heráldica e as instituições às quais ela serve.

Na postagem de 29/04/2021, expus que a águia negra em campo de ouro era, na cultura heráldica da Idade Moderna inicial, atribuída a Júlio César. Hoje sabemos que a armaria surgiu no século XII e, portanto, se tratava de uma atribuição imaginária. Não obstante, a figura tem, sim, origem antiga: após as reformas de Mário (107 a.C.), era a insígnia das legiões, representando Júpiter, o deus tutelar de Roma.

Pranchas n.os 21, 22 e 23 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Com efeito, o caso ilustra algo que razoei na postagem de 12/02/2021: uma águia remata o cetro no selo imperial desde 1029 (sob Conrado II) até 1106 (sob Henrique IV), portanto é exemplo de figura sigilar que acabou convertendo-se em figura heráldica. As armas imperiais apareceram um centênio e meio depois: por volta de 1180 em Maastricht, sob Frederico Barba-Ruiva, cunhou-se um dinheiro cujo reverso mostra um escudo com uma águia e a legenda Scutum imperatoris ('Escudo do imperador').

Pranchas n.os 24 e 25 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Liber ad honorem Augusti (à folha 109r), escrito por Pedro de Eboli em 1196, sob Henrique VI, sugere que o campo era de prata. O testemunho remanescente mais antigo do campo de ouro está nas obras de Mateus Paris. À folha 22r da segunda parte da Chronica majora (códice MS 016II, conservado no Corpus Christi College, Cambridge), escrita entre 1240 e 1255, dá as armas de Otão IV: um escudo de ouro com uma águia de duas cabeças de negro e outro, dimidiado dessas mesmas armas, com três leopardos de ouro no primeiro, de vermelho. A cada um apôs-se uma legenda: àquele, "Otto creatur in imperatorem Romanorum" ("Otão é investido imperador dos romanos"); a este, "Scutum mutatum pro amore regis Angliæ" ("Escudo mudado por amor ao rei da Inglaterra"). Otão pertencia à Casa de Welf, mas entroncava com os Plantagenetas pela linhagem materna e, por doação de Ricardo Coração de Leão, tio seu, era duque da Aquitânia quando foi eleito imperador em 1198. À folha 76v, o cronista dá as armas de Frederico II, eleito em 1212, e brasona-as: "Scutum imperatoris: scuti campus aureus aquila nigra" ("Escudo do imperador: o campo do escudo de ouro com uma águia negra"). Parece que o recurso à dimidiação o levou a cair no engano de atribuir a águia bicípite aos imperadores ocidentais bem antes de eles mesmos a terem adotado.

Prancha n.º  26 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Com efeito, a águia bicípite (ou dicéfala) tem uma história singular. A sua origem é turcomana: aparece nas moedas dos zênguidas de Sinjar e dos artúquidas de Âmida, mas foi por intermédio dos seljúcidas da Anatólia que foi transmitida aos bizantinos. O seu significado primitivo coincide com o da águia monocéfala romana: é a ave que voa mais alto e, portanto, se aproxima mais ao Pai Céu. Na indumentária imperial, a atestação remanescente mais antiga remonta à bula de ouro de Andronico II em 1301: o imperador está em pé sobre um coxim vermelho (souppédioncom duas águias bicípites douradas. Todavia, como a heráldica no Oriente não passou de uma tentativa de emular esse sistema semiótico ocidental, faltam critérios que distingam claramente o que era decorativo e o que era emblemático.

Pranchas n.os 27 e 28 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 27 e 28 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Ora, entre 1269 e 1280 em Flandres, sob a condessa Margarida II, cunharam-se grossos cujo reverso mostra uma águia dicéfala. Sendo filha de Balduíno IX, conde de Flandres, um dos comandantes da Quarta Cruzada e primeiro imperador latino de Constantinopla, é razoável supor que, ao evocar tão augusta ascendência, essa figura estava então não só vinculada aos imperadores orientais, mas também era interpretada no Ocidente exatamente como a águia monocéfala: o emblema da monarquia. Essa interpretação é confirmada algum tempo depois por Giovanni Villani, que resolveu a diferença de uma águia e da outra na sua Nuova cronica (livro segundo, capítulo terceiro) assim:

Iulio Cesare la portò, il campo vermiglio e l'aquila ad oro, come fa menzione Lucano in versi, dicendo: "Signa, pares aquilas et pila minantia pilis" (1). Ma poi Ottaviano Agusto, suo nipote e successore imperadore, la mutò e portò il campo ad oro e l'aquila naturale, di colore nero, a similitudine della signoria dello imperio, che, come l'aquila è sovra ogni uccello e vede chiaro più ch'altro animale e vola infino al cielo dell'emisperio del fuoco, così lo 'mperio dé essere sopra ogni signoria temporale. E appresso Ottaviano tutti gli imperadori de' romani l'hanno per simile modo portata; ma Gostantino e poi gli altri imperadori de' greci ritennono la 'nsegna di Iulio Cesare, cioè il campo vermiglio e l'aquila ad oro, ma con due capi. (2)

Tanto é uma visão ocidental que os imperadores orientais nunca figuraram a águia dicéfala em moeda ou bandeira, ao menos não em fonte coeva e bizantina. Parece que para eles esse emblema não era estatal, mas dinástico ou, o que vale o mesmo, era distintivo dos Paleólogos.

Villani escreveu a sua crônica desde os anos vinte até a sua morte, em 1358. Enquanto isso, entre 1338 e 1347 em Antuérpia, o duque João III de Brabante emitiu um escudo de ouro cujo anverso mostra Luís IV sentado num trono, empunhando uma espada com a mão direita e repousando a esquerda sobre um escudo, o qual traz uma águia de duas cabeças. Essa peça não contradiz o cronista florentino, pois convém tomá-la por iniciativa do duque brabanção e obra do seu cunhador, que contou com o precedente do grosso de Margarida II de Flandres.

Apesar de ter sido uma iniciativa de outrem, a circulação de uma espécie de alto valor a partir de uma cidade comercial certamente contribuiu com a difusão da águia bicípite. Com efeito, pouco tempo depois, desde 1341, Lübeck, capital da Liga Hanseática, foi a primeira cidade imperial que a ostentou na sua moeda. Mesmo assim, demorou até que o próprio imperador assumisse o já difuso emblema: foi Sigismundo de Luxemburgo, eleito em 1410, quem a escolheu para o seu contrasselo em 1417, vindo a usá-lo após a sua coroação em 1433. Gustav Seyler na Geschichte der Siegel (1894,p. 213) dá o registro da encomenda:

Arnoldus facere debebit dua magna sigilla Imperialis Majestatis: unum in quo persona imperialis cum pomo et sceptro sedet super duabus aquilis, quarum quælibet habet duo capita, et debent esse quinque clypei circumcirca personam et in circumferentia tituli etc.; item et aliud in quo simpliciter sculpta sit imperialis aquila habens duo capita etc. (3)

Como se confere na base Sigilla, no selo do imperador Sigismundo as duas cabeças já aparecem nimbadas e daí em diante também se ordenaram de vermelho o bico (e a língua) e os tarsos e dedos (e as unhas), mas por muito tempo a reprodução desses pormenores dependeu do tamanho do espaço e da habilidade do artista. 

Após o imperador Sigismundo, os Habsburgos conseguiram deter a sucessão imperial, apesar de o regime ter permanecido eletivo. Contudo, o primeiro expoente dessa casa, o duque Alberto V da Áustria, faleceu um ano e meio depois da sua eleição em 1438. Assim, é no reinado de Frederico III, eleito em 1440, que se observam as próximas inovações em matéria heráldica.

Enquanto rei dos romanos, Frederico trouxe a águia monocéfala, como se vê no seu pequeno selo e contrasselo à época. Depois de coroado imperador pelo papa Nicolau V em 1452, adotou a dicéfala, como se vê no seu selo e contrasselo desde então. Trocando em miúdos: plenamente de acordo com a ideologia heráldica do momento, a segunda cabeça foi entendida como acrescentamento em honra, de modo que as armas antigas se ativeram à dignidade de rei dos romanos, que a eleição conferia e o arcebispo de Colônia em seguida sagrava, ao passo que as armas modernas distinguiram a dignidade imperial, que dependia da coroação pelo romano pontífice.

Ainda durante o reinado de Frederico III, começou a sobreposição do escudete dinástico ao peito da águia, como já o atesta o armorial de Hans Ingeram (códice A 2302, conservado no Kunsthistorisches Museum, Viena), feito em 1459 para o arquiduque Alberto VI da Áustria, irmão e rival do imperador. Esse uso difundiu-se, não obstante, sob Maximiliano I, eleito em 1486, como o demonstra a magnífica moeda de apresentação que mandou cunhar em Hall, no Tirol, por ocasião da sua ascensão à dignidade imperial em 1508 (4) e a belíssima gravura da bandeira imperial no Triumphzug Kaiser Maximilians I., de Albrecht Altdorfer (1512-1515).

Nem Frederico III nem Maximiliano I sobrepunham as suas armas plenas às imperiais, mas uma forma reduzida: aquele, tão somente as armas de Áustria moderno; este, estas partidas com as de Borgonha antigo. Em contraposição e como se vê ao longo de toda La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., Carlos V não fez essa redução, o que demandou um escudete maior, como se constata nos seus selos. Mais que isso: por toda a Espanha acham-se reproduções em que a águia de duas cabeças não é a figura das armas imperiais, mas o suporte das armas pessoais de Carlos V, como se aprecia na fachada da Universidade de Alcalá, cuja escultura data de 1552. Talvez essa variação tenha sido influída pelo escudo dos Reis Católicos, cujo suporte é a águia de São João (a Porta do Perdão da Catedral de Granada exibe ambos os brasões).

Enfim, cabe ressalvar que sob o próprio Carlos V o império sofreu mudanças substanciais. A Reforma fez com que ele tenha sido o derradeiro imperador coroado pelo papa, de modo que os seus sucessores se intitularam, como ele mesmo e Maximiliano I o tinham feito, electus Romanorum imperator ('imperador dos romanos eleito'). Por conseguinte, o título de rei dos romanos refuncionalizou-se, passando a distinguir o "herdeiro eleito". O próprio Fernando de Habsburgo foi eleito rei dos romanos em 1531 e após a abdicação de seu irmão, foi ratificado pelo colégio eleitoral e coroado pelo arcebispo de Mogúncia em Frankfurt em 1558. A maioria dos imperadores pósteros ascendeu a uma dignidade e à outra dentro de pouco tempo ou até no mesmo dia. Tudo isto tornou obsoleta a águia monocéfala pelo resto da existência do Sacro Império.

Notas:
(1) Esses versos encerram o exórdio da Farsália, poema épico sobre a guerra civil entre César e Pompeu (49-45 a.C.): "infestisque obvia signis / signa, pares aquilas et pila minantia pilis" ("[cantamos] estandartes que encontram estandartes enristados, águias iguais e dardos que ameaçam dardos"; tradução minha). Obviamente, o poeta não refere a brasões, mas às insignia militares romanas (leia-se a postagem de 27/01/21).
(2) "Júlio César trouxe-a, o campo vermelho e a águia em ouro, como faz menção Lucano em versos, dizendo: 'Signa pares aquilas et pila minantia pilas'. Mas depois, Otaviano Augusto, seu sobrinho e sucessor imperador, mudou-a e trouxe o campo em ouro e a águia natural, de cor negra, à semelhança do senhorio do império, que, como a águia está acima de todas as aves e vê claro mais que nenhum outro animal e voa até o céu do hemisfério do fogo, o império deve estar acima de todos os senhorios temporais. E após Otaviano todos os imperadores dos romanos trouxeram-na de semelhante modo, mas Constantino e depois os demais imperadores dos gregos retiveram a insígnia de Júlio César, ou seja, o campo vermelho e a águia em ouro, mas com duas cabeças." (tradução minha)
(3) "Arnoldo deverá fazer dois grandes selos da Majestade Imperial: um em que a pessoa imperial com o pomo e o cetro está sentada sobre duas águias, cada uma das quais tem duas cabeças, e deve haver cinco escudos em volta da pessoa e na circunferência os títulos etc.; e outro em que simplesmente esteja esculpida a águia imperial tendo duas cabeças etc." (tradução minha)
(4) Em 1508, o estado da Igreja e a república de Veneza disputavam o domínio sobre a Romanha. Maximiliano I estava no Tirol e, a pretexto de viajar a Roma para ser coroado imperador, pretendeu atravessar o território veneziano escoltado por um exército, mas a república lhe negou passagem. Foi, então, aclamado electus Romanorum imperator ('imperador dos romanos eleito') por Matthäus Lang, bispo de Gurk e chanceler seu, na catedral de Trento, com a subsequente aprovação do papa Júlio II.

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